O ordenamento jurídico brasileiro sofreu, ao longo dos tempos, diversas mudanças em relação aos modelos familiares. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o ordenamento jurídico passou a prever as novas espécies de família, assegurando a igualdade de tratamento de todos os filhos, sendo vedada a discriminação quanto à origem da filiação1. Dessa forma, a mudança dos paradigmas sociais causou, de maneira direta, reflexo no direito das famílias.
Os laços consanguíneos deixaram de ser suficientes para assegurar a maternidade e a paternidade, pois o direito de família contemporâneo desenvolve a ideia de que os laços afetivos são um dos principais alicerces nas famílias. Dessa forma, é importante conhecer a decisão do Supremo Tribunal Federal que teve repercussão geral a respeito do Recurso Extraordinário 898.060-SC2, tendo o Supremo Tribunal Federal decidido que a coexistência de paternidade socioafetiva não exime da responsabilidade do pai biológico, decorrendo todos os efeitos jurídicos entre as pessoas envolvidas.
A formação do afeto dá-se a partir da convivência entre as pessoas. A convivência é um dos principais meios para a formação da família socioafetiva. Nota-se que é normal haver convivência entre os filhos provenientes de relacionamentos anteriores dos pais e os comuns dentro do mesmo ambiente familiar. Diante dessa convivência, não há como evitar que o padrasto e/ou madrasta assumam as funções próprias da paternidade e/ou maternidade.3
A filiação pode ser biológica ou socioafetiva e ambas garantem direitos iguais a toda prole sem sofrer qualquer tipo de intolerância. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 204, admite que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas, quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”, abraçando a mesma ideia da Carta Magna.
O professor Cristiano Cassettari trouxe uma importante discussão à ciência jurídica, explicitando acerca da tese da multiparentalidade, que se define como “a possibilidade de ter dois pais e duas mães, totalizando três ou quatro pessoas no assento do nascimento da pessoa natural”5.
Dessa forma, o julgamento do Recurso Extraordinário 898.060/SC, em sede de repercussão geral 622 do STF, trouxe um avanço para ordenamento jurídico brasileiro, adotando a possibilidade do reconhecimento do instituto da socioafetividade na formação dos vínculos de parentesco, equiparando a filiação biológica e a socioafetiva, sendo vedada qualquer hierarquia entre elas, legitimando a coexistência registral de pais e mães biológicos e socioafetivos, ou seja, a multiparentalidade.6
O relator do presente julgado, Ministro Luiz Fux, alegou que não cumpre ao estado “determinar as finalidades a serem almejadas pelos indivíduos, mas sim respeitar a capacidade de autodeterminação destes”. 7
Desse modo, o reconhecimento da multiparentalidade, gera efeitos jurídicos em diversas esferas, como no direito sucessório, nas ações trabalhistas, nas próprias ações de família, mas o que nos interessa no presente artigo, são os efeitos que a multiparentalidade gera nos casos em que se discute a possibilidade da concessão de pensão por morte do Regime Geral da Previdência Social aos filhos com múltiplos pais.
Para que ocorra a concessão do benefício de pensão por morte, é necessário que alguns requisitos sejam preenchidos como: “a) ocorrência do evento morte; b) condição de dependente de quem objetiva a pensão e c) demonstração da qualidade de segurado do de cujus por ocasião do óbito”.8 Nesse sentido, o artigo 16 da lei 8.213/91 refere quem são os beneficiários do Regime Geral da Previdência Social na condição de dependentes do segurado:
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave; II - os pais; III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave.9
Quanto ao INSS, este não reconhece a parentalidade socioafetiva para fins de concessão da pensão por morte do Regime Geral da Previdência Social – RGPS, pois, compreende a autarquia previdenciária que o vínculo afetivo não é superior ao biológico e para que seja reconhecida a filiação socioafetiva para efeito de pensão por morte, deve haver o reconhecimento judicial, com participação do INSS na lide, a fim de que gere os efeitos previdenciários.10
Entretanto, apesar da autarquia não reconhecer o vínculo afetivo com o mesmo valor que o vínculo biológico, os Tribunais Regionais Federais vêm se posicionando a favor do reconhecimento da multiparentalidade e decidindo em prol da concessão do benefício de pensão por morte.11
Desse modo, é necessário que haja uma discussão acerca da comprovação da socioafetividade perante o INSS. Conforme o Provimento 63/17 do CNJ, que foi alterado pelo Provimento 83/19, cabe ao INSS “estabelecer um procedimento próprio para a comprovação da filiação socioafetiva para fins previdenciários, desde que observados os requisitos estabelecidos pela lei 8.213/91”.
No entanto, mesmo havendo o princípio da separação dos poderes, não existe impedimento para que a multiparentalidade produza efeitos dentro do RGPS de forma diversa daquela que foi estabelecida pelos provimentos supracitados.
Quanto ao meio de prova utilizado, seja prova documental ou testemunhal, para comprovação da filiação socioafetiva, ainda não há manifestação da autarquia quanto ao assunto. Porém, pode a autarquia previdenciária vir a solicitar “prova material contemporânea, quer dizer anterior ao óbito do instituidor, eventualmente corroborada por prova testemunhal, através de Justificação Administrativa, conforme Art. 135, §2 da IN INSS 77/15”12, a fim de demonstrar a condição da socioafetividade somente para fins previdenciários.
