1. Introdução
No dia 15 de julho 2022, foi publicada a Emenda Constitucional 125/22, fruto da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 39/21, pela Câmara Federal, após prévia aprovação no Senado. Tal emenda modificou o art. 105, da Constituição Federal, acrescentando novas regras ao juízo de admissibilidade do recurso especial.
Trata-se de medida que contou com forte apelo de membros do Poder Judiciário, especialmente do próprio Superior Tribunal de Justiça, pois confiam que as novas regras auxiliarão a Colenda Corte a gerir melhor o problema relacionado ao grande volume de recursos que todo ano ascende ao Tribunal Superior.
O objetivo do presente artigo é analisar, em termos gerais, as motivações que levaram a promulgação da Emenda Constitucional 125/22, as novidades efetivamente implementadas ao juízo de admissibilidade do recurso especial e, a partir disso, refletir sobre os possíveis impactos que as novas regras trarão na condução dos processos judiciais doravante.
2. A motivação da Proposta de Emenda à Constituição 39/21, que originou a Emenda Constitucional 125/22
A Proposta de Emenda à Constituição 39/21 teve como objetivo primordial reduzir o número de recursos especiais que chegam ao Superior Tribunal de Justiça e contou com amplo apoio dos Ministros integrantes da Corte.
O Min. Humberto Martins, atual presidente do Superior Tribunal de Justiça, em entrevista recente, assentou que "a aprovação da PEC contribui para a missão do tribunal e para o melhor funcionamento de todo o sistema de Justiça, pois possibilita ao STJ exercer de forma mais efetiva o seu verdadeiro papel de firmar teses jurídicas para pacificar o entendimento quanto às leis federais”.1.
Vale registrar que, dada a função constitucional do Superior Tribunal de Justiça – de processar e julgar em última instância os recursos especiais2 voltados contra acórdãos dos Tribunais de Justiça, proferidos em violação a expressa disposição de lei federal, ou que conduzam a interpretação da lei de modo diverso da conferida por outro Tribunal – 3, a implementação de um requisito de admissibilidade mais rigoroso ao recurso especial, que, na prática, restringe (talvez até drasticamente) esse exercício constitucional da Corte Superior, somente poderia ser implementada mediante Proposta de Emenda à Constituição. Lição, aliás, que o legislador trabalhista, ao introduzir o inconstitucional art. 896-A, §1º na CLT, não se atentou4.
A Proposta de Emenda à Constituição 39/21 foi aprovada pelos deputados federais no último dia 13 de julho, e, no último dia 15 de julho, foi publicada a Emenda Constitucional 125/22, da qual se originou, tornando vigente as adequações que vamos abordar no presente artigo.
3. Da série de medidas anteriores que também visaram combater a ‘crise’ dos recursos nos Tribunais Superiores
Não é a primeira vez que o legislador constituinte estabeleceu regras com vistas a reduzir o trabalho dos Tribunais Superiores. Aliás, podemos com tranquilidade dizer que a própria criação do Superior Tribunal de Justiça, por força da Constituição Federal de 1988, a rigor, foi uma medida com esse viés, uma vez que pensada para reduzir o volume de recursos que à época tramitavam exclusivamente perante o Supremo Tribunal Federal, o qual, desde a Reforma Constitucional de 1926, reunia a competência para processar e julgar recursos interpostos, tanto contra acórdãos que perpetrassem violações a norma constitucional quanto infraconstitucional5.
