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Entenda a nova legislação de criptoativos da União Europeia

Independente do posicionamento que se adote, como uma indústria, o setor de criptoativos precisa estar atento à responsabilidade perante os usuários, que podem abranger desde sofisticados investidores e tecnólogos até aqueles que pouco sabem sobre instrumentos financeiros complexos.

1/8/2022

Recentemente, a União Europeia (EU) chegou a um acordo sobre como regular a indústria de criptoativos, dando sinal verde ao MiCA – Markets in Crypto-Assets.

Antes, os legisladores dos Estados-membros integrantes do Parlamento Europeu já tinham aprovado as regras sobre a transferência de fundos, concordando com o TFR – the Transfer of Funds Regulation, que ficou popularmente conhecido como “regra de viagem” (travel rule).

Diante deste cenário, vamos explorar duas legislações que devido a sua ampla abrangência, além de regularem a indústria cripto nos 27 países os da União Europeia, podem servir de parâmetro para os demais integrantes do GAFI.

Aqui, trataremos dos principais pontos sobre o “Markets in Crypto- Assets” (MiCA) e o  Transfer of Funds Regulation” (TFR) como, por exemplo: o que motivou a regulação europeia, os principais tópicos aprovados, quais atores foram atingidos, impactos na indústria de criptomoedas, tokens e blockchain.

Nosso objetivo, aqui, é ir além dos resultados, e pontuarmos principalmente as razões que levaram à legislação atual. Por isso, vamos voltar alguns anos atrás.

O impacto das recomendações do GAFI na legislação de criptoativos

O Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) é uma organização intergovernamental global. Seus membros incluem a maioria dos principais estados-nação e a UE.

Poucos sabem, mas o GAFI não é um órgão eleito democraticamente; é composto por representantes nomeados dos Estados-Membros. Esses membros trabalham para desenvolver recomendações (diretrizes) sobre como os Estados membros devem formar políticas de combate à lavagem de dinheiro e outras políticas de vigilância financeira.

De todo modo, conquanto as chamadas “recomendações” não sejam vinculativas, se um país membro se recusar a implementá-las, pode sofrer graves consequências diplomáticas e financeiras.

O GAFi lançou suas primeiras diretrizes sobre criptoativos (gênero do qual criptomoedas e tokens são gênero) em documento publicado no ano de 2015, mesmo ano em que o Congresso Brasileiro começou a debater o primeiro projeto de lei sobre criptomoedas.

Este primeiro documento  de 2015, que espelhava as políticas existentes do regulador americano AML FinCEN, foi reavaliado em 2019  e, em outubro de 2021, sobreveio um novo documento, intitulado “Updated Guidance for a risk-based approach to virtual assets and VASPs”, com as diretrizes atuais do GAFI sobre ativos virtuais.

Eis uma das principais razões para  Brasil, União Europeia, Estados Unidos e demais integrantes do GAFI têm se empenhado em regular o mercado de criptoativos.

Se observarmos as 29 das 98 jurisdições cujos Parlamentos já legislaram sobre a "regra de viagem", todas seguiram as recomendações do GAFI no sentido de garantir que os prestadores de serviços envolvendo criptoativos verifiquem e reportem às autoridades monetárias quem são seus clientes.

Importante destacar, aqui, que está recomendação do GAFI já é exigida no Brasil desde 2019, através da Instrução Normativa 1888, cujo teor determina que as corretoras de criptomoedas  do Brasil precisam mensalmente passar à Receita Federal informações sobre as operações realizadas pelos seus clientes.

Isto é, dados como titulares envolvidos na transação, quantidade de criptoativos, valor da operação e valor das possíveis taxas de serviço devem ser reportados à autoridade tributária do Brasil, sob pena de multa.

Bem por isso, os projetos de lei sobre criptoativos em trâmite no Congresso brasileiro devem seguir as sugestões do GAFI.

Esclarecido isto, vamos compreender como surgiram o “MiCA” e o TFR.

A Europa como um criador de padrões global de proteção ao consumidor e de finanças digitais

O MiCA é uma das propostas legislativos elaboradas dentro do âmbito do DFP – Digital Finance Package (DFP) – , uma espécie de Pacote Financeiro Digital lançado pela Comissão Europeia (CE) em 2020.

