Não é nenhum exagero afirmar que o Código de Processo Penal brasileiro é um diploma um tanto desatualizado. Afinal, foi aprovado em 1941, sob a égide do Estado Novo. Com a redemocratização do país na década de 1980, esperava-se que fosse promulgado um novo código, mais atual e condizente com a Constituição de 1988, mas isso nunca ocorreu.1
A solução foi fazer diversas reformas pontuais, alterando pontos específicos. Ocorre que, uma vez que foram feitas em épocas distintas e sob diferentes orientações, essas reformas acabaram por tornar o Código uma verdadeira colcha de retalhos.2 Atualmente, o Código de Processo Penal não possui uma linha condutora, que oriente a sua interpretação; chega a, inclusive, possuir dispositivos que conflitam entre si.
É um cenário completamente diverso do que se encontra no processo civil. O Código de Processo Civil, contemporâneo ao atual CPP, data de 1939, mas foi substituído por um novo em 1973. Esse, por sua vez, foi revogado em 2015, quando entrou em vigência o Novo Código de Processo Civil.
Isto é, enquanto o processo penal foi sofrendo reformas dispersas, o processo civil passou por duas grandes alterações unificadas. Dessa forma, é evidente que o CPC vigente é muito mais atual que o CPP e, em razão disso, possui soluções que podem aprimorar o processo penal brasileiro, mesmo que em situações específicas.
Como exemplo, citamos a técnica de ampliação de colegiado, objeto do presente artigo. Prevista no art. 942 do CPC, determina que “quando o resultado da apelação for não unânime, o julgamento terá prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, que serão convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial”3.
Sendo assim, conforme esse dispositivo legal, sempre que o julgamento de uma apelação for encerrado com a divergência de um dos desembargadores votantes, o julgamento continuará independentemente da vontade das partes. Esse procedimento também se aplica em ações rescisórias e agravos de instrumentos, quando verificadas as situações descritas no §3º do art. 942.4
Referido instituto, antes inexistente, substituiu o recurso de embargos infringentes, que tinha a mesma hipótese de cabimento da técnica de ampliação de colegiado. Contudo, apesar de se destinarem à mesma situação processual, possuem profundas diferenças.
A ampliação do colegiado não é um recurso, como eram os embargos infringentes, mas sim uma técnica de julgamento. Diferentemente do que pode parecer a partir da exclusão do trâmite típico dos recursos, com interposição e oferecimento de contrarrazões, essa técnica não busca conferir maior celeridade ao processo. O que visa é possibilitar um julgamento mais eficiente, na medida em que será proferido por um colegiado maior.5
Isto é, em casos em que a decisão não é proferida por unanimidade, para que não reste nenhuma dúvida, o processo será levado a novo julgamento, de cognição ampla, a fim de permitir a alteração do seu resultado. Para que seja proferida uma decisão final sólida, tudo isso ocorre de ofício, até porque, repete-se, é uma técnica de julgamento e não um recurso.
Verifica-se, portanto, que a dúvida é uma questão sensível ao processo civil, no qual, via de regra, visa-se solucionar uma questão privada. Mesmo que o objetivo do processo seja reconstituir os fatos objeto da ação, nem sempre é possível sanar toda dúvida que houver a respeito desses fatos e, assim, chegar a uma conclusão incontroversa. É por isso que, havendo a discordância por parte de um desembargador, o CPC determina que o julgamento prossiga por meio da ampliação de colegiado, a fim de que o caso passe por ampla discussão, para chegar a uma decisão com menores chances de equívoco.
No processo penal, que tem como objeto o conflito entre o jus puniendi do Estado e o jus libertatis do acusado, a dúvida – e como lidar com ela - é questão ainda mais relevante. Quando há dúvida no processo penal, adota-se o in dubio pro reo, determinando a prevalência do jus libertatis do sujeito. Trata-se de uma consagração da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII), princípio que orienta toda a interpretação do processo penal brasileiro.
Mas, diferentemente do que há no processo civil, o CPP não prevê a técnica de ampliação do colegiado. Em face de decisões não unânimes proferidas em apelações, recursos em sentido estrito ou agravos em execução penal, ainda cabe o recurso de embargos infringentes, conforme o art. 609, parágrafo único, do CPP.
Em seu julgamento, o colegiado é aumentado e o recurso será apreciado por um número de julgadores que permita a prevalência do voto divergente. Tal qual ocorre com a ampliação de colegiado, é uma forma de fazer com que o caso passe pelo crivo de mais julgadores, para que, ao final, sejam diminuídas as chances de prevalecer uma decisão equivocada.
Ocorre que, no processo penal, os embargos infringentes só poderão ser interpostos contra decisão desfavorável ao réu. Sendo assim, a doutrina convencionou classificá-los como um recurso exclusivo da defesa, tendo como sua razão de ser o voto divergente, símbolo da incerteza que paira sobre a decisão contrária aos interesses defensivos.5
Logo, fica claro que a técnica de ampliação de colegiado, disposta no CPC, e o recurso de embargos infringente, previsto no CPP, possuem o mesmo fundamento: a divergência, ou melhor, a solução da dúvida que existe em um caso concreto. A diferença é que, para que os embargos infringentes possam ser interpostos, o voto divergente deverá favorecer o acusado.
