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Multiparentalidade na união poliafetiva: algumas reflexões

Por instituir uma multiplicidade de orientações relacionais, os parceiros poliamorosos passam por muitos desafios à mononormatividade. Destarte, hão que lutar para tentar assegurar os seus direitos, inclusive batalhar pelo reconhecimento da paternidade biológica e socioafetiva em conjunto.

26/7/2022

A chama dos acirrados debates insiste em permanecer acesa no tocante às discussões acerca do reconhecimento jurídico das uniões poliafetivas. Enquanto a devida consideração legal não chega, os fatos continuam surgindo em decorrência da dinamicidade da vida, que não espera o vagar da justiça.

Em julho de 2022, uma criança oriunda de uma união poliafetiva entre três pessoas, foi registrada em um cartório de Londrina/PR, com três sobrenomes. Assim, o recém-nascido irá levar, além do sobrenome dos genitores biológicos, o da mãe afetiva. (IBDFAM, 2022)

A multiparentalidade já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e é gerida pelos Provimentos 63 e 83 do Conselho Nacional de Justiça brasileiro (CNJ).

O Provimento 83/19 do CNJ admite o registro feito diretamente em cartório, independente da intervenção estatal, quando o filho da multiparentalidade possui mais de doze anos. Para idade inferior a doze anos, apenas será aceitável o registro da criança recém-nascida em nome de um pai e duas mães com sentença judicial, admitindo e reconhecendo a multiparentalidade no mundo fático. (SANTANA; VIEIRA, 2022)

Consoante Marcos Alves da Silva (2021):

“Caso o magistrado tenha a compreensão da família a partir dos valores constitucionais e da leitura da Constituição feita hoje pelo Supremo em relação à multiparentalidade, parece-me que não há dúvida nenhuma de que o caso poderá ser resolvido em primeiro grau. Ainda assim, pode haver recurso do Ministério Público, que, necessariamente, vai intervir no feito, podendo levar o caso às instâncias superiores.”

Segundo acentua Ricardo Calderón (IBDFAM, 2020), a multiparentalidade, que é consolidada e reconhecida no Direito brasileiro, em geral, abarca a cumulação de vínculos socioafetivos e biológicos:

“Temos que ter em vista que esta multiparentalidade tem peculiaridades, e que nem sempre vai estar adequada para a situação do trisal.”

“Alguns trisais estão utilizando a alternativa de incluir, ao menos no sobrenome desse filho, o patronímico dos três que perfilam na relação. Contudo, para que os três possam perfilar nos registros de nascimento dessa criança como ascendentes de primeiro grau, ainda é necessária a autorização do Poder Judiciário”. (IBDFAM, 2022)

Considerando que a evolução social ainda caminha a passos lentos, o reconhecimento dos três genitores no Registro civil da criança deve ser demandado judicialmente, diante da negativa do registro direto no Cartório.

No Canadá, em 14 de junho de 2018, a Corte Suprema das Províncias de Terra Nova e Labrador, proferiu decisão sobre a parentalidade de uma criança advinda de uma família poliafetiva. O juiz Robert Fowler professou que os três membros eram os pais da criança oriunda da união ocorrida em 2017.

Reconheceu o magistrado que tratava-se de uma relação segura e acolhedora, estabelecida no melhor interesse da criança. O não reconhecimento desta paternidade privaria o filho de vários direitos e vantagens. Segundo a sentença (LESSARD, 2019, p.13-14):

No presente caso, a criança, A., nasceu no que se acredita ser uma relação familiar estável e amorosa que, embora fora do modelo tradicional de família, proporciona um ambiente seguro e acolhedor. O fato de que a certeza biológica da filiação ser desconhecida parece ser a força adesiva que mistura a identidade paterna de ambos os homens como os pais de A. Não consigo encontrar nada para menosprezar essa relação do ponto de vista do melhor interesse da criança.

[…] Não tenho motivos para acreditar que essa relação prejudique o melhor interesse da criança. Ao contrário, negar o reconhecimento da paternidade (parentesco) pelos Requerentes privaria o filho de ter uma herança paterna legal com todos os direitos e privilégios associados a essa designação. A sociedade está mudando continuamente e as estruturas familiares estão mudando junto com ela. Isto deve ser reconhecido como uma realidade e não em detrimento do interesse superior da criança.

De acordo com o disposto no art. 599 do Código Civil do Quebec, “pais e mães têm, em relação ao filho, o direito e o dever de guarda, vigilância e educação. Eles devem alimentar e manter seu filho.”

Por sua vez, o teor do art. 601 do Código Civil do Quebec apresenta uma saída possível para aperfeiçoar determinados problemas jurídicos ao permitir que os titulares do poder paternal incumbam parcialmente a guarda, vigilância, educação ou manutenção do filho a uma terceira pessoa. Pessoas poliamorosas poderiam fazer uso desse caminho para consentir que pais não reconhecidos como tal pelo estado civil  estabeleçam relações com a criança e ajam em seu interesse fora da vida doméstica, mormente na escola ou no hospital. Entretanto, não é garantido que os funcionários da escola ou do hospital respeitarão.

Ressalte-se aqui que, conforme o teor do art. 605 do CCQ, mesmo quando a guarda do filho tenha sido conferida a terceiro, os pais civis conservam o direito de vigiar a manutenção e educação do filho. Porém, isto não significa que com o compartilhamento do exercício do poder familiar, o progenitor civil não guardião perca a sua condição de titular do poder paternal. Deste modo, prosseguirá a desigualdade entre pais civis e outras pessoas que agem como pais (LESSARD, 2019, p.16).

Assim, como se depreende do exposto, por instituir uma multiplicidade de orientações relacionais, os parceiros poliamorosos passam por muitos desafios à mononormatividade. Destarte, hão  que lutar para tentar assegurar os seus direitos, inclusive batalhar pelo reconhecimento da paternidade biológica e socioafetiva em conjunto, obedecendo o princípio da paternidade responsável e o melhor interesse da criança.

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IBDFAM. Multiparentalidade: filho de trisal é registrado com os três sobrenomes no Paraná. Assessoria de Comunicação do IBDFAM (com informações do G1) Edição de 21 jul. 2022

LESSARD, Michaël. Mémoire sur le traitement juridique des personnes polyamoureuses et de leurs enfants. Présenté au Ministère de la Justice du Québec, 28 junho 2019.

SANTANA, Natan Galves; VIEIRA, Tereza Rodrigues. Famílias simultâneas e poliafetivas: Novos Modelos de Conjugalidades e Parentalidades. Brasília: Zakarewicz Editora, 2022.

SILVA. Marcos Alves. Plurais e diversas. Direito e Psicanálise. In_ Revista IBDFam, n. 58, 2021, pp.16-17.

Tereza Rodrigues Vieira
Pós-Doutora em Direito Université de Montreal. Mestre/Doutora em Direito PUC-SP. Especialista em Bioética Fac. Medicina da USP. Docente Mestrado Direito Processual e nagraduação em Medicina e Direito

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