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Relevância da questão federal no recurso especial: observações acerca da EC 125

O presente ensaio objetiva apresentar algumas reflexões acerca das consequências práticas advindas da Emenda Constitucional 125.

20/7/2022

O presente ensaio objetiva apresentar algumas reflexões acerca das consequências práticas advindas da Emenda Constitucional 125, que acrescentou ao art. 105, da Constituição Federal os parágrafos 2º e 3º, incluindo, para os Recursos Especiais interpostos a partir de sua publicação (ocorrida em 15/7/22), a necessidade de demonstração da presença da relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso concreto.

Claro que este novo requisito de admissibilidade faz parte de um tema maior e que ultrapassa o limite deste espaço, dialogando com a Repercussão Geral no Recurso Extraordinário e com a ampliação, de um lado, dos filtros recursais e, de outro, da força dos precedentes qualificados firmados pelos Tribunais Superiores.

Aliás, a própria lei que irá regulamentar o instituto e que está mencionada no art. 105, §2º, da CF, deverá aproximar os institutos da Relevância da Questão Federal e Repercussão Geral, com reflexos nos futuros casos concretos com idêntica questão e diminuição do número de Agravos em Recurso Especial (art. 1.042, do CPC), como restará apontado ao final deste texto.

É necessário fazer duas ressalvas, antes de seguir adiante. A primeira é que estas linhas estão sendo escritas antes da edição da lei expressamente mencionada pela Emenda, e com propósito de contribuir para o debate acadêmico visando interpretar a sistemática a ser adotada pelo novo requisito constitucional. A segunda é deixar claro que a Relevância da Questão Federal deve ser comprovada apenas para o Recurso Especial e o Agravo em Recurso Especial, não atingindo outras classes de ações, incidentes e recursos que tramitam no Superior Tribunal de Justiça (como ações de competência originária ou recursal previstas no art. 105, I e II, da CF/88, recursos ordinários em mandado de segurança, mandado de injunção, habeas corpus, habeas data, reclamação, ação rescisória, pedido de suspensão etc.).

Questão interessante a ser enfrentada é quanto à eficácia imediata da mudança constitucional, especialmente considerando a passagem, contida no §2º, do art. 105, da CF/88 (com redação dada pela Emenda Constitucional nº 125), de que a Relevância da questão de direito será apreciada nos termos da lei.

Em verdade, há certa contradição em relação aos art. 2º e 1º (especialmente no que respeita à inclusão do §2º, ao art. 105, da CF/88) da referida Emenda Constitucional, tendo em vista que, naquele, há o indicativo de vigência imediata, enquanto neste há a menção à necessidade de lei.

Quanto ao ponto, entendo que, em relação às situações objetivamente incluídas no art. 105, §3º, da CF/88, a vigência é imediata, sem prejuízo da futura lei estabelecer (outros) aspectos subjetivos e procedimentais para a demonstração da Relevância da Questão Federal infraconstitucional.

Em singela conclusão, mesmo admitindo que há contradição entre os dispositivos apontados, o que pode gerar divergência interpretativa, penso que a alteração tem eficácia imediata nas cinco hipóteses previstas na Emenda Constitucional nº 125, sem prejuízo de outras que venham a ser disciplinadas na futura lei.

A preliminar de Relevância da Questão Federal, portanto, já deve ser apresentada em todos os recursos especiais interpostos a partir da data da publicação da Emenda, no que respeita aos critérios objetivos expressamente por ela estabelecidos. O art. 105, §3º, VI, da CF/88 (com redação advinda da própria Emenda) consagra a possibilidade de outras hipóteses serem previstas na lei, pelo que a aplicação imediata da mudança Constitucional é apenas parcial.

Este mesmo art. 105, §2º, da CF/88, consagra uma conduta obrigatória ao recorrente: a demonstração da Relevância da Questão Federal nele discutida, como requisito de admissibilidade a ser apreciado pelo Superior Tribunal da Justiça, podendo ser afastada pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do Órgão competente para julgamento. Assim, levando em conta que os recursos especiais são, em regra apreciados pelas Turmas da Corte da Cidadania e sendo estas compostas por cinco membros, é necessário fazer o arredondamento numérico para afirmar que o afastamento da Relevância dependerá de votos de quatro Ministros.

Em relação às hipóteses de presunção objetiva de Relevância, previstas no art. 105, §3º, da CF/88 (ações penais, de improbidade administrativa, que possam gerar inelegibilidade, cujo valor da causa ultrapasse quinhentos salários mínimos, e hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante da própria Corte Superior), é importante fazer algumas observações, especialmente em relação às duas últimas, considerando que houve escolha objetiva da Emenda Constitucional  em relação ao conteúdo das ações, nos três primeiros casos.

