Da ausência de responsabilidade civil do proprietário de veículo automotor utilizado por terceiro e as regras do novo código civil
Tânia Vainsencher*
Em outros tempos, a jurisprudência clamava pela responsabilização praticamente objetiva do proprietário de veículos automotivos pelos danos praticados a terceiros em razão do uso do bem por pessoa distinta do proprietário. Existia, através de construção pretoriana, uma responsabilização solidária do proprietário do veículo e do condutor, independentemente das circunstâncias do fato1.
Há uma lei nova a clamar por interpretação e não se pode simplesmente ficar repetindo os entendimentos proclamados sob a égide da norma anterior. Desta forma, de nada serviria atualizações legislativas.
Através de uma análise mais acurada da matéria, através de doutrina e jurisprudência contemporâneas, sinaliza-se a inexistência de solidariedade entre o condutor e o proprietário do veículo, salvo nos casos previstos no artigo 932 do novo Código Civil, correspondente ao antigo artigo 1.521 do Código Civil de 1916 (clique aqui). E de outra forma não poderia ser. Senão vejamos.
A responsabilidade civil no direito brasileiro tem como regra geral a responsabilidade por ato próprio, existindo exceções à regra previstas de forma cerrada na legislação brasileira. Não há, contudo, em qualquer lei brasileira brecha que se permita imputar responsabilidade solidária ao proprietário do veículo automotivo e o condutor que se envolve em acidente de trânsito, salvo se comprovada cabalmente a contribuição do proprietário para o evento lesivo (responsabilidade por mão própria), contribuição essa que há de ser necessariamente diversa do simples exercício da propriedade de um bem. Temos, pois, o clássico exemplo de proprietário de veículo automotor que entrega chaves a menor sem habilitação, ou a pessoa nitidamente embriagada. Nesses casos se solidariedade há é por fato próprio, conduta do proprietário que contribui para o evento lesivo, e não derivada do mero exercício do direito de propriedade (responsabilidade objetiva).
Ao contrário, se o proprietário apenas empresta o seu veículo a terceiro para que esse o utilize em comodato, sem que o proprietário aufira qualquer vantagem em tal conduta, ou que o ato não seja praticado em seu interesse, não há como se transferir ao proprietário responsabilidade de outrem, por faltar amparo legal.
Não há como se vislumbrar responsabilidade civil do proprietário do veículo que não conduzia o bem de sua propriedade no momento do acidente, que em nada tenha contribuído para o evento, a não ser pelo simples fato de ser proprietário de um bem emprestado a terceiro devidamente habilitado.
Lembre-se que o legislador do novo Código Civil, quando quis recepcionar as inovações jurisprudenciais as encampou expressamente no texto legal, v.g tornando indiscutível a culpa nos casos de responsabilidade presumida. O que o legislador não recepcionou é por que assim não interessou proceder. Ou seja, não desejou a inclusão da norma no direito brasileiro. No novo Código Civil não há uma norma sequer prevendo que o proprietário de uma coisa responde apenas por ser proprietário da coisa usada.
O artigo 932 do novo Código Civil correspondente ao antigo art. 1.521 do Código Civil de 1916, patente regra de solidariedade imposta por lei, assim dispõe:
Art. 932: São também responsáveis pela reparação civil:
I- os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;
II- o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;
III- o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;
IV- os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;
V- os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até concorrente quantia.
Observe-se que só há de se cogitar responsabilidade solidária do proprietário de um veículo e seu condutor quando o último é filho deste; tutelado; curatelado; empregado; preposto ou serviçal. Caso contrário, não se enquadrando assim em nenhuma das hipóteses autorizadoras da lei civil, impossível é a aplicação automática de um entendimento vetusto e descuidado, que cria responsabilidade solidária apenas pela propriedade da coisa à míngua de previsão legal.
Não é demais rememorar que solidariedade só pode ser criada por lei ou por vontade expressa e inequívoca das partes, e in casu não há uma só previsão legal que imponha obrigação solidária ao proprietário de um veículo que entregou as chaves a uma pessoa habilitada e sem qualquer vínculo nos termos do art 1.521 do antigo Código Civil, atual artigo 932 do novo Código Civil.