Este Pacote Financeiro Digital tem como principal objetivo, facilitar a competitividade e inovação do setor financeiro na União Europeia (UE), estabelecer a Europa como um criador de padrões global e fornecer proteção ao consumidor para finanças digitais e pagamentos modernos.

Neste quadro, duas propostas legislativas – o Regime Piloto sobre DLTs e o Regulamento dos Mercados de Criptoativos (MiCA), foram as primeiras ações tangíveis realizadas no âmbito do Pacote Financeiro Digital europeu.

No início de setembro de 2020, as propostas “vazaram” e foram adotadas pela CE no final daquele mês, assim como a regulação de Transferência de Fundos (TFR)

Tais iniciativas legislativas foram criadas em consonância com a União Europeia dos Mercados de Capitais, uma iniciativa de 2014 que visa estabelecer um mercado único de capitais em toda a UE, um esforço para reduzir as barreiras aos benefícios macroeconómicos.

Observe que cada proposta é apenas um projeto de lei que, para entrarem em vigor, precisam ser apreciados pelos 27 países integrantes do Parlamento Europeu e pelo Conselho da UE.

Assim, nos dias 29 de junho e 30 de junho dois acordos “provisórios” sobre o TFR e o MiCA, respectivamente, foram celebrados pelas equipes de negociação política do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia. Tais acordos ainda são provisórios, pois precisam passar pelo Comitê de Assuntos Econômicos e Monetários da UE, seguido por uma votação em plenário, antes que eles possam entrar em vigor.

Vejamos agora as principais disposições acordadas pelas equipes de negociação política do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu para o mercado de criptoativos (criptomoedas e tokens de referência à ativos como as stablecoins).

A Regulamentação da Transferência de Fundos” (TFR – the Transfer of Funds Regulation)

No dia 29 de junho, as equipes de negociação política do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia acordaram sobre novas regras de transferência de fundos no continente europeu (TFR), também conhecidas também como regras de viagem.

Estas regras detalharam requisitos específicos para transferências de criptoativos a serem observados entre provedores como exchanges,  carteiras não hospedadas (como ledger e Trezor) e carteiras auto hospedadas (como MetaMask), preenchendo uma grande lacuna existente no quadro legislativo europeu sobre lavagem de dinheiro.

Os principais tópicos aprovados, seguindo a linha de recomendação do GAFI, foram os seguintes:

1) Todas as transferências de criptoativos terão de estar ligadas a uma identidade real, independentemente do valor (rastreabilidade com limiar zero).

2) Os provedores de serviços envolvendo criptoativos –  que a legislação europeia chama de CASPs – terão que coletar informações sobre o emitente e o beneficiário das transferências que eles executam.

3) Todas as empresas que prestam serviços relacionados a criptos em quaisquer países integrantes da União Europeia se tornarão entidades obrigatórias nos termos da Diretiva de #AML existente.

4) Carteiras não hospedadas (isto é, wallets não custodiados por terceiros) serão atingidas pelas regras, porque os #CASPs serão obrigados a coletar e armazenar informações s/ transferências de seus clientes.

5) Medidas de compliance aprimoradas também serão aplicadas quando os CASPs da UE interagirem com entidades de países não integrantes da UE.

6) Proteção de dados: os dados das regras de viagem estarão sujeitos a requisitos sólidos da lei de proteção de dados europeia – GDPR.

7) O Conselho Europeu de Proteção de Dados (EDPB) será encarregado de definir as especificações técnicas de como as exigências da GDPR devem ser aplicadas à transmissão de dados de regras de viagem para transferências criptográficas.

8) Os CASPs intermediários que realizam uma transferência em nome de outro CASP serão incluídos no escopo e serão obrigados a coletar e transmitir as informações sobre o originador inicial e o beneficiário ao longo da cadeia.

Aqui, importante destacar que a regulação de transferência de fundos europeia (TFR) parece ter seguido na íntegra a recomendação consagrada na Recomendação 16 do GAFI.

