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O silenciamento das redes oficiais na era do governo digital

O uso dos meios digitais se incorporou, em verdade, à dinâmica democrática, num diálogo público mais do que necessário, principalmente considerando que o Estado reflete o ritmo e a forma comunicativa já vivenciados em outros níveis sociais.

12/7/2022

As relações administrativas em um Estado democrático devem se fundar em um mínimo de boa-fé, diálogo e estabilidade. No processo de digitalização das sociedades, os cidadãos têm aprendido a usar os inúmeros canais públicos institucionais para buscar informação e, de alguma forma, se comunicar com a administração pública. As redes sociais têm servido inclusive para amenizar a verticalização da relação Estado-cidadão e trazer uma certa leveza a esse vínculo. 

O uso dos meios digitais se incorporou, em verdade, à dinâmica democrática, num diálogo público mais do que necessário, principalmente considerando que o Estado reflete o ritmo e a forma comunicativa já vivenciados em outros níveis sociais. 

Portanto, esses canais se submetem às mesmas regras da administração, vinculados ao interesse público, vedado o seu uso para favorecer o administrador, principalmente quando futuro candidato à reeleição, pois, se assim não fosse, haveria uma vantagem indevida em relação aos seus concorrentes, através da divulgação de atos administrativos, custeados por tributos.  

Foi nesse espírito que a Lei das Eleições, no art. 73, VI, “b”e art. 74, proibiu a propaganda institucional, nos três meses que antecedem o pleito eleitoral, com exceção da propaganda de produtos e serviços com concorrência no mercado ou em caso de grave e urgente necessidade pública, assim reconhecida pela Justiça Eleitoral.1

Interpretando essa norma, o TSE fixou o entendimento de que, mesmo quando efetuadas postagens de publicidades institucionais em período anterior ao proscrito, mas mantida ativa na respectiva rede nos três meses que antecede a eleição, poderia haver aplicação das sanções cabíveis, “ante a natureza objetiva da referida norma”2. Trata-se de restrição em razão do conteúdo publicado, e não da forma.

Esse precedente, aparentemente, se funda na necessidade de garantir a igualdade de condição de disputa, perseguindo a finalidade para a qual a norma foi criada: proteger o equilíbrio do pleito. Pois, se o alicerce da lei fosse unicamente o critério temporal, verificar-se-ia uma promoção desigual, dia após dia, de todas as obras realizadas com o dinheiro público, daquele candidato enquanto gestor, em detrimento dos que não tiveram acesso à máquina estatal. 

Motivada pela possível aplicabilidade dessa espécie de julgamento, em desfavor da futura candidatura do gestor Federal, inédita e radicalmente, nas eleições de 2022, a SECOM – Secretária Especial de Comunicação Social – expediu o ofício circular 257/22/SEI-MCOM, decorrente de orientação da AGU – Advocacia Geral da União, e determinou a desativação de todos os canais de comunicação institucional e a substituição por perfis provisórios:

c) As páginas dos órgãos e entidades públicos em propriedades digitais (website) não devem ser retiradas do ar, entretanto, os integrantes do SICOM deverão, até o dia 1º de julho de 2022 (recomenda-se que o dia 30 de junho de 2022 esteja tudo preparado), retirar de suas propriedades digitais toda e qualquer publicidade sujeita ao controle da legislação eleitoral. Da mesma forma, deve ser retirada toda e qualquer publicidade sujeita ao controle da legislação eleitoral exposta em propriedades digitais de terceiros por força de termos de contrato, convênios, parcerias ou ajustes similares. Os cuidados acima mencionados deverão abranger os links disponibilizados nas propriedades digitais dos integrantes do SICOM que poderão direcionar, indevidamente, o cidadão para sítios de terceiros que promovam candidatos.

d) Em complemento à alínea anterior e com relação às redes sociais (a exemplo do Twitter, Instagran, Flickr, etc), orienta-se o bloqueio de comentários e sugere-se (em pleno acordo com a Câmara Eleitoral da AGU) a criação de um novo perfil a ser utilizado durante o período defeso, desativando temporariamente o antigo perfil nas redes sociais (o qual deverá retornar ao ar após o período de defeso eleitoral), a fim de se evitar que alguma postagem permaneça visível e possa ser questionada pelo TSE. Tal medida é sugerida, tendo em vista que de acordo com a decisão do TSE, foi configurada, como ilegal, a conduta de hospedagem de publicação em sítio oficial da prefeitura de São João do Rio Peixe - Paraíba, por caracterizar a conduta do art. 73, VI, b, da lei 9.504/97, senão vejamos:3

Sem considerar medidas menos drásticas, foram desativadas as redes sociais institucionais até o final das eleições, prejudicando o diálogo e a fiscalização da população, contrariando a lei do governo digital (lei 14.129/21), que prevê em seu art. 29:

Art. 29.  Os dados disponibilizados pelos prestadores de serviços públicos, bem como qualquer informação de transparência ativa, são de livre utilização pela sociedade, observados os princípios dispostos no art. 6º da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais).