Eventual construção pretoriana em sentido contrário é contra legem e deve ser fortemente repudiada, visto que ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa, salvo em virtude de imposição legal nos termos constitucionais. Tenha-se em mira, ainda, que os entendimentos jurisprudenciais anteriores se inseriam em contexto de interpretação de norma revogada, absolutamente inacolhida pela lei atual.
Acertadamente nossos tribunais têm demonstrado sinais de coerência e comprometimento com a lei, rechaçando pretensão de imputar responsabilidade a proprietário de veículo quando o acidente é causado por terceiro condutor que não guarda qualquer correlação com os casos previstos no artigo 932 do novel Código Civil:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRANSITO. AUSENCIA DE CULPA. FATO DE TERCEIRO. IMPROCEDENCIA DO PEDIDO. Responsabilidade civil. Acidente de trânsito. Proprietário de veículo. Ausência de culpa. Fato de terceiro. Comodato à filha de 23 anos, que era habilitada a dirigir. Inexistência da pretendida responsabilidade objetiva do dono. Apelação não provida. (TJ/RJ, Apelação Cível 2003.001.14740, Dês. BERNARDO MOREIRA GARCEZ NETO - Julgamento: 5/8/2003 - DECIMA CAMARA CIVEL)
RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRANSITO. COLISAO DE VEICULOS. SEGURO DE VEICULO. SUB-ROGAÇÃO. DANO. INDENIZAÇÃO.Responsabilidade civil Indenização Sub-rogação - O pagamento efetuado pela seguradora a seu segurado, assegura o direito de receber indenização do causador do dano e não do proprietário do veiculo, a não ser que este tenha agido com culpa in eligendo ou in, vigilando - Não incidência, quanto a este, do disposto no inc. III do art. 1. 521 do Código de Civil, porquanto entre o motorista causador do acidente e a apelante não havia qualquer relação de subordinação, visto que se tratava de comodato - Apelos providos. (TJ/RJ, Apelação Cível 2002.001.10871, DES. GAMALIEL Q. DE SOUZA - DECIMA SEGUNDA CAMARA CIVEL
RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE AUTO MOBILISTICO. ACOES RECIPROCAS ENTRE OS ENVOLVIDOS NO EVENTO. MANDATO PASSADO <_st13a_personname w:st="on" productid="EM OUTRO PAIS. ENTREGA">EM OUTRO PAIS. ENTREGA DA DIRECAO DE VEICULO A TERCEIRO COMODATO. COLISAO PELA TRASEIRA. EMBORA LAVRADO <_st13a_personname w:st="on" productid="EM PORTUGAL E SEM">EM PORTUGAL E SEM QUALQUER AUTENTICACAO CONSULAR, O INSTRUMENTO PUBLICO DE MANDATO FOI ASSINADO PELA OUTORGANTE, PODENDO , PORTANTO, SER ACEITO COMO DOCUMENTO PARTICULAR (ART. 38 E 371,II DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL - clique aqui). EMPRESTIMO DE VEICULO, COMODATO, INOCORRENCIA DE QUALQUER DAS HIPOTESES DO ART. 1521 DO CODIGO DE PROCESSO CIVIL. AUSENCIA DE RESPONSABILIDADE DO PROPRIETARIO DE INDENIZAR, SE NAO PROVADO QUE AGIU CULPOSAMENTE, AO ENTREGAR A DIRECAO A QUEM NAO ESTAVA APTO A CONDUZIR VEICULOS. COLISAO PELA TRASEIRA. AQUELE QUE COLIDE COM A TRASEIRA DO OUTRO VEICULO E O PRESUMIDO CULPADO PELO EVENTO, COMPETINDO O CONTRARIO COMPROVAR. IMPROCEDENCIA DOS PEDIDOS DE AMBAS AS ACOES. (TJ/RJ, Apelação Cível 1999.001.18551, DES. SERGIO LUCIO CRUZ - Julgamento: 22/2/2000 - TERCEIRA CAMARA CIVEL)
“Sem prova efetiva de culpa, não se pode responsabilizar o proprietário do veículo emprestado a outrem que, em o dirigindo, dá causa ao acidente.” (TJ/DF, Emb Infring. na apelação cível n/ 8.153/81-Regm Int. 24.417- j. 5/11/52)
“O que autoriza a procedência da ação civil do dano contra o proprietário do veículo dirigido por terceiro não é a propriedade, mas sim a preposição, nos termos do art. 1521, III do CC” (TJ/DF, Ap. Cível 34.720/95, DJ 17/0/95)
“Para a caracterização da responsabilidade civil por acidente de veiculo dirigido por terceiro não importa o direito de propriedade, mas a relação de preposição e o agente.” (TA/MG, Ap. Cível 38.623-j. 31/5/88)
Sérgio Cavalieri Filho, em sua obra “Programa de Responsabilidade Civil, 2ª Edição, Malheiros, 1999, p. 129) assim preleciona com perfeição:
“(...) penalizar o dono do veículo pelo eventual acidente causado pelo comodatário seria responsabilizá-lo objetivamente, só pelo fato de ser o dono da coisa, hipótese de responsabilidade objetiva não prevista em nossa legislação.”
