1. Introdução
É inegável que a corrupção (entendida aqui como gênero que abrange a improbidade administrativa) prejudica as instituições democráticas, freia o desenvolvimento econômico e contribui para a instabilidade política. No entanto, o combate a esse mal precisa respeitar os direitos e as garantias fundamentais, especialmente, o devido processo legal formal e substancial, a dignidade humana e a proporcionalidade, para que a construção da sociedade justa, estável e segura, tenha alicerces sólidos e estrutura apta aos ideais democráticos (artigos 1º, inciso III e 5º, inciso LIV, da Constituição Federal).
É nesse contexto que surge a lei 8.429/92, um verdadeiro marco no combate à corrupção e na proteção à probidade e à moralidade. Contudo, ao longo dos anos, diversas controvérsias surgiram a respeito da citada Lei, sendo que sua própria constitucionalidade foi posta em dúvida na ADIn 2.1821, além de diversos outros temas que exigiram um posicionamento do Judiciário.
À vista de tais polêmicas, em 25 de outubro de 2021 foi publicada a lei 14.230/21, conhecida como “Nova Lei de Improbidade Administrativa”, da qual resultaram profundas reformas na originária lei 8.429/92.
Dentre as reformas, houve o reconhecimento expresso do caráter sancionador da Lei, bem como das garantias constitucionais. Ocorreram, ainda, alterações nos prazos prescricionais e o estabelecimento das causas de suspensão e de interrupção do lapso prescricional, prevendo, também a prescrição intercorrente, os quais serão objeto do presente estudo.
2. Os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador aplicáveis aos atos de improbidade administrativa
De acordo com Osório, o conjunto de garantias do direito administrativo sancionador emerge da cláusula do devido processo legal, visando promover o equilíbrio entre os direitos fundamentais potencialmente em conflito, em especial para evitar eventuais arbitrariedades dos Poderes Públicos2.
Ainda, segundo Osório, inserir a improbidade administrativa no campo do direito administrativo sancionador significa submetê-la, explicitamente, às garantias constitucionais e, de modo análogo, às normas do direito penal e do direito processual penal3.
Nesse contexto é que se afirma que as sanções aos atos de improbidade administrativa são irretroativas, tanto quanto os tipos sancionadores, na medida em que o conceito de sanção atrai essa proximidade dogmática entre as esferas penal e não penal de cunho punitivo4.
Assim, a Administração Pública deve respeitar os direitos e garantias individuais ao limitar ou regular as ações dos administrados, especialmente, ao impor uma sanção, ou seja, o direito administrativo sancionador deve passar por um percurso que transite, necessariamente, por todos os princípios e garantias assegurados pela Constituição Federal.
3. Natureza jurídica do ato de improbidade administrativa
Com a finalidade de aproximar o conceito de improbidade administrativa dos princípios constitucionais do direito sancionador, em 25 de outubro de 2021 foi sancionada a lei 14.230/21, conhecida como “Nova Lei de Improbidade Administrativa”.
Especificamente, em relação ao direito sancionador, o §4º inserido no artigo 1º, da lei 8.429/1992, passou a prever: “§ 4º Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”.
Ainda, os artigos 2º e 17-D, da lei 8.429/92, passou a definir que a “ação por improbidade administrativa e' repressiva, de caráter sancionatório, destinada a` aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil”.
No mais, a lei 14.230/21 passou a adotar as mais recentes orientações doutrinárias e a jurisprudência do Supremo Tribunal para classificar o ato de improbidade administrativa como parte do sistema do direito administrativo sancionador que, por sua vez, reclama a aplicação da principiologia das normas penais e processuais penais a` matéria estudada.
4. As alterações dos prazos prescricionais promovidas pela lei 14.230/21 e sua aplicação retroativa
O instituto da prescrição, segundo Osório, decorre do princípio da segurança jurídica e da interdição à arbitrariedade, uma vez que toda e qualquer pretensão punitiva deve estar submetida a limites temporais para seu exercício, sob pena de violação à segurança jurídica inerente ao Estado de Direito5.
Assim, de acordo com o Autor, ninguém pode ficar à mercê de ações judiciais ou administrativas por tempo e prazos indefinidos ou perpétuos, de forma que a prescrição é uma garantia individual, com transcendência social, já que as relações sociais necessitam de segurança e o Direito busca, em um de seus fins, assegurar essa estabilidade6.
Nesse contexto, a Nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei 14.230/21), introduziu novos prazos prescricionais para regular os atos de improbidade administrativa, tanto para o direito de ação quanto na forma intercorrente. Tais prazos, naquilo que contemplarem normas mais benéficas aos acusados em geral, deverão incidir retroativamente, pois se trata de normas de natureza material, que afetam a pretensão punitiva do Estado7.