Especialmente quando se trata do mérito de uma apelação, ou seja, da absolvição ou condenação do acusado, o fato de os embargos infringentes só poderem ser interpostos para fazer prevalecer voto mais benéfico à defesa acaba por privilegiar os princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo. Nessas situações, há um claro impasse a respeito da certeza sobre a responsabilização do acusado, de forma que deve ser possibilitada uma reanálise do caso, para que, ao final, não sobrevenha uma condenação duvidosa.
A possibilidade de favorecimento do réu é tão importante para compreensão dos embargos infringentes que faz com que seja relativizada a classificação de recurso exclusivo da defesa. Nesse sentido, parte da doutrina sustenta que o Ministério Público pode interpor esse recurso, desde que para melhorar a situação do acusado.6
Aury Lopes Jr., por sua vez, entende que o Ministério Público não teria legitimidade para interpor embargos infringentes, porque são privativos da defesa.
Contudo, admite que “se realmente for em benefício do réu – desde que o defensor fique omisso – e a gravidade da situação exigir, em tese, não há obstáculos em ser conhecido o recurso”.7
Portanto, fica evidente que, apesar do debate que existe sobre a legitimidade do Ministério Público para manejar esse recurso, não há óbice para que isso ocorra quando a defesa for omissa em situação grave, no que se enquadra a não interposição de recurso que pode absolver o acusado.
Afinal, se o processo penal acusatório tem a presunção de inocência como princípio basilar, o que torna a preservação da liberdade um valor fundamental,8 deve ser sempre franqueada a possibilidade de alguém ser absolvido quando há alguma incerteza sobre a sua condenação.
Nessa questão, a técnica de ampliação de colegiado prevista no Código de Processo Civil muito pode aprimorar o Processo Penal. Quanto a isso, cumpre ressaltar, desde logo, que o CPP, em seu artigo 3º, permite a aplicação subsidiária do processo civil ao processo penal.
Aplicada no processo penal brasileiro, a ampliação de colegiado tem o condão de permitir que seja reanalisada condenação proferida em meio a divergência que suscita questionamentos sobre se não seria o caso de absolvição. É um meio de, como visto, ocasionar uma nova e mais eficiente discussão sobre o caso, a fim de que uma pessoa não seja equivocadamente privada de sua liberdade.
Se há possibilidade de absolvição ou qualquer outra decisão mais benéfica ao réu, mas não há interposição de embargos infringentes pela defesa ou pelo Ministério Público (em prol do réu), a gravidade da situação exige que seja aplicada a técnica de ampliação de colegiado ao caso. Se esse instituto já existe no processo civil brasileiro e o CPP permite a aplicação subsidiária do CPC, a dúvida sobre a condenação faz com que deva ser empregada a técnica de ampliação de colegiado, em respeito aos princípios do in dubio pro reo e da presunção de inocência, que orienta toda a interpretação e aplicação do processo penal.
Quando o que está em jogo é a liberdade de uma pessoa, não se pode deixar de apreciar uma posição relevantíssima – aquela exarada no voto do desembargador divergente – apenas em nome de um formalismo procedimental. Se a dúvida a respeito da absolvição já está manifestada nos autos por meio do voto divergente, mas não foi interposto recurso, é de rigor a sua apreciação por meio da ampliação do colegiado, permitindo a alteração do resultado.
Ora, se no processo civil, em que estão em causa bens jurídicos de relevância inferior ao direito fundamental de liberdade, a dúvida justifica a ampliação do colegiado, independentemente de recurso da parte, não se mostra proporcional que, no processo penal, não se estenda a mesma garantia ao acusado, apenas porque o CPP, de 1941, não passou pela mesma atualização a que submetido o CPC.
Dessa forma, havendo a possibilidade de absolvição, de nulidade que beneficie o réu, de redução de pena, tudo com base no voto vencido, o emprego da técnica de ampliação do colegiado, de ofício, é uma maneira não só de aprimorar o processo penal, mas, principalmente, de fortalecer a normatividade dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
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1 PRADO, Geraldo. Operação Lava Jato e o Devido Processo Legal: parecer jurídico ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos. In: PRADO, Geraldo. Estudos Jurídicos. São Paulo: Editora Contracorrente, 2018, p. 19-20.
2 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 19. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 330
3 Assegura-se, ainda, o direito das partes de sustentar oralmente as suas razões perante os novos julgadores.
4 § 3º A técnica de julgamento prevista neste artigo aplica-se, igualmente, ao julgamento não unânime proferido em:
I - ação rescisória, quando o resultado for a rescisão da sentença, devendo, nesse caso, seu prosseguimento ocorrer em órgão de maior composição previsto no regimento interno;
II - agravo de instrumento, quando houver reforma da decisão que julgar parcialmente o mérito. 5 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil – v.2: Procedimento Comum, Processos nos Tribunais e Recursos. 11. Ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 200.
5 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 1003.
6 PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua
Jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2011, p. 1172.
7 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. Op. Cit., p. 471.
8 BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 44-47.