Até poderíamos retroceder mais e registrar que, na famigerada Carta Constitucional Militar de 1969, por meio da Emenda Constitucional 7/77, já existia o requisito da “arguição de relevância”6, também filtro de admissibilidade subjetivo para o então recurso extraordinário e que, ironicamente, por não ter sido considerado compatível com os ideais democráticos da Constituição de 1988, acabou sendo revogado na ocasião de sua promulgação, como bem ressalta Bruno Dantas:
“A arguição de relevância veio a ser totalmente eliminada do sistema com a promulgação da Constituição de 1988. Diante da pecha de antidemocrático, o instituto sucumbiu à sede de mudança que guiava o constituinte de 1988. A ideia de que o produto dos vinte e um anos de ditadura militar deveria ser, tanto quanto possível, banido do cenário nacional foi determinante para o ocaso da arguição de relevância"7
Mas, olhando novamente para o cenário normativo pós Constituição Federal de 1988, não há como deixar de citar a grande inspiração da Emenda Constitucional em estudo, o requisito da “repercussão geral” aos recursos extraordinários, introduzido no ordenamento jurídico por meio da Emenda Constitucional 45/04.
A partir de sua vigência, os recursos extraordinários, para serem admitidos perante o Supremo Tribunal Federal, passaram a ter de demonstrar em seu bojo que conduziam à apreciação da Corte Suprema temas com “repercussão geral”8, compreendidos como aqueles que demandassem interesses além das partes litigantes, com ampla repercussão social, jurídica, política ou econômica.
O legislador infraconstitucional, ao longo das últimas décadas, também municiou o Poder Judiciário com instrumentos processuais que objetivassem reduzir o volume de recursos distribuídos nos Tribunais Superiores. Nesse contexto, merece destaque a Lei 11.418/06, responsável por introduzir os artigos 543-A, B e C, ao CPC/73, os quais, por sua vez conferiram maiores contornos ao requisito de admissibilidade da “repercussão geral” e ainda introduziram no ordenamento jurídico, perante o Superior Tribunal de Justiça, a figura dos julgamentos de recursos especiais repetitivos.
Por meio dessa sistemática de julgamento, o Superior Tribunal de Justiça passou a poder selecionar recursos que veiculassem temas bastante debatidos no judiciário e com pretérita construção jurisprudencial da Corte (daí o termo ‘Repetitivos’, e não ‘Ineditivos’, como em obra específica já tivemos a oportunidade de ressaltar9) e, por meio de um único julgamento de mérito, firmar orientação jurisdicional que deveria doravante ser seguida pelos magistrados de todo o país ao julgarem processos semelhantes.
Ainda dentro do contexto normativo infraconstitucional, muito importante citar também o Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13105/15), que, em uma benfazeja evolução do sistema processual anterior, refinou o modelo de julgamentos repetitivos, estabelecendo efeito vinculante para suas decisões10 e até mesmo implementou um verdadeiro ‘sistema de precedentes’, na medida em que introduziu no ordenamento jurídico as figuras do Incidente de Assunção de Competência11 e, no âmbito regional, do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas12.
Há quem entenda – este autor inclusive – que, a rigor, a demanda por melhor controle do fluxo de recursos direcionados ao Superior Tribunal de Justiça, a qual motivou a edição da Emenda Constitucional ora em estudo, já estaria bem equacionada com essas reformas introduzidas pelo Código de Processo Civil de 2015. Sem contar as mais recentes medidas regimentais adotadas pela Corte Superior, tais como a análise mais criteriosa dos requisitos ‘clássicos’ de admissibilidade13, pelo órgão veiculado a presidência, no momento de autuação do recurso especial, ou mesmo a implementação do “plenário virtual”14 órgão por meio do qual, desde 201615, a Corte Superior passou a concentrar o julgamento de agravos internos e embargos de declaração.
A aparente equalização da crise dos recursos especiais pôde ser constatada inclusive pelos dados mais recentes do próprio Superior Tribunal de Justiça, divulgados no último 1 de julho16, ocasião na qual noticiava-se que a Corte conseguira, no primeiro semestre de 2022, julgar uma quantidade maior de recursos do que o número de novas distribuições. Segundo a matéria, teriam sido registrados 296.224 processos julgados, contra 208.118, de processos distribuídos. Uma taxa de 142% de cumprimento da meta do CNJ! Um feito e tanto, e que, a rigor, parecia transmitir a ideia de que, enfim, o problema estaria solucionado ou ao menos bem encaminhado.