Nas palavras de Osório, o princípio democrático impõe respeito à escolha do Legislador, ainda que se possa questionar essa espécie de opção pelo encurtamento dos prazos prescricionais e sua vinculação à impunidade, razão pela qual o jurista, o juiz e todo aquele que tem compromisso com o Direito e a Justiça, devem respeitar o princípio da separação de Poderes e o papel da Lei num Estado Democrático de Direito8.
Destaca-se, assim, que a nova Lei de improbidade administrativa (Lei 14.230/21) alterou o prazo prescricional das ações por improbidade, prevendo a prescrição em 08 (oito anos), conforme artigo 23 da lei 8.429/929, estabelecendo, ainda, as causas de suspensão e de interrupção do lapso prescricional.
Previu que a instauração de inquérito civil ou de processo administrativo suspende a prescrição por 180 dias no máximo (artigo 23, §1º, da lei 8.429/9210) e que o inquérito civil devera' ser concluído em 365 dias, prorrogáveis uma única vez, mediante promoção fundamentada (artigo 23, §2º, da lei 8.429/9211).
As hipóteses de interrupção do curso prescricional estão previstas no artigo 23, §4º, da lei 8.429/9212, começando pelo ajuizamento da ac¸a~o de improbidade administrativa e terminando com a publicação de decisão ou acórdão do Supremo Tribunal Federal que confirme acórdão condenatório ou que reforme acórdão de improcedência.
Prevê a prescrição intercorrente, cujo prazo e' de quatro anos (artigo 23, §5º, da lei 8.429/9213) e que devera' ser decretada de ofício ou a requerimento das partes, em contraditório (artigo 23, §6º, da lei 8.429/9214).
Nesse contexto, de acordo com Freitas, a retroatividade da lei mais benéfica, além de ser um importante preceito constitucional (artigo 5º, XL, da CF), tem previsão também no artigo 9º do decreto 678/92, que promulga no ordenamento jurídico brasileiro a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969 — decreto que goza de status de norma supralegal, subordinada apenas a Constituição Federal15.
Assim, uma vez que a prescrição atinge essencialmente o direito material, deve prevalecer a aplicação retroativa da norma mais benigna ao infrator, de forma que a norma mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício, impedindo que o Estado exerça o seu jus puniendi.
Não obstante aos entendimentos acima expostos, o ministro do Superior Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, determinou a suspensão do prazo prescricional nos processos que tratam da retroatividade das alterações feitas na nova Lei de improbidade administrativa, até o julgamento do Recurso Extraordinário 843.989, apontado como paradigma do Tema 1.199 da sistemática da repercussão geral16.
O julgamento do tema está previsto para iniciar dia 03 de agosto de 2022, conforme calendário de julgamentos do Superior Tribunal Federal17, de forma que os processos que versarem sobre o assunto permanecerão suspensos até decisão final.
5. A prescrição intercorrente como instituto a tutelar a efetividade da razoável duração do processo
Ainda que se discuta o cabimento da retroatividade da nova Lei às causas em andamento, fato é que a lei 14.230/21 trouxe previsão expressa do cabimento da prescrição intercorrente nos casos de improbidade administrativa.
Tal instituto prestigia o direito constitucional à razoável duração do processo, previsto no artigo 5°, LXXVIII, da Constituição Federal de 1988, além de estar presente também no artigo 6° do Código de Processo Civil.
Em matéria de improbidade, Mudrovitsch e Nóbrega argumentam que o princípio da razoável duração do processo dialoga com a improbidade administrativa, tutelando o direito fundamental do réu de ter seu processo sancionador julgado em prazo razoável e de modo compatível com as liberdades públicas e particulares envolvidas18.
Dessa feita, se ausência de disposição legal autorizou leituras que negaram vigência ao instituto da prescrição intercorrente em matéria de improbidade, a inovação trazida pela lei 14.230/21 preenche a lacuna privilegiando a efetividade do princípio da razoável duração do processo19.
6. Conclusão
A inserção do §4º, no artigo 1º, da lei 8.429/92, submeteu a improbidade administrativa, explicitamente, às garantias constitucionais e, de modo análogo, às normas do direito penal e do direito processual penal.
Nada mais lógico, já que em um regime democrático de direito é fundamental que o administrado tenha assegurado para si um plexo de garantias fundamentais, de natureza constitucional e imutável.
Portanto, o atuar da Administração deve estar permeado de todos os valores e garantias da Constituição, de forma que a natureza administrativa da sanção não afasta a necessidade de aplicação de garantias constitucionais ao sujeito passivo da infração e/ou ato de improbidade.
