A iatrogênia, conceitualmente, o termo advém do grego – iatros: médico; genia: origem; palavra usada para denominar quaisquer doenças ou danos causados a alguém por um ato médico, seja ele advindo de um tratamento ou de ato cirúrgico. Não só isso, a iatrogênia, em sentido amplo, entende-se por ato médico que causa dano ao paciente, independente se esse ato ocorreu dentro dos padrões ou se houve mal prática do médico (medical malpractice).1 A iatrogênia pode ocorrer desde o diagnóstico até a terapia, sendo ela cirúrgica, medicamentosa e/ou por uso de outras terapias.
A sua ocorrência pela prática inadequada é uníssona, no sentido de haver a responsabilidade civil, no qual verificará a existência do dano, visto que a lei cível brasileira prevê a necessidade da comprovação do dano, sendo ele de qualquer natureza. Mas a hipótese que haverá maior pertinácia argumentativa, a iatrogênia em sentido reduzido, nada mais é que a conduta médica totalmente dentro dos parâmetros aceitáveis e pertinentes as boas práticas.
São as mais diversas hipóteses para tanto, mas tentaremos iluminar as mais corriqueiras no dia-a-dia do direito médico. A lesão médica sempre ocorrerá, seja ela de grande ou pequena escala, porque a medicina, ainda, utiliza de mecanismos de valorização entre o custo-benefício, ou seja, a medicina avalia se o malefício é menor que o benefício. Todos os tratamentos, seja ele medicamentoso, terapêutico e/ou cirúrgico, causarão danos ao corpo humano, como dito anteriormente, em maior ou menor escala. Diante dessa máxima, a medicina utiliza uma filosofia utilitarista ao avaliar as lesões iatrogênicas, analisando os riscos e benefícios, em alguns casos, sacrifica-se parte em benefício do todo.
Como por exemplo, casos em que a paciente tem um câncer de mama, em estágio avançado, no qual o corpo clínico é obrigado a efetuar a retirada da mama, obrigatoriamente. Outro exemplo é a amputação de parte de um membro devido a uma hemorragia, decorrente de um acidente de trânsito. Em ambos os casos, a escolha dos discípulos de Hipócrates se faz necessária e obrigatória, para salvar a vida do paciente.
Cabe ressaltar que, no prontuário médico, se houver tempo, vide o caso do acidente de trânsito, o corpo clínico deve efetuar o registro do quadro do paciente e porquê foi tomada aquela decisão, resguardando, através de exames clínicos e laboratoriais. Não só isso, a tomada de decisão, como a retirada da mama, no outro caso, deve ser a última hipótese a ser tomada, sendo necessário a tentativa de outras medidas terapêuticas, o que é esperado pelo paciente. O tribunal mineiro já entendeu, em casos análogos, que a utilização em prima face da retirada total da mama configura ato ilícito, passível de indenização2.
Ultrapassando a escolha de tratamento e a tomada de decisão do diagnóstico, o consentimento é outro ponto a ser levantado, pois existe a obrigatoriedade do dever de informação sobre o tratamento a ser utilizado e a obtenção do consentimento do paciente, sendo condição primária para efetuar o ato médico cirúrgico ou tratamentos medicamentosos, ressalvado os casos em que se torna impossível ou inviável. Em última hipótese, existem casos de urgência e emergência que impossibilitam a obtenção do consentimento do paciente, devido ao estado clínico ou devido a outras circunstâncias, de tal maneira, o corpo clinico deve seguir o que determinam os arts. 30 e 33 da resolução de 2.056/13, do Conselho Federal de Medicina, no qual prevê
Art. 30. Nenhum tratamento será administrado a qualquer pessoa sem o seu consentimento esclarecido, salvo quando as condições clínicas não permitirem sua obtenção ou em situações de emergência, caracterizadas e justificadas em prontuário.
Parágrafo único. Na impossibilidade de obter-se o consentimento esclarecido do paciente, ressalvada a condição prevista na parte final do caput deste artigo, deve-se buscar o consentimento do responsável legal.
Art. 33. O tratamento e os cuidados a cada paciente devem basear-se em plano terapêutico individual, discutido com o paciente ou seu responsável legal, revisto regularmente, modificado quando necessário e administrado por profissional qualificado, ressalvadas as situações de urgência e emergência.
De tal forma, a falta do consentimento do paciente e a utilização de terapia de danos irreversíveis, mesmo por meio de lesão iatrogênica, em sentido estrito, pode ocasionar a responsabilidade civil do médico, mesmo não havendo erro pela prática médica indevida. Portanto, o conjunto de documentos será o maior aliado do corpo clínico, em principal, o prontuário e o termo de consentimento, o último em quaisquer de suas modalidades.