Ainda assim, entretanto, prosseguiu-se a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição 39/21, culminando com sua aprovação e publicação da consequente Emenda Constitucional 125/22.
De modo que, concordemos ou não, é fato que agora as novas regras de admissibilidade para o recurso especial “estão entre nós” e todos os operadores do Direito, em especial os que militam perante o Superior Tribunal de Justiça, terão de se adaptar ao novo paradigma.
4. As novas regras do juízo de admissibilidade do recurso especial
O recurso especial sempre contou com requisitos de admissibilidade próprios e bastante rigorosos, tais como o prequestionamento, dissídio pretoriano, não poder revolver fatos e provas, ou mesmo ser voltado especificamente a argumentar violações a lei federal e divergência jurisprudencial. Ou seja, não era nada fácil ter seu recurso especial admitido na Corte Superior. Estudos recentes revelam17 que nada menos do que 92% (!) das decisões que negam análise de recursos especiais são mantidas pelo Superior Tribunal de Justiça.
Porém, não bastasse a dificuldade de se ter um recurso especial conhecido pelas regras até então vigentes, a partir da vigência da Emenda Constitucional, o recurso especial passará a ser considerado um recurso “ainda mais especial”, por assim dizer, pois o Superior Tribunal de Justiça somente poderá apreciar aqueles recursos que versarem sobre temas “relevantes”. Assim, estabelece a nova redação do §2, do art. 105, da CF:
“o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso”.
Convenhamos, o requisito de admissibilidade da relevância é extremamente subjetivo e dependerá demais da análise do caso concreto.
O risco da adoção de um requisito de admissibilidade subjetivo é o que passa a abrir margem a possibilidade de serem comandados juízos de valor dispares para situações comuns, ao arrepio do princípio constitucional da isonomia.
O que, na prática, significa que um recurso especial poderá não ser conhecido, porque o respectivo relator não entendeu o tema relevante, mas um outro recurso especial, sobre o mesmo tema, distribuído a outro julgador, poderá muito bem ser conhecido, e regularmente processado perante o Superior Tribunal de Justiça, se ele tiver um entendimento sobre a relevância do tema abordado no recurso de modo diferente do colega do exemplo anterior.
Tentando equalizar essa questão, é notório o esforço do legislador constituinte derivado que propôs a presunção de relevância de todos os recursos especiais, sendo necessária uma decisão colegiada, e por quórum qualificado, de 2/3 dos membros do respectivo órgão julgador competente, para que a presunção seja afastada.
Entretanto, ficam em aberto algumas questões: em que medida uma decisão colegiada, de 2/3 dos membros do órgão julgador competente, que negar a admissibilidade de um específico recurso especial, sobre uma determinada matéria, ‘vinculará’ o julgamento de admissibilidade de todos os outros recursos especiais semelhantes no futuro. Haverá espaço para juízos de distinção? E esse julgamento ‘preliminar’ será secreto, de modo que as partes serão apenas comunicadas formalmente, no ambiente virtual, sobre resultado do julgamento ‘colegiado’ ou será um julgamento efetivamente público, com possibilidade de debates e ‘sustentação oral’? Sendo vinculante o resultado do julgamento da preliminar de relevância sobre um determinado tema, de modo geral, amicus curiae poderão, previamente, manifestar-se especificamente sobre esse juízo de admissibilidade?
Todas essas questões são ainda muito complexas para o momento em que estamos vivenciando, dada a prematuridade da norma constitucional em estudo. Provavelmente só veremos suas respostas nas normas regulamentadoras que ainda virão e, claro, em construção doutrinária. Mas, sem dúvida alguma, são pontos que demandam imediata atenção dos operadores do Direito.
