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Considerações sobre saúde pública e tratamento igualitário entre Brasil e Portugal

Ao brasileiro que necessite fazer uso da saúde portuguesa, é imprescindível estar atento às regulamentações locais quanto à dispensa ou necessidade de pagamento das taxas, bem como seus valores no site do Sistema de Saúde (SNS).

16/8/2022

O número de brasileiros residindo em Portugal nunca foi tão alto. É o que aponta um levantamento feito pela equipe da CNN1, com base em dados cedidos pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), da Embaixada Portuguesa. Há, porém, um assunto que pode gerar dúvidas com o aumento da procura de brasileiros pelo país-irmão, qual seja, o acesso ao serviço de saúde pública.

Além da busca por melhores condições financeiras, os imigrantes brasileiros devem se preocupar com o acesso à saúde, tendo em vista que no país de origem (Brasil) vigora o regime universal em que toda e qualquer pessoa tem acesso gratuito à saúde, contando com tratamentos, consultas, exames e medicamentos de forma totalmente gratuita.

As disposições constitucionais e convencionais são abrangentes. Há disposição expressa de regulamentos acerca da incidência de regras penais e do gozo de direitos políticos, por exemplo, além da previsão de que deverão ser guardados direitos e deveres iguais aos de nacionais pelos cidadãos de ambos os países. 

É VERDADE QUE EXISTE “SUS” EM PORTUGAL?

Desde a promulgação da Convenção sobre Igualdade de Direitos e Deveres entre portugueses e brasileiros, ambos os países guardam, entre si, previsão de tratamento igualitário entre seus cidadãos. Decorre do tratamento entre os países documentos específicos a serem apresentados em Portugal, permitindo o acesso e o atendimento dentro do sistema de saúde português, o SNS.

Segundo informações veiculadas no site da Entidade Reguladora do SNS, os cidadãos estrangeiros, nacionais de um país terceiro não pertencente ao espaço da União Europeia ou Espaço Económico Europeu e Suíça, que residam no território nacional, nos termos regulados na legislação da imigração, é assegurada a proteção à saúde, tendo estes direito à assistência num centro de saúde ou hospital em igualdade de tratamento aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde (SNS).2

Neste sentido, os imigrantes que não sejam titulares de uma autorização de permanência ou de residência ou que se encontrem em situação irregular face à legislação da imigração em vigor têm acesso ao SNS mediante a apresentação de um documento da Junta de Freguesia da sua área de residência que certifique que se encontram a residir em Portugal há mais de 90 dias. Poderá ser exigido, porém, o pagamento dos cuidados recebidos segundo as tabelas em vigor.3

Enquanto o Sistema Único de Saúde, no Brasil, é completamente público e gratuito, o sistema de saúde português possui regulamentos diferenciados: por lá, são cobradas dos cidadãos “taxas moderadoras” de seus cidadãos - e consequentemente dos brasileiros fazendo uso do sistema português - cujos valores são pautados no tipo de atendimento prestado4. 

QUAL O REGRAMENTO?

O decreto-lei 113/20115 deixa expressa situações em que há necessidade de pagamento de taxas moderadoras para que se possa fazer uso do SNS:

“a) Nas consultas nos prestadores de cuidados de saúde primários, no domicílio, nos hospitais e em outros estabelecimentos de saúde públicos ou privados, designadamente em entidades convencionadas;

b) Na realização de exames complementares de diagnóstico e terapêutica em serviços de saúde públicos ou privados, designadamente em entidades convencionadas, com exceção dos efetuados em regime de internamento;

c) Nos serviços de atendimento permanente dos cuidados de saúde primários e serviços de urgência hospitalar;

d) No hospital de dia.” 

O regramento de 2011 prevê, em seu art. 4º, um rol de casos em que há dispensa do pagamento da taxa, como “crianças até 12 anos de idade”, “doentes transplantados”, “desempregados” ou pessoas em situação de “insuficiência econômica” e até mesmo “requerentes de asilo e refugiados e respetivos cônjuges ou equiparados e descendentes diretos.”6.

Há, ainda, previsões de dispensa, como no atendimento primário, abrangendo consultas e exames para diagnóstico e terapêutica, a taxa é dispensada, conforme nova redação do art. 8º dada pelo decreto-lei 96/20. O mesmo ocorre em caso de cuidados paliativos, conforme previsão a outro inciso do art. 8º pelo decreto-lei 131/17. Outra hipótese de dispensa de pagamento de taxa é nos casos de interrupção voluntária da gravidez, determinada pela lei nº 3-2016.