De igual modo, e com sua sapiência usual, Wilson de Melo da Silva, in “Da Responsabilidade Civil Automobilística”, reforçando a tese esposada:
“(...) Duas figuras jurídicas poderiam aí surgir: a do comodato e a da preposição propriamente dita (...) Na hipótese do comodato, vale dizer da utilização gratuita do veiculo pelo amigo ou pelo parente, pura e simplesmente, sem a obrigatoriedade de um determinado encargo, o dono não se tornaria responsável pela reparação dos danos conseqüentes de um desastre pelo só fato de ser dono (...) O ser, alguém, dono de um automóvel, por si só, não implicaria dever, necessariamente, erigir-se, ele, no responsável obrigatório pela reparação dos danos ocorridos em seu veículo.” (Ed. Saraiva, 2° Edição, 1975, p. 254)
Afinal, até nos casos em que existe previsão legal, como na hipótese do empregador responder por ato do empregado a própria jurisprudência abranda a interpretação para afastar a responsabilidade do empregador se o empregado não estava exercendo função ou no horário de trabalho, embora com o veículo da empresa (STF RE 33.766, Rel Min. Antonio Vilas Boas).
De tal arte, fica evidente que a interpretação cuidadosa demonstra não ser a mera propriedade o que estabelece responsabilidade, e sim a culpa. Por todo e qualquer ângulo impossível se vislumbrar responsabilidade pelo simples fato de se ser proprietário de um veículo.
Vale lembrar que as únicas previsões legais de responsabilidade surgida em razão da PROPRIEDADE DE COISA são os artigos 936 e 937 do novel Código Civil, correspondentes aos antigos 1.527 e 1.528 do Código Civil de 1916:
Art. 936: O dono ou detentor do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior.
Art. 937: O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem da ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta.
De tal arte, só há responsabilidade por simples propriedade de BEM no caso de ANIMAL e EDIFÍCIO, não existindo margem para se estender a VEÍCULO, visto que não se pode legislar por via transversa. Se a responsabilidade “por ser proprietário” sempre existisse não seriam necessários estes dois dispositivos legais e, como cediço, não existem normas desnecessárias. Em outras palavras, existe a norma porque a regra do nosso direito, não alterada no caso concreto, é que ser dono não torna ninguém responsável por ato praticado por outrem, quando o uso foi cedido de forma regular e sem obtenção de vantagem.
Caso se pudesse imputar responsabilidade pelo simples fato de ser proprietário de um bem ou coisa, não haveria razão jurídica para o legislador ter ressalvado a hipótese de dano causado por ANIMAL ou EDIFICIO, visto que bastaria ser proprietário para indenizar em qualquer caso, o que é patente despautério e desvio de finalidade.
Diante de todas as razões fortemente jurídicas supra, não se pode impor responsabilidade civil ao proprietário de veículo automotivo por ato de terceiro, condutor, que não se enquadra em qualquer previsão do art. 932 do Código Civil Brasileiro.
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1APELACAO CIVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL <_st13a_personname w:st="on" productid="EM ACIDENTE DE TRANSITO.">EM ACIDENTE DE TRANSITO. ACAO INDENIZATORIA. ATROPELAMENTO FATAL. RESPONSABILIDADE SOLIDARIA DO PROPRIETARIO DO VEICULO COM O SEU CONDUTOR. CULPA CARACTERIZADA. APELO IMPROVIDO. (Apelação Cível Nº 598275022, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos Madalena Carvalho, Julgado em 18/03/1999)
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*Advogada do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia
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