5. Hipóteses de relevância presumida, independentemente de apreciação pelo órgão colegiado
Como para toda regra há sua exceção, com o requisito de relevância do recurso especial não seria diferente. O legislador constituinte derivado se dedicou a apontar algumas hipóteses específicas em que o recurso especial sempre deverá ser admitido. Situações nas quais a presunção de relevância sequer poderá ser afastada pelo órgão colegiado.
5.1.Ações penais
A primeira regra de relevância presumida diz respeito aos recursos especiais interpostos em ações penais.
Trata-se em nosso sentir de uma justa exceção, fruto de negociação com a Ordem dos Advogados do Brasil, segundo relato18 da deputada, relatora da PEC 39/21, Bia Kicis (PL-DF) e como se depreende do termo amplo empregado na norma constitucional, não é restrito a ações penais que envolvam crimes contra a vida. Ações penais de qualquer natureza terão seus recursos especiais considerados como relevantes pelo Superior Tribunal de Justiça.
5.2. Improbidade administrativa e inexigibilidade
A nova regra também expressamente estabelece que será presumida a relevância do recurso especial sempre que ele tratar de temas relativos à improbidade administrativa, ou inexigibilidade do agente político.
Não deixa de ser no mínimo curioso que os agentes políticos tenham inserido nas regras de presunção de relevância justamente os temas que lhes são afetos.
5.3. Valor da causa maior que 500 salários-mínimos
Outra exceção disposta na nova regra constitucional, a qual autorizará a admissibilidade do recurso especial independente de apreciação preliminar por órgão colegiado, diz respeito aos recursos especiais interpostos em processos cujo valor da causa for atribuído em montante superior a 500 salários-mínimos. O equivalente, na presente data, a R$ 606.000,00.
Claramente está aqui estampada a preocupação do legislador constituinte derivado de assegurar o direito de acesso ao Superior Tribunal de Justiça às causas que envolvam “significativo” valor financeiro. Nos parece claro também que, diante da possibilidade de condenações ilíquidas, preferiu o legislador atrelar a identificação da importância financeira do processo à averiguação do valor da causa e não ao valor da condenação.
Mas, ficam em aberto algumas questões que também parecem sem respostas, dada a recém publicação da Emenda Constitucional em estudo, mas que não deixam de demandar nossa reflexão.
Peguemos como exemplo a antiga controvérsia em torno da assinatura base de telefone19 – situação por meio da qual o titular de uma linha telefônica fixa reclamava em juízo o pretenso direito de não ter de pagar um valor mensal apenas por ter a linha telefônica a disposição, independente de tê-la efetivamente utilizado. Trata-se de tema que, isoladamente observado, talvez não pareça ser relevante financeiramente falando (uma pessoa reclamando da companhia telefônica, em 2008, a cobrança mensal de algo próximo a R$ 4020), mas que quando observado coletivamente, dada a grande quantidade de pessoas que possuíam linhas telefônicas fixas à época, o tema seguramente passou a ter um significativo impacto financeiro para as companhias telefônicas, sem contar os consequentes reflexos sociais envolvidos.
Seria então o caso da regra constitucional também ter inserido exceção expressa aos recursos especiais oriundos de Ações Coletivas? Talvez.
De toda sorte, parece-nos necessário enxergar a regra de valor da causa superior a 500 salários mínimos como disposição voltada a prestigiar casos peculiares, cujas teses debatidas não tenham necessariamente ampla repercussão social, tampouco envolvam discussões interessantes a outras pessoas que não apenas as partes envolvidas diretamente no caso concreto.
Assim vislumbrada, a regra nos parece bem introduzida, pois, fosse, por hipótese, a “relevância” do recurso especial um critério exclusivamente de “repercussão geral”, como o é para o recurso extraordinário, muito provavelmente, casos de significativo impacto financeiro, mas interessantes apenas para as partes envolvidas, não teriam seus recursos especiais admitidos pelo Superior Tribunal de Justiça.