Logo, não é suficiente que os provedores de serviços de criptoativos (CASPs) compartilhem dados de clientes uns com os outros. É preciso que seja realizada a devida diligência sobre outros CASPs, com que seus clientes fazem transações, como por exemplo, checar se outros CASPs executam verificações de KYC e possuem uma política de AML/CFT, ou facilitam transações com contrapartes de alto risco.

Ainda, este acordo sobre a regulação das transferências de fundos (TFR) deve ser aprovado, em paralelo, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, antes da publicação no Diário Oficial da EU, e terá início impreterivelmente 18 meses após sua entrada em vigor  - não sendo necessário aguardar a reforma das Diretrizes sobre Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Terrorismo em andamento.

Como o “Markets in Crypto- Assets” (MiCA) regula o setor de criptoativos na Europa: pontos-chave

MiCA é a proposta legislativa chave que regulamenta o setor cripto na Europa, conquanto não seja a única dentro do Pacote Financeiro Digital europeu.

Trata-se do primeiro marco de regulatório da indústria de criptoativos em escala global, já que sua aprovação impõe regras a serem seguidas por todos os 27 países membros da União Europeia.

Os negociadores do Conselho, da Comissão e do Parlamento Europeu, sob a Presidência francesa, chegaram a um acordo provisório sobre a supervisão dos Mercados de Criptoativos (MiCA), durante o trílogo político de 30 de junho.

Os pontos chave aprovados neste acordo são os seguintes:

1) Tanto a European Securities and Market Authority (ESMA), equivalente à CVM brasileira, quanto a European Bank Autority (EBA) terão poderes de intervenção para proibir ou restringir a prestação de serviços criptoativos pelos CASPs, bem como a comercialização, distribuição ou venda de criptoativos, em caso de ameaça à proteção do investidor, integridade do mercado ou estabilidade financeira.

2) ESMA também terá um papel de coordenação significativo para assegurar uma abordagem consistente à supervisão dos maiores CASPs com uma base de clientes acima de 15 milhões.

3) ESMA será encarregada de desenvolver uma metodologia e indicadores de sustentabilidade para medir o impacto dos criptoativos no clima e no meio ambiente, bem como classificar os mecanismos de consenso usados para emitir criptoativos, analisando seu uso de energia e estruturas de incentivo.

Aqui, importante destacar que, recentemente, a Comissão de Assuntos Econômicos e Monetários do Parlamento Europeu decidiu excluir do MiCA (por 32 votos a 24) proposta de disposição legal que tentava proibir, nos 27 países membros da EU, o uso de criptomoedas alimentadas pelo algoritmo da “prova de trabalho”.

4) O registro de entidades, com sede em terceiros países, operando na UE sem autorização será estabelecido pela ESMA, com base nas informações submetidas pelas autoridades competentes, supervisores de terceiros países ou identificados pela ESMA. As autoridades competentes terão poderes de longo alcance contra entidades listadas.

5) os provedores de serviços em criptoativos (CASPs) estarão sujeitos a robustas salvaguardas de Combate à Lavagem de dinheiro (AML).

6) Os CASPs da UE terão que ser estabelecidos e ter gestão substantiva na UE, incluindo um diretor residente e escritório registrado no Estado-Membro onde solicitam autorização. Haverá verificações robustas na administração, as pessoas com participações qualificadas no CASP ou pessoas com vínculos estreitos. A autorização deve ser recusada se as salvaguardas da AML não forem cumpridas.

7) Corretoras de criptoativos (exchanges) terão responsabilidade por danos ou perdas causadas a seus clientes devido a hacks ou falhas operacionais que eles deveriam ter evitado. Quanto às  criptomoedas, tais como Bitcoin, a corretora terá que fornecer um white paper e ser responsável por qualquer informação enganosa fornecida.

Aqui, importante que você saiba a diferença entre as espécies de criptoativos. Tanto criptomoedas como tokens são espécies de criptoativos, e ambos são utilizados como uma forma de armazenar e transacionar valor.

A principal diferença entre eles é lógica: criptomoedas representam transferências de valor “incorporadas ou nativas”; tokens representam transferências de valor “personalizáveis ou programáveis”.

Uma criptomoeda é um ativo digital “nativo ou incorporado” em determinada blockchain, que representam um valor monetário. Você “não” consegue programar uma criptomoeda; isto é, você não consegue alterar as características de uma criptomoeda, que são determinadas no seu blockchain nativo.