Mas não havia previsão de igualdade de tratamento? Não. Não há como se alegar que há desigualdade de tratamento desse brasileiro doente, por mais que ele tenha que arcar com as custas do serviço público português. Isso, pois a determinação de que há necessidade de cobrar por um serviço público de saúde é aspecto da soberania de cada país, ou seja, faz parte do poder que cada país tem de determinar como ele funcionará.

Da mesma forma que pode o Brasil determinar que a saúde é “um direito de todos e dever do Estado” em seu art. 196, bem como que seu custeio se daria por meio de receita proveniente dos cofres públicos, Portugal tem liberdade de definir como se dará a organização de seu sistema de Saúde. 

É PRECISO ALGUM DOCUMENTO ESPECÍFICO?

Ainda, destaca-se a importância da emissão do certificado PB4, “PT-BR/13 ou ainda Certificado de Direito à Assistência Médica (CDAM)”7. Esse documento, proveniente de um acordo selado entre Brasil, Portugal, Itália e Cabo Verde permite acesso ao sistema de Saúde para aqueles que fixarem residência nesses países.

Para emitir esse certificado, basta acessar a plataforma do gov.br e, na aba “obter seu Certificado de Direito à Assistência Médica (CDAM)” selecionar Portugal enquanto país de destino, podendo, inclusive, incluir eventuais dependentes8. Ou seja, não se trata de seguro de saúde para turistas, mas sim certifica a permissão de acesso ao sistema público de saúde nessas localidades. 

E O ACESSO A MEDICAMENTOS?

O acesso a medicamentos também é distinto em ambos os países. Enquanto no Brasil existe o sistema de entrega de medicamentos via SUS nas farmácias básicas, bem como o monopólio sobre determinadas drogas de alto-custo, em Portugal existe comparticipação do governo português com o cidadão, de forma a repartir o custo do remédio entre o cidadão e o governo, se a receita for proveniente do sistema de saúde pública português9.

Quanto aos brasileiros doentes crônicos, que fazem uso de medicação de alto custo entregues via SUS, que migrarem para o país-irmão, pode haver dificuldade de acesso. Isso, pois em portugal, o paciente teria que custear ele mesmo essas drogas, integralmente se o diagnóstico já existir, ou parcialmente se o diagnóstico for realizado em solo português via comparticipação10.

Vale a menção de que o Estado brasileiro, apesar de fornecer medicamentos de alto custo aos usuários do SUS e da saúde suplementar, não tem condições - no sentido administrativo, financeiro e organizacional - de ser obrigado a realizar o fornecimento mundo afora, senão por decisão judicial, a qual deve produzir efeitos em solo alienígena. Nesse caso, poderá haver abertura de um processo judicial do doente no Brasil, em face do Município e da União (entes responsáveis pela saúde), para que seja entregue a droga em solo estrangeiro, utilizando-se de cooperação jurídica internacional para efetivar a tutela e realização do direito, ou se o único caminho é pela via administrativa consular11. 

Além dessas situações, quando se fala em medicamentos que requerem acondicionamento específico, como refrigeração, ou mesmo administração em instituições hospitalares, criam-se cenários ainda mais complexos, que somente podem ser estabelecidos in casu12.

CONCLUSÃO

Portanto, ao brasileiro que necessite fazer uso da saúde portuguesa, é imprescindível estar atento às regulamentações locais quanto à dispensa ou necessidade de pagamento das taxas, bem como seus valores no site do Sistema de Saúde (SNS).

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1 Dados disponíveis em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/numero-de-brasileiros-em-portugal-nunca-foi-tao-alto-segundo-embaixada-portuguesa/. Acesso em 25 de abr. De 2022.

2 Conforme Circular Informativa n.º 12/DQS/DMD/07.05.09. Informação disponível em https://www.ers.pt/pt/utentes/perguntas-frequentes/faq/acesso-de-imigrantes-a-prestacao-de-cuidados-de-saude-no-servico-nacional-de-saude/. Acesso em 03 de maio de 2022

3 Constituição de Portugal. Artigo 34.º do Decreto Lei n.º 135/99 de 22 de abril e Circular Informativa n.º 12/DQS/DMD/07.05.09 e Despacho n.º 25.360/2001. Informação disponível em https://www.ers.pt/pt/utentes/perguntas-frequentes/faq/acesso-de-imigrantes-a-prestacao-de-cuidados-de-saude-no-servico-nacional-de-saude/. Acesso em 03 de maio de 2022. Acesso em 03 de mai. De 2022.