Fica, entretanto, a reflexão a respeito do alto valor estabelecido (convenhamos que R$ 606.000,00 é um montante demasiadamente elevado), o que sem dúvida acabará por impedir a subida de uma série de recursos cujos casos envolvam dramas sensivelmente particulares, logo sem repercussão social, que não envolvam valores expressivos, ou mesmo que tenham apenas natureza declaratória.
5.4. Jurisprudência dominante
A Emenda Constitucional franqueou ainda a possibilidade de subida ‘livre’ de Recursos Especiais cujas teses estejam amparadas em “jurisprudência dominante” do Superior Tribunal de Justiça.
Eis aqui talvez o ponto que demandará, em nossa opinião, maior exercício criativo por parte do operador do Direito. Afinal, a pergunta que não quer calar, há tempos diga-se: o que é ‘jurisprudência dominante’?
O fundamental aspecto que aqui nos parece necessário registrar é que, embora tivesse oportunidade, o legislador constituinte derivado claramente não atrelou a relevância presumida do recurso especial apenas e exclusivamente a teses estabelecidas em súmulas, ou precedentes vinculantes – entenda-se como aqueles que, no âmbito de competência do Superior Tribunal de Justiça, foram firmados mediante julgamento de recursos especiais repetitivos, ou incidentes de assunção de competência.
Logo, uma conclusão clara e importantíssima a ser estabelecida é que a Emenda Constitucional 125/22 não atrelou relevância presumida dos recursos especiais exclusivamente a teses abordadas em precedentes vinculantes. Nesse sentido, abre-se espaço para admissibilidade de recursos especiais, cujo tema encontra ressonância na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e que ainda não tenha ainda se tornado precedente, nem súmula.
Referida conclusão nos permite vislumbrar que eventuais regulamentações complementares, inclusive via regimento interno do Superior Tribunal de Justiça, que seguramente virão, não poderão privilegiar exclusivamente a subida de recursos baseados em precedentes vinculantes, ou sumulas da Corte Superior, em detrimento de outros cenários de ‘jurisprudência dominante’, sob pena de se perpetrar manifesta violação ao texto constitucional.
O que, entretanto, nos parece viável ser objeto de deliberação, inclusive em sede regimental por parte do Superior Tribunal de Justiça, seria o conceito de ‘jurisprudência dominante’, a que faz referência a nova redação do art. 105, da Constituição Federal. Seria aquela jurisprudência que contém decisões colegiadas de qualquer uma das Turmas julgadoras do Superior Tribunal de Justiça? Seria necessário ao menos um acórdão em cada uma das Turmas que compõem uma Seção21? Ou seria necessário acórdão de Seção? Decisões exclusivamente monocráticas deveriam também ser consideradas para composição do quórum de ‘jurisprudência dominante’?
Novamente, são todas questões muito importantes para fomentar o debate jurídico, que julgamos fundamental, sobretudo considerando o cenário prematuro da reforma Constitucional.
5.5.Outras hipóteses a serem previstas em lei
Por fim, mas não menos importante, a norma constitucional também faz a ressalva de que outras hipóteses de relevância presumida poderão ser regulamentadas no futuro, por meio de lei federal.
6. Regra ‘valendo’, ou ainda é necessária a edição de norma regulamentar para lhe conferir eficácia?
Um ponto que tem gerado debates diz respeito a ponderação sobre a imediata eficácia da norma constitucional em estudo.
O art. 2º e 3ª da Emenda Constitucional 125/22 é expresso ao estabelecer que ela entra em vigor na data de sua publicação. Logo, é compreensível quem defenda que, diante de clara disposição, a norma já seria aplicável imediatamente e o requisito da relevância poderia, a partir de então, valer para os recursos especiais interpostos.
No entanto, chamamos a atenção para a clássica doutrina do professor José Afonso da Silva22, que classifica as normas constitucionais de aplicação imediata, com relação a sua eficácia, em três tipos: plena, contida ou limitada.