§ 1º  Na promoção da transparência ativa de dados, o poder público deverá observar os seguintes requisitos:

I - observância da publicidade das bases de dados não pessoais como preceito geral e do sigilo como exceção;

II - garantia de acesso irrestrito aos dados, os quais devem ser legíveis por máquina e estar disponíveis em formato aberto, respeitadas as Leis nºs 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação), e 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais);4

Em que pese ser custosa a triagem das postagens, uma vez que demandaria a destinação de vários servidores, com risco de não haver a adequação desejada pelo TSE, não parece ser razoável o encerramento imediato de meios de comunicação pertencentes à res publica, com a finalidade de tutelar o interesse particular do postulante à reeleição. 

Essa medida viola a razoabilidade, a eficiência, o princípio democrático e o republicano, sobretudo no que diz respeito à transparência, uma vez que revela pouca preocupação com o direito à informação dos administrados ou com a solução de continuidade na comunicação institucional. 

É compreensível a interpretação dada pela Corte Superior, a despeito da sua faceta rigorosa, pois é notória a busca em agir em prol da igualdade dos candidatos e, indiretamente, da igualdade na disputa. Contudo, é questionável a adoção de medidas extremadas pela administração pública sob o argumento de efetivar esses objetivos. 

As redes institucionais, para além da comunicação com o administrado, constituem meios de controle dos atos de gestão e possuem natureza fiscalizatória, para realização de accountability, viabilizando a responsabilização por atos praticados em desacordo com a finalidade e o interesse público. 

Desse modo, o direito à informação possui um destaque que extrapola a dimensão individual, na medida em que é o vetor da própria formação da opinião pública5. Como destacado por Stuart Mill6, ao se impedir um discurso – ou, no caso analisado, ao se criar um obstáculo desproporcional – se está a atuar contra o próprio interesse social de conhecer a verdade.

Não há como ignorar que a suspensão das contas institucionais implica uma cisão, ainda que temporária, do diálogo público que vinha sendo construído, além de comprometer, no sentido mais direto, o acesso dos cidadãos às informações tidas como relevantes pelo próprio governo. 

Ao se tratar de canais oficiais, amplamente utilizados para comunicar diretamente aos cidadãos questões de interesse público, é inegável que existem compromissos democráticos, inclusive de manutenção da história institucional construída naquele espaço. A perda dessa percepção fragiliza o sentido emancipatório da democracia digital, na medida em que cria obstáculos desarrazoados à participação cidadã e ao exercício do pluralismo.7

Assim, extirpar o acesso ao histórico de ações governamentais, mesmo que transitoriamente, não aparenta ser uma medida tutelada pela CF/88, principalmente quando se tem uma gestão tão dedicada à propaganda institucional, como revelado na edição da lei 14.356/228, que dispõe sobre gastos com publicidade dos órgãos públicos no primeiro semestre do ano de eleição. 

Com a implantação dessa medida, o cidadão não teve garantida a eficiência na comunicação, posto que ela não deve ser considerada do ponto de vista do menor serviço para a administração, mas sim do serviço com maior qualidade para o administrado. Em outros termos, serviço eficiente não é aquele mais fácil de ser executado, mas aquele que equilibra custo-qualidade. 

Por isso, questiona-se a constitucionalidade da medida de substituir os meios de comunicação institucionais oficiais, a pretexto de proteger interesse centrado em finalidade eleitoreira, para se furtar do risco de aplicabilidade de interpretação jurisprudencial do TSE (direito outorgado pelo princípio republicano). 

A partir das considerações expostas, depreendem-se inúmeras perguntas que necessitam de resposta rápidas e concretas: é constitucional a disposição de redes oficiais do governo para evitar que candidatos à reeleição sejam prejudicados? É constitucional que os canais com os quais o cidadão já esteja habituado sejam suspensos sem que a administração tenha tentado uma medida menos severa? A criação de redes temporárias impede a postagem de conteúdo que promova aquele candidato? Como será realizado o controle posterior do material publicado nas redes temporárias?