Já os tokens são um ativo digital “personalizável / programável” que rodam em um blockchain de 2ª ou 3ª geração que admite contratos inteligentes (códigos de software) mas avançados como o ethereum, tezos, rostock (RSK), solana, dentre outros.

Mas prosseguindo com os pontos chaves do MiCA recém-aprovados na União Europeia.

8) os CASPs terão que segregar os bens dos clientes e isolá-los. Isto significa que os criptoativos não serão afetados em caso de insolvência de uma corretora. 

9) CASPs terão de dar avisos claros aos investidores sobre o risco de volatilidade e perdas, totais ou parciais, associadas aos criptoativos, bem como cumprir as regras de divulgação de informações privilegiadas. As operações com informações privilegiadas e a manipulação de mercado estão estritamente proibidas.

10) As stablecoins ficaram sujeitas a um conjunto de regras ainda mais restritivo:

Apresentado pela primeira vez em 2020, o MiCA passou por várias iterações antes de chegar a este ponto, sendo que algumas disposições legislativas propostas se mostraram mais controversas do que outras, como é o caso dos NFTs que permanecem fora do escopo, mas podem ser reclassificados pelos supervisores caso a caso.

Isto é, os tokens não fungíveis que são oferecidos ao público a um preço fixo, como para ingressos para um evento ou como um item dentro de um videogame, ficaram fora das novas regras - embora nas discussões do acordo sobre o MiCA tenha sido ressaltado que NFTs podem ser introduzidos no escopo da MiCA em uma data posterior.

Na mesma linha, DeFi e empréstimos cripto ficaram fora neste acordo sobre o MiCA, mas um relatório com possíveis novas propostas legislativas terá que ser apresentado até 18 meses após sua entrada em vigor.

Quanto às stablecoins, foi cogitada sua vedação. Mas ao final, permaneceu o entendimento de que proibir ou limitar totalmente o uso de stablecoins dentro da União Europeia não seria consistente com os objetivos definidos no nível da UE para promover a inovação no setor financeiro.

Considerações finais

Logo depois que a celebração dos acordos sobre o TFR e o MiCA foi noticiada, houve manifestações de todo o tipo.

Alguns criticaram o teor do TFR, apontando que apesar dos legisladores terem cumprido seu papel, as medidas de identificação da origem e destinatário aprovados só conseguirão alcançar as moedas digitais dos Bancos Centrais, mas não as redes blockchain com foco em privacidade como Monero e Dash.

Outros defenderam a necessidade de uma estrutura harmonizada e abrangente como o MiCA, que traz clareza regulatória e limites para que os players da indústria consigam operar seus negócios com segurança nos diversos países integrantes da União Europeia.

E você, acredita que os formuladores de políticas europeus conseguiram usar essa oportunidade para construir uma estrutura regulatória sólida de ativos digitais, que promova a inovação responsável e mantenha os maus atores à distância? Ou pensa que novos meios de transações surgirão para impedir a rastreabilidade dos criptoativos com limiar zero?

Enxerga a necessidade de uma regulamentação para se evitar a perda de mais de US$ 1 trilhão em valor da indústria de ativos digitais nas últimas semanas, causado pelo risco anunciado das stablecoins algorítmicas? Ou acredita que a autorregulamentação do mercado é suficiente?

É verdade que o ajuste do mercado está sacudindo muitos golpistas e fraudadores. Mas infelizmente, também está prejudicando milhões de pequenos investidores e suas famílias.

Independente do posicionamento que se adote, como uma indústria, o setor de criptoativos precisa estar atento à responsabilidade perante os usuários, que podem abranger desde sofisticados investidores e tecnólogos até aqueles que pouco sabem sobre instrumentos financeiros complexos.

Tatiana Revoredo
Representante do "European Law Observatory on New Technologies" no Brasil. Especialista em Direito Digital e Professora de Blockchain para negócios no Insper. Membro-fundadora da Oxford Blockchain Foundation. Convidada pelo Parlamento Europeu, pelo Congresso Nacional e pela Government Blockchain Association para palestrar sobre blockchain, criptoativos e legislação.

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