As normas de aplicabilidade imediata, mas eficácia plena, são aquelas que não necessitam de regulamentação infraconstitucional, visto que, desde o momento da promulgação da Constituição, já estão aptas a produzir efeito.
As normas de aplicabilidade imediata e eficácia contida são normas em que o legislador constituinte possibilitou ao legislador infraconstitucional restringir seus efeitos. Assim, com a promulgação da Constituição, elas surtem efeitos em sua plenitude, mas uma lei infraconstitucional pode restringi-los.
Por fim, as normas de aplicabilidade imediata e eficácia limitada são aquelas que necessitam de regulamentação infraconstitucional para que surtam efeito de maneira plena.
Estas normas de aplicabilidade imediata e eficácia limitada, ainda se subdividem, segundo a doutrina do referido mestre23, em dois tipos: as de princípios institutivos e as de princípios programáticos.
As normas de eficácia limitada e de princípios institutivos são aquelas que traçam parâmetros para que o legislador infraconstitucional estabeleça a estrutura de órgãos, entidades ou institutos.
Já as normas de eficácia limitada e de princípios programáticos são aquelas em que o legislador constitucional traçou princípios e objetivos a serem alcançados com o objetivo de realizar fins sociais do Estado.
Sendo a ‘relevância’ um instrumento de gestão judiciária que, a rigor, confere novas estruturas ao instituto do recurso especial e consequentemente de regula melhor o acesso ao Superior Tribunal de Justiça, a luz da doutrina do mestre constitucionalista acima exposta, parece-nos razoável categorizar a regra da ‘relevância’ do recurso especial com uma norma constitucional, de aplicabilidade imediata, mas de eficácia limitada e de princípios institutivos.
O que significa concluir que o requisito da relevância do recurso especial, a rigor, ainda demanda a edição de uma lei federal, que possa regulamentar o instituto, e, com isso, seja possível atestar a sua eficácia no plano jurídico concreto.
Apenas por meio de norma regulamentar será possível estabelecer as balizas que deverão conduzir o julgamento da relevância, nas hipóteses não capituladas expressamente na norma constitucional, ou mesmo estabelecer o rito processual que deverá ser seguido.
A definição de um plano processual é importante, pois o requisito da relevância de certa maneira demandará o exame do mérito da questão envolvida no recurso, e exige que seja realizado por um órgão colegiado, o que torna inviável o modelo de exame de admissibilidade atualmente vigente no ordenamento jurídico processual, que é comandado por juízos monocráticos, tanto no âmbito do Tribunal de Justiça, quanto no próprio Superior Tribunal de Justiça, e que são vocacionados a proceder apenas o exame de questões preliminares, não de mérito.
Convém rememorar que o requisito da “repercussão geral”, em que pese ter sido inserido na Constituição Federal, em 2005, por meio da Ementa Constitucional 45, somente teve sua eficácia verificada em 2008, quando foi editada a lei 11.418/0624, que como já tivemos oportunidade de expor no presente artigo, ao inserir o art. 543-A, ao Código de Processo Civil de 1973, conferiu melhores contornos ao instituto e efetivamente o regulamentou. Sendo, de fato, por força dessa lei que se definiu a repercussão geral como sendo questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem o interesse subjetivo da causa.
7. Conclusão
Como vimos, a Emenda Constitucional 125/22, publicada em 15 de julho de 2022, modificou o art. 105, da CF, acrescentando novas regras ao juízo de admissibilidade do recurso especial, com vistas a atingir a expectativa, há muito existente, entre os membros do Superior Tribunal de Justiça, de enfim conseguiam controlar o volume de recursos que ascendem para julgamento perante Tribunal Superior.
Não se trata de medida isolada. Ao contrário, trata-se, em verdade, de norma que reflete a tendência de uma série de normas anteriores que, historicamente, foram editadas com o igual objetivo de tentar resolver o problema de política judiciária do volume de recursos dos Tribunais Superiores.
