1. Introdução
De longo uso e, atualmente, com expressa previsão no ordenamento consolidado (CLT, art. 855-A), a desconsideração da personalidade jurídica autoriza, mediante incidente próprio (CPC, arts. 133 a 137), que, esgotadas as vias de localização e constrição de bens, sejam ultrapassados os limites de corpo e patrimônio de pessoas jurídicas, para que recaia a força processual de execução sobre recursos e haveres dos sócios e, eventualmente, em casos específicos, de administradores, gerentes ou gestores, ainda que não sejam os titulares do empreendimento e sejam estranhos aos quadros societários.
Doutrina e jurisprudência oscilam sobre os pressupostos para que sejam convidados os administradores não sócios à execução. Efetivamente, em não poucos casos, a jurisprudência das Cortes trabalhistas desconsidera quaisquer distinções e, sob os fundamentos do caráter alimentar dos créditos inadimplidos, que justificam as pretensões postas em juízo, da limitação do risco empresarial ao empregador e das evidências de desrespeito aos direitos dos trabalhadores, dando efetividade à Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica, lança, na cena processual, sócios e administradores não sócios em igualdade de condições. Certas referências doutrinárias seguem por igual caminho.
Com todas as vênias a respeitáveis decisões e opiniões em tal sentido, a interpretação sistemática e teleológica das regras que regulam a desconsideração da personalidade jurídica, conforme a doutrina e a moderna jurisprudência, não autorizam o procedimento assim simplificado.
2. Normas de regência e doutrina
A concepção da técnica de desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine, disregard of legal entity, ou lifting the corporate veil) foi gerada em precedentes ingleses e norte-americanos. O direito objetivo brasileiro passou a contemplar o instituto, pioneiramente, na lei 4.591/64, seguida, depois, pelo Código Tributário Nacional (art. 135 e incisos).
Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, “a doutrina da desconsideração pretende o superamento episódico da personalidade jurídica da sociedade, em caso de fraude, abuso, ou simples desvio de função, objetivando a satisfação do terceiro lesado junto ao patrimônio dos próprios sócios, que passam a ter responsabilidade pessoal pelo ilícito causado”1.
Trata-se de procedimento extremo, autorizado para situações específicas e infenso à desconstituição da pessoa jurídica. Tem-se, aqui, quebra do princípio da autonomia patrimonial, estabelecida entre sociedade e sócios (CC, art. 49-A), tendo em vista o adimplemento de determinada obrigação, com a superação de armaduras legais e manobras ilícitas, segundo parâmetros estabelecidos em lei.
Pondo foco em relação consumerista, o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 28, caput e § 5º, disciplinou o instituto:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
[...]
§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
O legislador estabeleceu, nessa regra, como se vê, padrão genérico e objetivo, justificado, centralmente, pela insolvência do devedor. Consagrou, segundo a visão mais difundida, a Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica (embora se possa divisar hipótese de responsabilidade patrimonial dos sócios ex vi legis, fora, portanto, do âmbito da disregard doctrine).
O Código Civil de 2002 não se omitiu quanto ao tema e dele trata no art. 50, estatuindo que, “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz [...] desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.
Esse dispositivo, sem comprometer a norma inserida no Código de Defesa do Consumidor, traz coloratura diversa, exigindo a comprovação de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, conforme conceituadas em seus parágrafos 1º e 2º, para que o magistrado possa abrir espaço ao incidente. Deu forma à denominada Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Também insere, em sua disciplina, referência expressa à responsabilização dos administradores (por óbvio, os não sócios), resolvendo, de um lado, antiga discussão, mas erigindo nova dúvida.
A responsabilidade dos administradores foi, de início, objeto dos arts. 10, 11 e 14 do revogado decreto 3.708/19. O primeiro dos preceitos responsabilizava os administradores pelos atos que excedessem seus poderes estatutários ou legais. O art. 11, por sua vez, impunha sanções (inclusive criminais) pelas condutas que representassem abuso de poder, atos ultra vires ou beyond the powers, violadores do escopo da sociedade. Pelo contemporâneo art. 47 do Código Civil, “obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo”. Já o art. 1.016 do mesmo Texto afirma que os “administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”.
No que diz respeito às sociedades anônimas, o art. 158, incisos I e II, da lei 6.404/76, afastam a responsabilidade dos administradores, salvo quando procederem com culpa ou dolo ou “com violação da lei ou do estatuto”.
Pergunta-se: diante de todas as regras referidas, poder-se-ia, mesmo que sob a principiologia ínsita ao Direito do Trabalho e ao Direito Processual do Trabalho, dar-se ao administrador não sócio o mesmo tratamento merecido pelos sócios (Teoria Menor), em caso de necessidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica na Justiça do Trabalho?