Consequentemente, o instituto da prescrição decorre do princípio da segurança jurídica e da interdição à arbitrariedade, uma vez que toda e qualquer pretensão punitiva deve estar submetida a limites temporais para seu exercício, sob pena de violação à segurança jurídica inerente ao Estado de Direito.
Assim, as alterações dos prazos prescricionais da Nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei 14.230/21), deverão incidir retroativamente naquilo que contemplarem normas mais benéficas aos acusados em geral, pois se trata de normas de natureza material, que afetam a pretensão punitiva do Estado.
Tal instituto prestigia o direito constitucional à razoável duração do processo, previsto no artigo 5°, LXXVIII, da Constituição Federal de 1988, tutelando o direito fundamental do réu de ter seu processo sancionador julgado em prazo razoável e de modo compatível com as liberdades públicas e particulares envolvidas.
Dessa feita, ainda que a se ausência de disposição legal no passado tenha autorizado leituras que negaram vigência ao instituto da prescrição intercorrente em matéria de improbidade, a inovação trazida pela lei 14.230/21 preenche a lacuna, privilegiando a efetividade do princípio da razoável duração do processo.
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1 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação direta de inconstitucionalidade 2.182. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=614087. Acesso em 05 de julho de 2022.
3 Ibid.
4 OSÓRIO, op. cit., RB-6.10.
5 OSÓRIO, op. cit., RB-6.14.
6 Ibid.RB-6.14.
7 Ibid.RB-6.14.
8 OSÓRIO, op. cit., RB-6.14.
9 “Art. 23. A ação para a aplicação das sanções previstas nesta Lei prescreve em 8 (oito) anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência”.
10 “§ 1º A instauração de inquérito civil ou de processo administrativo para apuração dos ilícitos referidos nesta Lei suspende o curso do prazo prescricional por, no máximo, 180 (cento e oitenta) dias corridos, recomeçando a correr após a sua conclusão ou, caso não concluído o processo, esgotado o prazo de suspensão”.
11 “§ 2º O inquérito civil para apuração do ato de improbidade será concluído no prazo de 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias corridos, prorrogável uma única vez por igual período, mediante ato fundamentado submetido à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica”.
12 “§ 4º O prazo da prescrição referido no caput deste artigo interrompe-se:
I - pelo ajuizamento da ação de improbidade administrativa;
II - pela publicação da sentença condenatória;
III - pela publicação de decisão ou acórdão de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal que confirma sentença condenatória ou que reforma sentença de improcedência;
IV - pela publicação de decisão ou acórdão do Superior Tribunal de Justiça que confirma acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência;
V - pela publicação de decisão ou acórdão do Supremo Tribunal Federal que confirma acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência”.
13 “§ 5º Interrompida a prescrição, o prazo recomeça a correr do dia da interrupção, pela metade do prazo previsto no caput deste artigo”.
14 “§ 6º A suspensão e a interrupção da prescrição produzem efeitos relativamente a todos os que concorreram para a prática do ato de improbidade”.
15 FREITAS. Daniel Santos de. Improbidade e prescrição intercorrente: análise da jurisprudência em formação.
16 CONSULTOR JURÍDICO. Alexandre suspende prescrição de ações sobre irretroatividade da nova LIA.
17 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tema 1199 – Definição de eventual (IR)Retroatividade das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA, e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4652910&numeroProcesso=843989&classeProcesso=ARE&numeroTema=1199. Acesso em 05 de julho de 2022.
18 MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt; NÓBREGA, Guilherme Pupe. Lei de improbidade administrativa comentada: de acordo com a reforma pela Lei n. 14.230/2021. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 385.
19 Ibid. p. 386.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. Brasília, 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1.992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o § 4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras providências. Rio de Janeiro, 2 de junho de 1992.
BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2.021. Altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa. Brasília, 25 de outubro de 2021.
CONSULTOR JURÍDICO. Alexandre suspende prescrição de ações sobre irretroatividade da nova LIA.
FREITAS. Daniel Santos de. Improbidade e prescrição intercorrente: análise da jurisprudência em formação.
MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt; NÓBREGA, Guilherme Pupe. Lei de improbidade administrativa comentada: de acordo com a reforma pela Lei n. 14.230/2021. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 13-14.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 4. ed. em ebook baseada na 8. ed. impressa. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa. 2. ed. em ebook baseada na 5. ed. impressa. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação direta de inconstitucionalidade 2.182. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=614087. Acesso em 05 de julho de 2022.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tema 1199 – Definição de eventual (IR)Retroatividade das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA, e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4652910&numeroProcesso=843989&classeProcesso=ARE&numeroTema=1199. Acesso em 05 de julho de 2022.