Fiz estágio os seis anos em que cursei a Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie; nos últimos três anos e meio, mais ou menos, consegui ser admitido, como estagiário, em um dos mais prestigiados escritórios do país, o Demarest & Almeida, à época capitaneado pelo dr. João Batista, com quem tinha aulas de leitura do Código Civil todas as manhãs. Foi muito bom. Formado, fui automaticamente contratado como advogado, pois entrei facilmente na OAB, e assim fiquei mais um ano e tanto na operação. Mas, percebi que com a formação que tinha recebido – Colégio Alemão, Bandeirantes, Paes Leme, União Cultural Brasil-EEUU, vida de clube todo dia, não era a vida que queria ter.
Assim, pedi para sair e fiquei, aos vinte e poucos anos, sem saber o que fazer, sem dinheiro, na dependência do abrigo da família para comer e ter onde morar. As tantas um grande amigo, que conheci no Bandeirantes e que se formou comigo no Mackenzie, o dr. Luiz Fernando Taranto Neves me deu uma dica: uns poetas, liderados por um editor outsider, Massao Ohno, perseguido pela ditadura, estavam cogitando lançar alguns livros de Poesia, e precisavam de alguém que os ajudasse a organizar um evento de lançamento dos livros. Argumentei que não era poeta, nem pretendia ser, mas que gostaria de ajudar na organização. E assim foi feito. Não só ajudei, como organizei tudo, nada tinham além da chama poética – o que não é pouco, mas não basta.
Deu tão certo que um outro poeta, Claudio Willer, sugeriu que eu continuasse a organizar eventos de Poesia e Arte, oferecendo-me uma sala em sua empresa de pesquisas de mercado, com uma coisa cara e rara: uma linha telefônica exclusiva e uma secretaria! Foi o que bastou para eu me atirar com toda energia e felicidade às minhas novas tarefas, no meio da intelectualidade, dos Poetas, dos editores, dos livros que tinham sido até então, ao lado do esporte, minha vida.
E assim me afastei do Direito por décadas, me dedicando a organizar eventos culturais, distribuir livros produzidos fora do esquema comercial comum, falando com jornalistas, com o pessoal dos locais onde organizava os lançamentos, procurando as listagens com os destinatários certos, enfim, uma vida maravilhosa, onde me dei super bem, feliz da vida, embora, é claro, não tivesse quase nenhum dinheiro, só tinha condições de levar as namoradas uma vez por mês ao recém inaugurado Montechiaro, na rua Santo Antonio, quando minha avó paterna, uma brava Gaviolli, me passava os trocados de sua aposentadoria... mas nunca fui tão feliz, felicidade que dura até hoje, após mais de quarenta anos.
Tudo isto para contar que a uma década atrás, voltei a amar o Direito, por culpa de um filho de Juiz de Direito, chamado Miguel Matos, que teve a idéia de lançar um periódico online, via email, sobre os assuntos do Direito, com um nome poético, despretensioso, onde o Direito era visto com todo o amor que tinha experimentado na Faculdade, o Direito como Poesia, como Arte, como um instrumento de comunicação ritual, sofisticado. Assim, de comunicador consagrado não pelas obras, mas pelo tempo, passei a redigir artigos que foram bem recebidos neste prestigioso ‘rotativo’, o Migalhas.
Porque conto tudo isto? Para apresentar aos caros leitores, as diferenças entre as semelhanças que existem entre a prática do Direito e a prática da Comunicação. No Direito, a primeira diferença, é que tudo que existe, existe apenas nos autos, no livro que contém tudo o que se discute, pleiteia, quer. Nada existe nem pode existir fora deste documento maior. O Juiz pode muito bem saber de fatos que modificariam sua visão do processo, mas está impedido de considera-los se estes não estiverem nos autos. Numa cidade do interior, digamos, não raro isto pode acontecer (1). Ou numa mesa como a do Clube, onde nos reunimos e nos divertimos trocando todo tipo de informações. A segunda diferença é que o Direito se dá em um campo determinado pela Constituição, pelos Códigos, pela legislação, pelos regulamentos, pelos decretos e assim vai. É de fato, um sistema fechado. Não estando na lei, não existe, não é assunto para o Direito. E a terceira diferença é que a mediação, digamos assim, do que as partes propugnam no processo, é sempre feita em etapas. Em nosso Direito esta etapas são tão extensas que se sabe que aqueles que têm bons advogados conseguem estender a duração de um processo ad aeternum, o que é uma falha, conhecida, mas nunca deveras atacada e resolvida, resultando no descrédito de todo um sistema que nos foi legado principalmente por Justiniano, quando promoveu um esforço de consolidação das tradições, técnicas e outras particularidades do processo onde o Direito se dá, onde existe e de onde tira sua legitimidade perante à civilização.