A resposta é negativa.
Necessária se faz a assimilação de que, a teor do art. 1.011 do Código Civil, “o administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”. Atuando dentro de tais limites, o administrador não sócio estará resguardado pelo direito.
Em sentido inverso, ver-se-á exposto ao braço da lei quando atuar com culpa ou dolo, para além dos poderes atribuídos nos regramentos próprios da sociedade, sob abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. “Persistentes uma conduta negligente, imprudente ou imperita (art. 181) ou, com mais razão, a intenção de prejudicar, materializando a culpa em sentido amplo, surge, conjugada ao dano emergente ou ao lucro cessante, a responsabilidade civil. Há o dever de indenizar a pessoa jurídica e, eventualmente, terceiros”.2
Tais requisitos, impostos pela Teoria Maior, não podem ser presumidos e terão de ser robustamente provados no curso do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Do contrário, recair-se-ia, por via transversa, na Teoria Menor, quando bastará a insolvência do devedor ou a demonstração de blindagem da personalidade jurídica como forma de respaldar o inadimplemento de obrigações.
3. Jurisprudência
A jurisprudência trabalhista, sem dúvida apegada ao caráter protetivo do Direito do Trabalho e do processo que o instrumentaliza, em algumas oportunidades, lança mão da Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica para autorizar a constrição de bens de administradores não sócios de empresas executadas. Dizem tais decisões, em síntese, que bastam o inadimplemento do débito trabalhista ou a ausência de bens da empresa devedora suficientes à garantia da execução para que, em paridade, os bens patrimoniais de sócios e administradores não sócios respondam pelas dívidas contraídas.
Mesmo no que diz respeito às relações consumeristas (e percorremos, aqui, o terreno em que germina a Teoria Menor), a jurisprudência já não admite a responsabilização patrimonial dos administradores não sócios quando ausentes os requisitos legais.
A Eg. Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “é possível atribuir responsabilidade ao administrador não-sócio, por expressa previsão legal. Contudo, tal responsabilização decorre de atos praticados pelo administrador em relação as obrigações contraídas com excesso de poder ou desvio do objeto social”. Ressalvou-se, no entanto, que o “art. 50 do CC, que adota a teoria maior e permite a responsabilização do administrador não-sócio, não pode ser analisado em conjunto com o parágrafo 5º do art. 28 do CDC, que adota a teoria menor, pois este exclui a necessidade de preenchimento dos requisitos previstos no caput do art. 28 do CDC permitindo a desconsideração da personalidade jurídica, por exemplo, pelo simples inadimplemento ou pela ausência de bens suficientes para a satisfação do débito. Microssistemas independentes” (REsp 1.658.648/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, Ac. 3ª Turma, DJe 20/11/17).
A maioria dos Tribunais Regionais do Trabalho, ao que parece, têm seguido esta orientação. Pelas premissas postas e em uníssono com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e das Cortes regionais, é adequada a compreensão precursora do Tribunal Superior do Trabalho, firmada pela relatoria do Exmo. Ministro Aloysio Corrêa da Veiga:
RECURSO DE REVISTA. IN 40 DO TST. LEGITIMIDADE PASSIVA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PROVIMENTO. A responsabilidade dos administradores decorre, em última análise, de ato abusivo ou em fraude. Dessa forma, será responsável sempre que agir com dolo ou culpa, mesmo nos limites de competência previstas no contrato/estatuto, ou quando ultrapassar os atos regulares da gestão, podendo ser responsabilizado, por força do art. 50 do Código Civil, bem como dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. Trata-se de hipótese excepcional, não sendo possível a simples extensão da responsabilidade ao administrador sem que se analisem as particularidades do caso concreto e o respeito às garantias constitucionais do Contraditório e da Ampla Defesa. (...) (Processo TST ARR 139200-06.2008.5.02.0052, Ac. 6ª Turma, Rel. Min. Aloysio Correa da Veiga, DJ 1/9/17)
Não encontram suporte legal as decisões que, em relação aos administradores não sócios, divorciam-se dessas diretrizes e optam pela imediata aplicação da Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
4. Conclusão
Por tudo quanto posto, conformam-se ao ordenamento jurídico, ao due process of law e à voz do art. 5º, incisos II, XXII, LIV e LV, da Constituição Federal, as decisões de Cortes trabalhistas, quando divisam a possibilidade de constrição dos bens dos administradores não sócios de empresas executadas, se proferidas após regular decisão no incidente cabível, sob os requisitos (suficientemente provados) dos arts. 50 e 1.016 do Código Civil ou 158 da lei 6.404/76, conforme a Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
1 GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Manual de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 107.
2 PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil Comentado. 8ª ed. Barueri: Ed. Manole, 2014, p. 953.