Migalhas de Peso

Brasil: país grande, governantes e políticos pequenos

O resultado amargo dessas políticas insanas – que quase nunca ou jamais cuidam das causas, mas apenas dos efeitos – é que as filas para obter um prato de comida, um cobertor para dormir na rua e alguma roupa para se vestir estão somente aumentando.

10/8/2022

O Brasil é um país grande. Do norte ao sul ele vai do Oiapoque ao Chuí. Do Leste para o Oeste, mostra-se do Atlântico até a Cordilheira dos Andes. Sua grandeza se expressa sob os mais variados aspectos, destacando-se os relevos geográficos multivariados, uma extensa e magnífica costa, riquíssimas fauna e flora, a terra fértil na qual, como disse nosso caro Pero Vaz de Caminha, em se plantando tudo dá. Não há brasileiro que não saiba disso.

No entanto, essa grandeza não se reflete na nossa realidade econômica e social, sendo notórias as imensas e aparentemente intransponíveis barreiras que separam os bilionários, os ricos, os remediados (a antiga classe média), os pobres e os miseráveis uns dos outros. Vejam os extremos: antigamente bilionário no Brasil era um ser inexistente. Hoje eles são contados às dezenas. A miséria por aqui sempre foi miserável, mas atualmente ela é absolutamente execrável. Muitos dos bilionários são famosos pelas suas extravagâncias e talvez alguém das suas famílias já esteja desfilando por aqui com as novas bolsas tipo sacos de lixo, o que revela extrema deformação moral. Um tapa na cara de quem tem no lixo o seu ganha-pão.

Os miseráveis, famélicos, quando sobrevivem, o fazem com os parcos e finitos recursos dos programas dito sociais e com a ajuda de familiares, doadores, pessoas ou entidades desveladas em minorar o seu sofrimento. Desde os últimos dois anos e meio da pandemia nunca se viu em nossa história tanta gente morando na rua, em regime de retorno a uma normalidade mínima colocado no plano das reais impossibilidades. Nesse cenário a verdadeira redenção dessa imensa população estaria em sobreviver com a ajuda social e ser guindada à condição de gente com trabalho e salário decentes, capaz de pagar moradia, comida e serviços básicos. Talvez a conhecida Velhinha de Taubaté pudesse acreditar nisso.

O levantamento do índice de desenvolvimento humano (IDH) do Brasil em 2020 (portanto, antes da pandemia) era de 0,756, nos colocando no 84º lugar da classificação geral, dentro de um padrão considerado alto. Esse índice é uma medida comparativa de riqueza, alfabetização, educação expectativa de vida, natalidade e outros fatores, e deve ser criticado porque sua natureza é de uma média que, como tal mostra uma realidade deturpada entre os vetores máximo e mínimo, havendo como todo mundo sabe poucos municípios nos quais as disparidades econômicas sociais não são gritantes e outros nos quais elas agridem a nossa sensibilidade. Basta ver, em São Paulo, a diferença entre a Faria Lima e as favelas situadas em toda a nossa periferia. O centro da cidade se transformou em um verdadeiro Pátio dos Milagres. Relatado por Victor Hugo no seu eterno “Corcunda de Notre Dame”, onde na Paris medieval se se encontrável todos os miseráveis daquela cidade. Todos temos visto a nossa infame realidade, bastando ver um catador de lixo empurrando a sua carroça pelas ruas, enquanto alguém exibe o seu carro e sua moto de luxo, cujo preço se conta na casa de alguns milhares de reais. Nada contra quem tem dinheiro para gastar com seus caprichos, vivemos em um país livre, mas o contraste é inevitável.

A saída dessa situação infame está reconhecidamente em duas fases: (i) dar comida, moradia e saúde fundamental pelo período que for necessário; e (ii) estabelecer mecanismos efetivos de saída progressiva do modelo fundamentalmente assistencialista. Na minha ignorância da situação real me parece que somente a primeira fase tem funcionado com sérias deficiências, não atendida boa parte dos miseráveis. Da segunda não tenho notícias, a não ser por raros casos noticiados pela imprensa dos poucos que reencontram a dignidade.

A solução desse quadro infame passa necessariamente pela política: o Congresso deveria estabelecer mecanismos eficazes de solução dos problemas apontados e os governos colocá-los em prática. E não há candidato ao nosso voto em toda a nossa história democrática que não saiba disso. Como é que ele chega a você, eleitor? Não um, nem um sequer, de esquerda, de direita ou de centro que não prometa luta por emprego com bons salários (e com o fetiche da carteira assinada), saúde, bom transporte público, aposentadoria digna. Alguns até mesmo se esmeram em passar por outras áreas, como o saneamento e a redução da tabela do imposto de renda que, pelo visto, não vai demorar muito para recair sobre os beneficiários dos programas sociais.