A nova regra, introduzida pela Emenda Constitucional 125/22, passou a exigir que todo recurso especial, para que seja admitido, consiga demonstrar que o tema nele versado seja ‘relevante’.
Estabelece a norma ainda que todo recurso especial gozará da presunção de relevância da matéria versada, sendo necessária a deliberação de 2/3 dos membros do órgão colegiado competente para que seja afastada essa presunção e, por consequência, o recurso especial seja inadmitido.
A norma ainda estabelece exceções à regra geral, nas quais a presunção de relevância do recurso especial não pode ser afastada pelo órgão colegiado. São elas: decorrentes de ações penais, relativas a temas de inelegibilidade ou improbidade administrativa; quando o valor da causa for superior a 500 salários mínimos, recurso fundado em jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, e outras hipóteses a serem definidas em lei federal.
Embora vigente, a Emenda Constitucional 125/22, alinhamos nosso entendimento a linha de pensamento que defende que o requisito da relevância do recurso especial, ainda demanda regulamentação complementar, por meio de lei federal, para que possa ter sua eficácia verificada no plano jurídico concreto.
Desse modo, entendemos que caberá tanto a regulamentação complementar, quanto a doutrina, e mesmo futura jurisprudência, conferir melhor direcionamento a diversas questões sensíveis, que, por ora, permanecem em aberto, tais como: a natureza vinculante da decisão do órgão colegiado que inadmitir a relevância de determinada tese jurídica; quais serão os critérios empregados para se aferir a relevância de um recurso especial; se podemos considerar presumida a relevância de recursos especiais oriundos de ações coletivas; qual o conceito de jurisprudência dominante; o procedimento a ser adotado pelo Tribunal Superior e os limites do juízo de admissibilidade comandado pelo Tribunal local, dentre outras, igualmente importantes, que propusemos o debate ao longo do presente artigo.
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1 _________, Notícias STJ – “Câmara dos Deputados aprova texto definitivo da PEC da Relevância”, publicado em 14/07/22, link: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/14072022-Camara-dos-Deputados-aprova-texto-definitivo-da-PEC-da-Relevancia.aspx - acesso realizado em 16/07/22.
2 art. 105, III, da CF.
3 E, claro, ainda que em menor frequência, contra acórdãos que julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal, nos termos do art. 105, III, “b”, da CF.
4 Trata-se de dispositivo cujo caput foi inserido na Consolidação das Leis do Trabalho em 2001, por meio da Medida Provisória 2.226/01 e que depois ganhou maiores contornos em 2017, por meio da edição da Lei 13.467/17. Referidas normas estabeleciam, sem amparo na Constituição Federal, que o Tribunal Superior do Trabalho somente poderia conhecer e julgar ‘Recursos de Revista’ que discutissem teses que oferecessem ‘transcendência’, sendo tal conceito compreendido pela própria lei como aquele que gerasse reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica. Para maiores detalhes sobre esse polêmico requisito de admissibilidade dos ‘Recursos de Revista’, recomendamos a leitura do artigo jurídico de Ricardo Calcini e Murilo Soares, junto ao repositório Consultor Jurídico, disponível em https://www.conjur.com.br/2021-mai-27/pratica-trabalhista-polemicas-transcendencia-recurso-revista - acesso em 16/07/22.
5 José Afonso da Silva sustentava que a chave para a crise do recurso extraordinário passava "por uma reforma constitucional, no capítulo do Poder Judiciário Federal, com o fim de redistribuir competências e atribuições dos órgãos judiciários da União” SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, p. 454.
6 art. 119, §1º, da CF/69 dispunha: “§ 1º As causas a que se fere o item III, alíneas a e d, deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal”.
7 DANTAS, Bruno. Repercussão geral: perspectivas histórica, dogmática e de direito comparado: questões processuais. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
8 art. 102, §3º, da CF.
9 GONZALEZ, Anselmo Moreira, “Repetitivos ou ‘Ineditivos’? Sistematização dos Recursos Especiais Repetitivos”, Ed. JusPodivm – 2020 - São Paulo.