Na Comunicação, paralelamente, tudo que existe são os fatos e as versões dos fatos e como este material é propagado. Ou seja, enquanto no Direito os fatos apenas existem no processo, em Comunicação os fatos se espalham por vários suportes e vários veículos. Não se tem um documento maior que reúna tudo o que se analisa, avalia, julga. Assim na Comunicação, os fatos existem em muitos lugares e não há, fora os valores maiores da civilização – ética, honradez, moralidade, costumes, a primazia da verdade – nada que oriente o andamento das coisas, como existe no Direito, sujeito às leis. Não há leis, há apenas uma vaga esperança que os interlocutores ajam, se comportem de acordo com os valores maiores da Civilização. E quem avalia, julga, publica o que acha, o que viu, sua posição sobre os fatos em questão? No Direito, o Poder Judiciário. Na Comunicação, os jornalistas, os editores, os donos dos veículos de comunicação. Sobre este ponto é obrigatório ler Balzac, principalmente o das Illusions Perdues; fundamental, para que ninguém se engane sobre o papel da Imprensa.
Mas não só Balzac e os veículos de comunicação – jornais, revistas, rádios, televisões; hoje em dia ao contrário da época do ‘broadcast’ onde quem tinha os veículos determinava, por assim dizer, o que seria ou não publicado, hoje entramos na era da comunicação para todos, por todos, com todos. Cada um de nós, pode e muitos têm, seu próprio canal de televisão no Youtube e elsewhere, seu rádio, seu podcast. Pode publicar em inúmeros veículos que praticamente nada custam e atingem milhões. Uma informação que caia no interesse de alguns, pode, como por mágica cair no interesse de multidões tornando-se ‘viral’, um fenômeno extraordinário, unconnu, e especialmente perigoso. Uma informação negativa sobre produtos, serviços, negócios, transações com o Estado, com governos, municípios pode gerar consequências nefastas, sendo OU NÃO verdadeiras... O que não é novo, lembram-se das técnicas do ‘Rei do Brasil’, certo ? Em resumo, enquanto advogados atuam em um sistema dado, conhecido, regulamentado, nós, os Comunicadores atuamos em um sistema aberto, que abranje não só a avaliação de terceiros, basicamente os jornalistas, como quem trocamos figurinhas diariamente, sendo, como em nosso caso, fontes respeitadas, como também tudo que aparece na Internet, nas redes sociais, em todo lugar.
Temos que lidar assim com um mundo de comunicação, um mundo onde vale tudo e onde cada ação passa não só pelo julgamento estudado e limitado pelos códigos, mas pelos valores da civilização, a princípio e depois por todas as emoções que disputas, lutas, discussões envolvem. E ainda assim, no geral, conseguimos bons resultados. Lidar com crises de comunicação é uma das nossas expertises. É uma operação delicada, arriscada, dificultosa em extremo mas que fazemos com grande prazer, com gosto, pois como o azeite na água, a verdade, se batalhada, tende a flutuar soberana. Não é fácil nem garantido. Mas no nosso caso, o processo acaba chegando a um término, pois a força de verdade não pode ser subestimada, ainda que não seja fácil chegar a ela e ao consenso que implica.
Em resumo, enquanto os advogados lidam em um mundo determinado nós os comunicadores lidamos com um mundo indeterminado. Onde vale tudo e tanto os ‘processos’ como as ‘instâncias’ são ilimitados. E ainda assim apresentamos resultados satisfatórios, em tempo hábil, tirando as coisas a limpo. Coisa que, como se vê, muitas vezes – e não sou eu que digo – o poder Judiciário não consegue entregar. Por isso não me arrependo de ter me afastado da prática do Direito, embora sinta falta de gente como Orlando Giacomo, com quem convivi no Demarest e meus professores na Faculdade, Silvio Rodrigues, Philomeno Joaquim da Costa, Modesto Carvalhosa e principalmente meus professores de tributário, que me demonstraram para além de qualquer dúvida a essência do sistema de arrecadação, lição bem aprendida que me fez sobreviver como empreendedor por mais de quatro décadas.
E como, digamos, prêmio de consolação, já no ocaso da vida, o prazer de ter conhecido - e participado, da obra magna do Miguel Matos, este Migalhas que me devolveu a paixão perdida pelo estudo do Direito, que coisa mais linda!