Essa história de promessas vazias é tão antiga quanto a nossa primeira eleição e nada existe no horizonte que faça com que elas se transformem em realizações adequadas. Sabe a razão, caro leitor? É que a posse em cargo eletivo ou no governo provoca uma mudança na morfologia dos beneficiados, igual a que acontece com a transformação de seres humanos em lobisomens nas notes de lua cheia. Eles passam a ser bichos devoradores insaciáveis, formados por um estômago gigantesco, com cérebro minúsculo e coração inexistente. Nada os sacia e sempre atacam em bandos para mais eficientemente devorarem as suas presas. São verdadeiras hienas, alimentando-se das vítimas inertes e delas escarnecendo.

Estou exagerando? Então passemos a ver alguns casos práticos da nossa tragédia recente, cuja gênese se dá na busca de acesse ou de manutenção no Poder, essa entidade mágica, que transforma seres humanos em super vilões, que não se preocupam absolutamente com o futuro do país, já que eles amanhã estarão em outra.

O primeiro é a tal da PEC Kamikaze, ou seja, que nasceu como uma proposta de emenda constitucional marcada por tantas ilegalidades faria ficar com vergonha um ladrão honesto. Seus aparentes benefícios são: o aumento da parcela mínima do Auxílio Brasil para R$600, que valerá somente até o final deste ano; um vale gás; o auxílio de R$ mil para caminhoneiros; o transporte gratuito para idosos; o auxílio gasolina para taxistas; e a destinação de R$500 milhões para o programa de compra de alimentos de agricultores familiares. A conta ficou em mais de R$40 bilhões, um troquinho de pinga no bar da esquina.

Só não viu o caráter descaradamente eleitoreiro dessa PEC é quem dela pretendeu tirar algum proveito nada exemplar. A propósito, nossa Constituição tem passado por tantas emendas casuísticas, que ela agora tem cara de colcha de retalhos velhos e desbotados. Ela tem mudado tempo que é preciso ao cidadão atualizar-se todos os dias, sob pena de ficar completamente desinformado sobre a base política da nossa cidadania. Os americanos devem ter muita inveja de nós. Ali as emendas não chegaram até hoje à casa das vinte. E o pior para eles, coitados! Até agora vivem com a mesma Constituição de 1787. Tremendo atraso!

Bem, quem tiver suas necessidades básicas mitigadas até o próximo 31 de dezembro pode tratar de preparar o estômago para um longo período de jejum absoluto que se seguirá, porque a ajuda fatalmente acabará e novo dinheiro dessa natureza nunca mais: o caixa governamental está para lá de quebrado e não haverá mais como tomar dinheiro fiado. O mesmo para os demais benefícios, cujo fim não será tão traumático quanto aos beneficiários.

E veja-se o completo absurdo: no Senado, dos oitenta e um senadores, somente José Serra votou contra essa famigerada PEC. E na Câmara menos de vinte deputados federais. Dessa vez a culpa não ficou somente com o Centrão, ela foi distribuída para praticamente todo mundo nas duas casas do Congresso. Como teria dito a criança que viu a primeira mulher barbuda do circo: aquilo foi um espanto! Toda a oposição deu corda eleitoral para o Presidente sem ficar ruborizada. Não precisa entender.

O sistema do crédito consignado, que é aberto a qualquer faixa de renda, mostra-se como outro fator de desequilíbrio das finanças das pessoas com ganhos mais baixos, pois a única restrição é a de atender a margem consignável, correspondente a 45% da renda líquida para os pensionistas da Previdência Social e os titulares do BPC.  Em outras situações ela é fixada no patamar de 5%, mantendo-se exclusivamente para o cartão de crédito consignado. No primeiro caso, se alguém tem uma renda liquida de R$ 1.000 pode comprometer até R$ 450 para uma operação dessa espécie, lhe restando para o pagamento de suas demais contas a expressiva importância de R$ 550! Aos beneficiários do Auxílio Brasil e do BPC a margem poderá chegar a R$ 484.

A maldade desse sistema está na questão de que em grande parte dos casos o tomador fará a operação quando se encontrar em situação financeira desesperadora, com contas de serviços essenciais em atraso, tais como água, luz, telefone, condomínio, nada sobrando para a comida, sabendo-se pelo noticiário econômico que a população em geral está passando no momento por recordes de endividamento.