O caminho para tais respostas possui muitas nuances a serem pensadas. Em todas elas, entretanto, há de se relembrar a afirmação de Celso Antônio Bandeira de Mello: “fácil é ver-se que as prerrogativas inerentes à supremacia do interesse público sobre o interesse privado só podem ser manejadas legitimamente para o alcance de interesses públicos; não para satisfazer apenas interesses ou conveniências tão-só do aparelho estatal, e muito menos dos agentes governamentais”.9

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1 BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9504compilado.htm

2 Recurso Especial Eleitoral nº 60414, Acórdão, Relator(a) Min. Luciana Lóssio, Publicação:  DJE - Diário da justiça eletrônico, Tomo 041, Data 01/03/2016, Página 42/43

3 BRASIL. Ministério das Comunicações. Secretaria Especial de Comunicação Social. Subsecretaria de Gestão e Normas. Ofício Circular nº 257/2022/SEI-MCOM. Assunto: Condutas vedadas aos agentes públicos integrantes do Sistema de Comunicação de Governo do Poder Executivo Federal no período de defeso eleitoral. Disponível em: https://sei.mctic.gov.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&codigo_verificador=10038709&codigo_crc=449C1B10&hash_download=44c65d7dac7427c9472ba1c2a516f0726d82279fbfc16e894e3d300493e940bb067da26deb6be85e5725f0bae0d86f3d66c559d807a4ee698bfa51b902a18cf1&visualizacao=1&id_orgao_acesso_externo=22.

4 BRASIL. Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021. Dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública e altera a Lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983, a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação), a Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, e a Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.129-de-29-de-marco-de-2021-311282132

5 RUBIO NÚÑEZ, Rafael. El derecho a la información y el derecho al voto. In: QUADRA-SALCEDO, Tomás de la et al. Sociedad digital y derecho. Madrid: Ministerio de Industria, Comercio y Turismo, 2018. p. 467-490.

6 MILL, Stuart. On liberty. Canada: Batoche Books Kitchener, 2001.

7 MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos; FERREIRA, Desirée Cavalcante. Limites à intimidade e responsabilidade nos espaços públicos digitais: análise da possibilidade de bloqueio de contas de usuários por agentes públicos. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 23, n. 130, p. 129- 152, nov./dez. 2021.

8 BRASIL. Lei nº 14.356, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14356.htm

9 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32ªed., ref., ampl. e atual., São Paulo: Malheiros, 2015, pag.73. 

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BRASIL. Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021. Dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública e altera a Lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983, a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação), a Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, e a Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.129-de-29-de-marco-de-2021-311282132. Acesso em: 04 jul. 2022.

BRASIL. Lei nº 14.356, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14356.htm. Acesso em: 04 jul. 2022.

BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9504compilado.htm. Acesso em: 04 jul. 2022.

BRASIL. Ministério das Comunicações. Secretaria Especial de Comunicação Social. Subsecretaria de Gestão e Normas. Ofício Circular nº 257/2022/SEI-MCOM. Assunto: Condutas vedadas aos agentes públicos integrantes do Sistema de Comunicação de Governo do Poder Executivo Federal no período de defeso eleitoral. Disponível em: https://sei.mctic.gov.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&codigo_verificador=10038709&codigo_crc=449C1B10&hash_download=44c65d7dac7427c9472ba1c2a516f0726d82279fbfc16e894e3d300493e940bb067da26deb6be85e5725f0bae0d86f3d66c559d807a4ee698bfa51b902a18cf1&visualizacao=1&id_orgao_acesso_externo=22.

BRASIL. TSE – Tribunal Superior Eleitoral. Lei das Eleições. Recurso Especial Eleitoral nº 60414, Acórdão, Relator(a) Min. Luciana Lóssio, Publicação:  DJE - Diário da justiça eletrônico, Tomo 041, Data 01/03/2016, Página 42/43.

MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos; FERREIRA, Desirée Cavalcante. Limites à intimidade e responsabilidade nos espaços públicos digitais: análise da possibilidade de bloqueio de contas de usuários por agentes públicos. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 23, n. 130, p. 129- 152, nov./dez. 2021.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32ªed., ref., ampl. e atual., São Paulo: Malheiros, 2015, pag.73. 

MILL, Stuart. On liberty. Canada: Batoche Books Kitchener, 2001.

RUBIO NÚÑEZ, Rafael. El derecho a la información y el derecho al voto. In: QUADRA-SALCEDO, Tomás de la et al. Sociedad digital y derecho. Madrid: Ministerio de Industria, Comercio y Turismo, 2018. p. 467-490.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.

Lígia Vieira de Sá e Lopes
Analista judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará desde 2006. Especialista em Direito Eleitoral, Processos Educacionais e Direito Processual. Membra da ABRADEP e do grupo Ágora.

Desirée Cavalcante Ferreira
Mestra e doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professora de Direito Constitucional. Advogada. Membro da Comissão Especial do Pacto Global do Conselho Federal da OAB, da Comissão Especial Brasil/Onu de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã para Implementação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas da OAB/CE e do Observatório de Violência Política Contra a Mulher.

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