Quanto ao valor da causa, a Emenda fixou a Relevância objetivamente ligada a quantificação elevada, que é a mesma que dispensa remessa necessária em condenações dos Estados, Distrito Federal, respectivas autarquias e fundações, além dos Municípios que são capitais dos Estados (art. 496, §3º, II, do CPC). Contudo, ao invés de valor da causa, deveria ter mencionado condenação, proveito econômico ou valor atualizado da causa, como prevê o CPC em relação aos critérios para fixação de honorários sucumbenciais (art. 85, §2º, do CPC).

Com efeito, existem demandas judiciais em que o valor da causa é baixo, mas a condenação ou o proveito econômico pode ultrapassar esses quinhentos salários-mínimos e, em interpretação literal do dispositivo constitucional, não teria relevância do ponto de vista objetivo. Nada impede que em causas com valor menor, o recorrente demonstre a presença da Relevância da Questão Federal de forma subjetiva (transcendência da questão).

Aliás, é importante observar que, em relação às causas penais, não houve qualquer restrição quanto a gravidade do ilícito, a elevada pena aplicada ou a complexidade do direito discutido (mesmo as de menor potencial ofensivo têm Relevância), ao passo que nas causas não penais, a Emenda estabeleceu o critério valorativo no mínimo discutível para presumir a relevância. Esta mesma crítica pode ser feita em relação às ações de improbidade e aquelas que possam gerar inelegibilidade, que podem ser menos complexas do ponto de vista social, político, jurídico ou mesmo econômico, que outras causas não penais que tenham valor da causa abaixo de quinhentos salários-mínimos.

Esses critérios objetivos relacionados ao objeto litigioso e ao valor da causa, portanto, não estão imunes a observações e críticas.

Quanto ao conflito entre acórdão local e jurisprudência dominante do Superior Tribunal Superior – que deverá ser o critério mais utilizado na prática forense - algumas considerações devem ser feitas visando contribuir para a correta compreensão da modificação constitucional.

A própria expressão jurisprudência dominante é de difícil conceituação, apesar de também estar presente no instituto da Repercussão Geral (art. 1035, §3º, I, do CPC). Melhor seria, visando uniformizar os textos da Constituição e do Código de Processo Civil, consagrar contrariedade a súmula ou jurisprudência dominante.

De toda sorte, caberá ao recorrente abrir esse debate argumentativo, que já é feito na demonstração da Repercussão Geral no Recurso Extraordinário, entre o acórdão local e a interpretação da jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça (advinda especialmente de recursos repetitivos ou de julgados provenientes das suas Seções ou Corte Especial).

Ainda existem outras reflexões a serem feitas relativamente a este critério objetivo previsto no art. 105, §3º, V, da CF/88. Considerando a função uniformizadora da Corte da Cidadania, bem como a própria previsão do art. 105, III, c, da CF/88, a relevância não estará objetivamente presente em caso de interpretação de lei federal de forma divergente entre tribunais locais (estaduais ou regionais federais)? A conclusão que se chega pela simples leitura do texto advindo da Emenda Constitucional é de que a Relevância objetivamente prevista alcança apenas a contrariedade entre o acórdão recorrido e a jurisprudência dominante do Tribunal Superior, não alcançando a divergência entre tribunais locais.

A solução passa, a meu ver, pela previsão da lei futura de critérios subjetivos para a aferição da Relevância da Questão Federal em caso de divergência entre julgados de tribunais locais, à semelhança da Repercussão Geral no Recurso Extraordinário quando presentes “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo” (art. 1.035, §1º, do CPC).

Dito de outra forma: em caso de conflito entre tribunais locais relacionado à interpretação da lei federal, deve o recorrente demonstrar subjetivamente a presença da transcendência da questão discutida no caso concreto.

Esta mesma argumentação dialética e subjetiva está presente em outras situações práticas relevantes, mas que não foram listadas na Emenda Constitucional (como ações civis públicas, demandas envolvendo direito à saúde, consumidor, família, sucessões, direitos transindividuais etc.). No caso concreto caberá ao recorrente demonstrar a existência da Relevância, seguindo o padrão a ser fixação pela futura lei e que deverá trabalhar com o conceito de transcendência da questão federal discutida, à semelhança com os critérios definidos pelo CPC em relação à Repercussão Geral (art. 1.035, §1º, do CPC).

Outrossim, há a necessidade de fazer análise da hipótese do ar. 105, §3º, V, da CF/88, em conjunto com a previsão do art. 1.030, I, b, do CPC, que prevê a negativa de seguimento de Recurso Especial sacado contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Superior Tribunal de Justiça exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos.