Agora existem os casos das lesões prováveis e improváveis, a decorrência delas no âmbito da responsabilidade civil. Em primeiro momento, as lesões prováveis derivam de um tratamento ou procedimento, no qual os riscos são expostos e sabidos, por exemplo o tratamento através de quimioterapia e os efeitos colaterais de um medicamento. O médico tem o dever de informar ao paciente os efeitos colaterais do medicamento, além de informá-lo a ler a bula do medicamento. Além disso, o paciente tem o dever de informar ao médico sobre seu histórico regresso médico, porque o profissional não tem o poder de adivinhar sobre o uma possível alergia a um determinado princípio ativo da droga.
Ressaltamos que o dever de informação do profissional não constitui em uma missão de atingir o improvável, ou seja, ele não deve abordar hipóteses inexistentes ou com taxas quase que inexistentes. Como por exemplo, um determinado remédio tem 0,05% de chances, em 100 indivíduos testados, de efetuar um quadro de insuficiência renal, os números apresentados são irrisórios que o dever de informar não deve atingí-los. Por isso, o dever de informar deve ser aquele padrão que a comunidade de medicina o adota, sendo infundada a obrigatoriedade do técnico da área da saúde conhecer TODOS os riscos dos medicamentos3.
Os casos improváveis, também, constituem em reações, fora do padrão, do organismo do paciente, aqueles não há qualquer possibilidade do corpo clínico prevê aquela situação. A reação inesperada, diante de uma terapia ou medicamento, em que a ciência médica não podia antevê-la, não imputará na esfera cível, devido a necessidade de aplicar o instituto da ausência de culpa do médico. Exemplificamos na seguinte hipótese, um paciente sofre um infarto, ao efetuar a cirurgia, o corpo clínico descobre a existência de um tumor, complicando a cirurgia de forma demasiada, e o mesmo paciente vem a óbito. Olhemos que o corpo clínico não teria condições, pela circunstância emergencial e clínica do paciente, de se preparar para um caso oncológico cirúrgico.
Uma visão sistemática da responsabilidade civil do médico impede que todas as hipóteses de lesões iatrogênicas em sentido estrito (decorrentes de tratamentos cientificamente adequados) sejam consideradas espécies de caso fortuito ou força maior, por um motivo simples: na maior parte delas, a conduta do médico dará causa direta e imediata ao dano; neste ponto, não bastaria afirmar que o risco da lesão era inevitável para equipará-lo à força maior, pois, para que esta se verifique, é preciso que também interrompa a cadeia causal da conduta médica. Preferível, assim, entender que em todas essas hipóteses haverá simplesmente ausência de culpa por parte do profissional (culpa aqui compreendida como agir profissional adequado à luz dos procedimentos-padrão que seriam seguidos por outros especialistas em casos semelhantes), sendo que, em algumas delas, ao lado da ausência de culpa pode verificar-se uma excludente de antijuridicidade ou, aí sim, uma excludente de responsabilidade como o caso fortuito4.
Diante de todo o exposto, o corpo clínico, sendo ele de clínicas e/ou hospitais, devem tomar todas precauções desde a triagem até o tratamento, efetuando os registros no prontuário, informando de forma clara e ostensiva os riscos e benefícios, além de colher colhendo o consentimento do paciente ou representante legal, não haverá responsabilidade civil do médico em casos de lesões iatrogênica. De tal forma, a necessidade de efetuar um compliance adequado, em todos os processos gerenciais e médicos, é de suma importância para resguardar o patrimônio do profissional da área da saúde; hospitais; e clínicas.
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1 Couto Filho, antonio ferreira; Souza, Alex pereira. Responsabilidade civil médica e hospitalar: repertorio jurisprudencial por especialidade médica. Teoria da eleição procedimental. Iatrogenia. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 47
2 EMENTA: APELAÇÃO. INDENIZAÇÃO. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. DISGNÓSTICO INCONCLUSO DE TUMOR MAMÁRIO. CIRURGIA DE RETIRADA DE MAMAS. CDC. APLICAÇÃO. DANOS MORAIS E ESTÉTICOS. POSSIBILIDADE. Não há cerceamento de defesa quando oportunizada produção de provas, a parte queda-se silente. É objetiva a responsabilidade civil do hospital bastando prova de dano e nexo de causalidade entre os fatos apresentados. É necessária apuração de culpa quanto a atos dos profissionais liberais. Inteligência do artigo 14 do CDC. A operação de retirada total das mamas sem a devida informação ao paciente sobre outros possíveis tratamentos enseja a responsabilidade pelos danos morais e estéticos suportados. Na fixação do valor da indenização por danos morais e estéticos, devem ser levados em consideração os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. (TJMG - Apelação Cível 1.0702.12.049701-2/003, Relator(a): Des.(a) Antônio Bispo , 15ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/05/2020, publicação da súmula em 20/05/2020)
3 NUNES DE SOUZA, Eduardo. Do erro à culpa na responsabilidade civil do médico estudo na perspectiva civil constitucional. Rio de Janeiro Renovar, 2015. págs., 158 e 159.
4 IDEM, págs. 160 e 161.