4 Para consulta de todos os Decretos-Lei e normativas portuguesas referenciadas, https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/Leis_area_saude.aspx#TM. Acesso em 25 de abr. de 2022.

5 Disponível em: https://files.dre.pt/1s/2011/11/22900/0510805110.pdf. Acesso em 26 de abr. de 2022.

6 Conforme https://www.ers.pt/pt/utentes/perguntas-frequentes/faq/taxas-moderadoras-do-sns/. Acesso em 25 de abr. de 2022.

7 Conforme https://www.eurodicas.com.br/pb4-como-funciona-e-como-solicitar/. Acesso em 25 de abr. de 2022.

8  https://www.eurodicas.com.br/solicitar-pb4-online/#como-solicitar-pb4-pela-internet-passo-a-passo. Acesso em 25 de abr. de 2022.

9 Disponível em: https://www.acss.min-saude.pt/2016/09/19/regimes-especiais-de-comparticipacao-de-medicamentos/. Acesso em 25 de abr. de 2022.

10 Vale a menção aos casos de acesso em que não há o pagamento das taxas quando há diagnóstico de doenças raras para portugueses, que, por consequência do tratamento igualitário entre Brasil e Portugal, deve ser extendido aos brasileiros inseridos no SNS. Mais informações:  https://www.publico.pt/2022/01/03/sociedade/noticia/acesso-gratuito-medicamento-doenca-rara-alargado-criancas-menos-quatro-anos-1990614. Acesso em 25 de abr. de 2022.

11 Aqui faz-se menção à homologação de sentença estrangeira brasileira por portugal, por meio da Ação de reconhecimento de sentença estrangeira. São dispositivos de destaque do assunto no Código de Processo Civil Português: “Artigo 62.º Fatores de atribuição da competência internacional - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.”; Artigo 706.º Exequibilidade das sentenças e dos títulos exarados em país estrangeiro - 1 - Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, as sentenças proferidas por tribunais ou por árbitros em país estrangeiro só podem servir de base à execução depois de revistas e confirmadas pelo tribunal português competente. 2 - Não carecem, porém, de revisão para ser exequíveis os títulos exarados em país estrangeiro.”; Artigo 978.º Necessidade da revisão - 1 - Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.”. Disponível em: https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/lei/2013-34580575. Acesso em 03 de mai. de 2022.

12 O caso do paciente de esclerose múltipla ilustra bem a questão: para o SNS a dispensação de medicação só pode ocorrer após esse paciente inserir-se ao Sistema, retirando o medicamento nos hospitais credenciados. Conforme: ??https://www.infarmed.pt/web/infarmed/esclerose-multipla. Acesso em 25 de abr. de 2022.

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https://www.acss.min-saude.pt/2016/09/19/regimes-especiais-de-comparticipacao-de-medicamentos/.

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/numero-de-brasileiros-em-portugal-nunca-foi-tao-alto-segundo-embaixada-portuguesa/.

https://www.ers.pt/pt/utentes/perguntas-frequentes/faq/taxas-moderadoras-do-sns/.

https://www.ers.pt/pt/utentes/perguntas-frequentes/faq/taxas-moderadoras-do-sns/.

https://www.eurodicas.com.br/pb4-como-funciona-e-como-solicitar

https://www.eurodicas.com.br/solicitar-pb4-online/#como-solicitar-pb4-pela-internet-passo-a-passo.

https://www.infarmed.pt/web/infarmed/esclerose-multipla.

https://www.nacionalidadeportuguesa.com.br/sistema-nacional-de-saude-em-portugal/.

https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/Leis_area_saude.aspx#™.

https://www.publico.pt/2022/01/03/sociedade/noticia/acesso-gratuito-medicamento-doenca-rara-alargado-criancas-menos-quatro-anos-1990614.

https://www.ers.pt/pt/utentes/perguntas-frequentes/faq/acesso-de-imigrantes-a-prestacao-de-cuidados-de-saude-no-servico-nacional-de-saude/.

https://files.dre.pt/1s/2011/11/22900/0510805110.pdf.

Carolina Martins Uscocovich
Advogada. Pós-graduanda em Direito Médico e da Saúde pela PUC/PR e pela FMP.

Stephanie Vitola
Advogada. Pós-Graduanda em Direito Médico e da Saúde pela PUC/PR. Graduada e especializada em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.

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