Não há qualquer mecanismo outro de controle do endividamento por meio do crédito consignado a não ser a margem, deixando-se sob a responsabilidade do tomador a verificação sobre se poderá viver com o restante que lhe sobra. É a típica escolha de Sofia, aquela que coloca o indivíduo na situação de ver-se forçado a optar entre duas alternativas, cada uma delas igualmente insuportável. No caso, por exemplo, tomar um empréstimo dessa natureza para pagar o aluguel devido, sabendo que inexoravelmente no mês seguinte a mesma conta chegará às mãos do devedor.

Mas nem tudo são trevas (estou recorrendo aqui a uma tragicomédia, claro), eis que o Presidente da República baixou o decreto 11.151, de 26/3/22, que preserva os tomadores de superendividamento e o não comprometimento do mínimo existencial quanto a dívidas de consumo e compromissos financeiros relativos à utilização de produtos e serviços para o tomador como destinatário final. Tal parâmetro corresponde a 25% do salário-mínimo vigente, o que o levaria para a importância de R$ 303 atualmente. Uma fortuna!

Devedor, fique muito feliz! Assuma todos os compromissos que puder para o atendimento dos parâmetros acima citados e viva um mês inteiro com a gorda quantia de R$ 303. Uma maravilha, que certamente premiará o seu autor com uma grande enxurrada de votos nas próximas eleições.

Veja o leitor que tomei como exemplo das maldades e armadilhas que foram preparadas pelos governantes e políticos apenas poucos dos inúmeros casos que sua fértil imaginação tem criado quase todos os dias. Faltaria papel (ou bits) para tanta coisa.

Infelizmente a pobreza é uma marca histórica da humanidade em todos os tempos, decorrente de situações extremamente variadas e complexas que não cabe aqui analisar. Mas evidentemente não cabe aos governantes e políticos de plantão retroalimentá-la com a sua infinita irresponsabilidade para tão somente manter-se no poder ou galgá-lo a qualquer custo.

Aqui entre nós o resultado amargo dessas políticas insanas – que quase nunca ou jamais cuidam das causas, mas apenas dos efeitos – é que as filas para obter um prato de comida, um cobertor para dormir na rua e alguma roupa para se vestir estão somente aumentando cada vez mais, inexoravelmente, apesar dos esforços de doadores dotados de bom coração e de solidariedade, mero paliativo.

Por esses motivos, nossos governantes e políticos (deputados e senadores) se revelam seres pequenos que jamais crescem para exercerem mandatos fiéis aos seus juramentos. Apenas se esforçam na manutenção do seu status quo. Pelo visto, o futuro com o qual nos depararemos nos tempos que chegam é inarredavelmente estarrecedor. E no contexto econômico geral, a classe média que ainda subsiste que se cuide, pois é passado o tempo do risco de se tornar irremediavelmente inadimplente para a certeza de que isso acontecerá com todos os efeitos negativos possíveis de se imaginar. De classe média está se passando rapidamente para mínima. Quer uma prova? Há algumas décadas o salário do chefe da família era suficiente para sustentá-la. A contribuição da esposa que trabalhava servia para o aumento da qualidade de vida e/ou do patrimônio da família. Hoje em dia todos em casa precisam trabalhar para que se tenha um sustento minimamente adequado, sempre presente eterno endividamento, de forma especial no cartão de crédito, tão fácil de usar e tão difícil de pagar.

Toda essa situação se apresenta tendo como pano de fundo uma eleição que fugiu de todos os rumos democraticamente aceitáveis, por motivo de abusos de toda sorte que contra nossa ainda verde democracia se têm apresentado. A sociedade reagiu fortemente, mas o horizonte não é favorável porque podemos sair da frigideira e cairmos direto no fogo. Até porque o próximo governante e o parlamento que se avizinha não terão novas fontes de recursos para tomarem novas medidas oportunistas. A fonte secou completamente, a não ser que o Estado se endivide ainda mais, levando o teto dos gastos para a galáxia mais próxima, na melhor das situações. Afinal de contas, um PIB totalmente arruinado, mas que mesmo assim dê votos não é coisa para deixar de lado. O futuro é incerto e no longo prazo todos estaremos mortos, como dizia Lorde Keynes, não havendo ninguém para cobrar e ser cobrado.

Ave, governantes e políticos irresponsáveis, os que vão morrer não vos saúdam!

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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