10 art. 927 e incisos, do CPC/15.
11 art. 947, do CPC/15.
12 artigo 976, do CPC/15.
13 ex: tempestividade, poderes de representação, preparo, prequestionamento, óbices a Súmula 7 e 83, STJ.
14 vide. art. 184-A, do RISTJ.
15 data na qual entrou em vigor a Emenda Regimental nº 27/16, que introduziu o art. 184-A, parágrafo único e incisos, ao RISTJ. Para mais detalhes, recomenda-se a leitura do artigo jurídico disponibilizado no repositório jurídico Migalhas, acessível por meio do link https://www.migalhas.com.br/quentes/325225/plenario-virtual-do-stj-perde-em-transparencia-para-o-supremo - acesso realizado em 16/07/22.
16 vide Notícia STJ – ‘STJ Encerra primeiro semestre de 2022 julgando quase 90 mil processos a mais do que os distribuídos” – acessível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/01072022-STJ-encerra-primeiro-semestre-de-2022-julgando-quase-90-mil-processos-a-mais-do-que-os-distribuidos.aspxlink matéria do próprio stj de 2022 – acesso realizado em 16/07/22.
17 OLIVON, Beatriz, “STJ mantém 92% das decisões que negam análise de recursos” , Valor Econômico, publicado em 02/05/21 - https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/05/02/stj-mantem-92percent-das-decisoes-que-negam-analise-de-recursos.ghtm acesso em 16/07/22.
18 “Câmara Aprova PEC da Relevância para limitar recursos que chegam ao STJ”.
19 Tema que, de tão significante, redundou, em 2008, na edição da Súmula 356, do STJ, que diz “É legítima a cobrança da tarifa básica pelo uso dos serviços de telefonia fixa”.
20 vide valor estimado na matéria de Gladys Ferraz Magalhães, InfoMoney -“Após barrar contratos de telefonia, ONG lutará por menor valor de assinatura”, publicado em 18/11/08, link https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/apos-barrar-contratos-de-telefonia-ong-lutara-por-menor-valor-de-assinatura/, acesso em 16/07/2022.
21 a 1ª Seção é composta por Ministros integrantes da 1ª e 2ª Turmas. A 2ª Seção, por Ministros da 3ª e 4ª Turma. A 3ª Seção, por Ministros da 5ª e 6ª Turma.
22 DA SILVA, José Afonso - Aplicabilidade das Normas Constitucionais - 5ªEd. – São Paulo/SP, Malheiros Editores, 2001.
23 Idem.
24 A natureza regulamentar do instituto da repercussão geral, inclusive, consta expressamente estampada no introito da referida lei, nesses termos: “Acrescenta à Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, dispositivos que regulamentam o § 3º do art. 102 da Constituição Federal” – grifou-se.
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“Câmara Aprova PEC da Relevância para limitar recursos que chegam ao STJ”.
_________, Migalhas, “Plenário Virtual do STJ perde em transparência para o Supremo”, publicado em 24/04/20, link https://www.migalhas.com.br/quentes/325225/plenario-virtual-do-stj-perde-em-transparencia-para-o-supremo, acesso realizado em 16/07/22
________, Notícia STJ, ‘STJ Encerra primeiro semestre de 2022 julgando quase 90 mil processos a mais do que os distribuídos”, publicado em 01/07/22, link: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/01072022-STJ-encerra-primeiro-semestre-de-2022-julgando-quase-90-mil-processos-a-mais-do-que-os-distribuidos.aspx, acesso realizado em 16/07/22
_________, Notícias STJ – “Câmara dos Deputados aprova texto definitivo da PEC da Relevância”, publicado em 14/07/22, link: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/14072022-Camara-dos-Deputados-aprova-texto-definitivo-da-PEC-da-Relevancia.aspx - acesso realizado em 16/07/22
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