É possível ocorrer a seguinte hipótese: caso o apelo especial tenha o seguimento negado pelo art. 1.030, I, b, do CPC, mesmo tendo no recurso a demonstração da Relevância da Questão de Direito Federal Infraconstitucional discutida em razão da violação à jurisprudência dominante do próprio Superior Tribunal de Justiça, está sujeito a recurso de Agravo Interno (art. 1.030, §2º, do CPC) e, em seguida, é discutível o cabimento de Reclamação, seguindo padrão decisório advindo da própria Corte Especial do Tribunal (RCL 36.4761).

Logo, mesmo tendo o recorrente suscitado a existência da Relevância em razão da suposta contradição entre o acórdão local e a jurisprudência dominante do Tribunal Superior, a negativa de seguimento do REsp pela Vice-Presidência da Corte local impede que o REsp seja apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Por derradeiro, é importante responder a seguinte indagação: qual é a ligação entre a Relevância e a Repercussão Geral em relação aos recursos interpostos posteriormente? Como já mencionado, a Emenda Constitucional nº 125 já estabeleceu alguns critérios objetivos de existência de relevância, mas deixou ao legislador a indicação de outros, além da regulamentação procedimental.

No tema, me parece claro que o legislador deverá indicar procedimento aproximado ao da Repercussão Geral prevista no CPC (art. 1.030, I, a e 1.035), ligando este novo requisito de admissibilidade e outros institutos existentes e diretamente relacionados à atuação do Superior Tribunal de Justiça, como o próprio processamento dos recursos repetitivos.

A futura lei deverá se preocupar em relação a, por exemplo, admissão de manifestação de terceiros, suspensão do processamento de feitos que versem sobre a mesma questão enquanto estiver sendo discutida a existência ou não da Relevância da Questão Federal e, principalmente, a possibilidade de negativa de seguimento, pelo tribunal local, de recursos especiais posteriormente interpostos e que versem sobre a mesma questão que a Corte Superior já tenha declarado inexistir Relevância.

Portanto, a legislação futura também deverá esclarecer qual será a consequência da inexistência de Relevância da Questão Federal Infraconstitucional em relação aos recursos especiais futuros e se terá reflexo semelhante aos casos em que o Supremo Tribunal Federal declara que inexiste Repercussão Geral (art. 1030, I, a, do CPC).

Nestas primeiras reflexões, entendo que este será o caminho natural o que, em última análise, terá como consequência a diminuição significativa do número de Agravos em Recursos Especiais (art. 1042, do CPC), tendo em vista que, em sendo aplicado pelos tribunais locais os padrões decisórios advindos da inexistência de Repercussão Geral e também de Relevância, o recurso cabível na Corte de origem será o Agravo Interno (art. 1030, I, a, do CPC).

A legislação aqui citada e a própria atuação prática da Corte terão que resolver uma questão logística ligada à tramitação recursal: normalmente os recursos especiais e respectivos agravos passam primeiramente pela apreciação da Presidência para análise, por exemplo, dos demais requisitos de admissibilidade (incidência dos diversos Enunciados de Súmula), cujo resultado é aplicável apenas ao caso concreto. Ora, considerando que a análise da Relevância será feita pelo Órgão colegiado competente, com eficácia para os casos futuros, em termos numéricos está deverá ser feita de forma prioritária, fazendo com que a força da decisão negativa de Relevância obste que a questão seja novamente remetida ao Tribunal. Esta mesma observação deve ser feita em relação à apreciação do Relator, em caso de distribuição do recurso.

Portanto, em termos práticos e numéricos, a inexistência de Relevância deverá ser prioritária, em razão da sua consequência para os recursos posteriores, em relação aos demais óbices processuais do caso concreto.

Em última análise: a Emenda e a futura lei regulamentadora devem atingir a quantidade elevadíssima de Agravos do art. 1.042, do CPC, que são remetidos mensalmente ao Superior Tribunal de Justiça, ficando os casos futuros diretamente atingidos pela declaração da inexistência de Relevância submetidos à análise tão-somente das Cortes Locais, exatamente como ocorre nos casos de ausência de Repercussão Geral no Recurso Extraordinário.

Estas são algumas anotações visando contribuir para o debate de tão importante tema.

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1 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Se reclamação não é admitida, como recorrer de decisão sobre precedente qualificado.

José Henrique Mouta
Mestre e Doutor (UFPA), com estágio em pós-doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor do IDP (DF) e Cesupa (PA). Procurador do Estado do Pará e advogado.

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