Ainda, é necessário analisar quanto à habilitação provisória do filho socioafetivo à pensão por morte. Veja que a MP nº 871/19, convertida na lei 13.846/19, introduziu o §3º no Art. 74 da lei 8.231/9113, a fim de permitir a habilitação provisória dos dependentes que tenham ingressado com eventual ação judicial para o reconhecimento de tal condição. “Permite-se que, para óbitos ocorridos a partir de 19/1/19, o dependente que possua uma ação judicial para o reconhecimento desta condição, reserve a sua cota até a efetiva declaração judicial transitada em julgado”.14
Assim, caso o falecido venha a deixar mais de um dependente previdenciário, àquele que ainda não tenha essa condição reconhecida judicialmente, mas que possua ação judicial em andamento para esta finalidade, não ficará prejudicado em razão da incidência do disposto no Art. 76 da lei 8.213/91. Caso a multiparentalidade venha a ser reconhecida posteriormente ao falecimento do segurado instituidor, pode-se requerer a habilitação provisória do filho socioafetivo a qualquer tempo.
Entretanto, apesar dessa oportunidade de habilitação provisória, tem-se que ter cuidado, pois somente é possível a hipótese de existência de uma demanda judicial, que pode vir a prejudicar outros dependentes socioafetivos que não tenham ainda buscado a tutela judicial.15
Dessa forma, demonstra-se necessário um procedimento administrativo acerca do reconhecimento da filiação socioafetiva, apenas para fins de acesso à pensão por morte, garantindo assim ao filho, o recebimento de sua cota, sem a necessidade de ajuizar ação judicial para declarar sua condição de dependente.
De outra forma, é necessária a discussão acerca da possibilidade de cumular pensões por morte ou com outros benefícios previdenciários. Nessa linha, conforme já mencionado anteriormente, as hipóteses de vedação ao recebimento conjunto de benefícios, encontram-se previstas no artigo 124, da lei 8.213/91. Além disso, pode-se mencionar o art. 167 do decreto 3.048/99 e o art. 528 da IN INSS 77/15, que tratam sobre as vedações ao recebimento do benefício.16
Veja que não há impedimento acerca da acumulação de dois ou mais benefícios de pensão por morte em caso do reconhecimento da multiparentalidade, pois de acordo com o princípio da legalidade, tem-se em conta que é “dado ao particular fazer tudo aquilo que a lei não veda, bem como que não cabe ao intérprete da lei restringir onde a lei não restringe”17
No entanto, o que pode surgir como dificuldade para o filho que vier a receber duas ou mais pensões por morte é acerca da comprovação de dependência econômica, pois havendo a verificação de que o dependente já recebe benefício previdenciário, fica complicado para este comprovar a dependência econômica e a necessidade de receber mais de um benefício.
Assim, em tese, é possível, sim a acumulação de duas ou mais pensões por morte em decorrência do falecimento do pai ou mãe biológicos e socioafetivos, diante da ausência de vedação legal expressa. Conforme expõe a autora Maria Berenice Dias “o que não é proibido é permitido!”18
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1 DIAS, Maria Berenice; OPPERMANN, Marta Cauduro. Multiparentalidade uma realidade que a justiça passou a admitir. Revista Juris Plenum, v. 11, n. 65, p. 13-20, 2015. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_13075)MULTIPARENTALIDADE__Berenice_e_Marta.pdf. Acesso em: 10 set. 2020.
2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE898.060/SC. Rel. Min. Luiz Fux. Julgado em: 21/09/2016. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13431919. Acesso em: 10 set. 2020.
3 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: famílias. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
4 BRASIL. Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 10 set. 2020.
5 CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos. 3. ed. rev., atual., e ampl. - São Paulo: Atlas, 2017. p. 183.
6 LIMA, Márcia Fidelis. O registro civil da parentalidade socioafetiva e da multiparentalidade. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, ano 18, n. 25, p. 41-42,2018.
7 ANNUNZIATO, Eduardo Sprada. Multiparentalidade Socioafetiva na pensão por morte do RGPS. Curitiba. 2020. Edição do Kindle.
8 NNUNZIATO, Eduardo Sprada. Multiparentalidade Socioafetiva na pensão por morte do RGPS. Curitiba. 2020, p. 747. Edição do Kindle.
9 BRASIL. Lei 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%208.213%2C%20DE%2024%20DE%20JULHO%20DE%201991.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20os%20Planos%20de,Social%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias. Acesso em: 11 set. 2020.
10 ANNUNZIATO, Eduardo Sprada. Multiparentalidade Socioafetiva na pensão por morte do RGPS. Curitiba. 2020. Edição do Kindle.
11 ANNUNZIATO, Eduardo Sprada. Multiparentalidade Socioafetiva na pensão por morte do RGPS. Curitiba. 2020, p. 889. Edição do Kindle.
12 ANNUNZIATO, Eduardo Sprada. Multiparentalidade Socioafetiva na pensão por morte do RGPS. Curitiba. 2020, p. 940. Edição do Kindle
13 ANNUNZIATO, Eduardo Sprada. Multiparentalidade Socioafetiva na pensão por morte do RGPS. Curitiba. 2020, p. 967. Edição do Kindle.
14 ANNUNZIATO, Eduardo Sprada. Multiparentalidade Socioafetiva na pensão por morte do RGPS. Curitiba. 2020. Edição do Kindle.
15 ANNUNZIATO, Eduardo Sprada. Multiparentalidade Socioafetiva na pensão por morte do RGPS. Curitiba. 2020. Edição do Kindle.
16 ANNUNZIATO, Eduardo Sprada. Multiparentalidade Socioafetiva na pensão por morte do RGPS. Curitiba. 2020. Edição do Kindle.
17 ANNUNZIATO, Eduardo Sprada. Multiparentalidade Socioafetiva na pensão por morte do RGPS. Curitiba. 2020, p. 1.033. Edição do Kindle.
18 DIAS, Maria Berenice. Filhos do afeto. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 215.