O egrégio STF pautou para o dia 3 de agosto o julgamento da ARE 843.989-PR, Repercussão Geral Tema 1199, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, no qual a Corte analisará a retroatividade, ou não, de disposições normativas benéficas aos acusados, contidas, hoje, na Lei de Improbidade Administrativa. Tema, portanto, de relevo jurídico e social.
A Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92) foi profundamente alterada pela superveniente lei 13.420, de 2021, em vários aspectos, especialmente quanto ao próprio regime jurídico. A meu ver, houve verdadeira concentração lógica e normativa entre os ilícitos e as penalidades disciplinares, reguladas no âmbito da administração pública, e os ilícitos e penalidades de improbidade administrativa. Nessa linha, uns e outros devem ser analisados também sob o viés dos princípios, valores e bens constitucionais, de proteção à pessoa, física e jurídica.
Mas não só a simbiose entre o ‘direito disciplinar’ e a ‘improbidade administrativa’ proporcionará interpretação da novel legislação de forma correta. É preciso, ainda, considerar os princípios do direito penal, porque inerentes ao chamado ‘jus puniendi’ do Estado, os quais encontram-se numa linha lógica com a CF/88. Dito de outro modo, aplicam-se os princípios de direito penal na Lei de Improbidade Administrativa e no ‘direito disciplinar’.
Feitas essas ‘pequenas considerações’, pergunta-se: diante da nova lei, como ficam as situações jurídicas das ações de improbidade administrativa já transitadas em julgado?
Numa análise inicial, considerava o art. 5º, XXXVI, da CF/88 (‘a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada’), replicado no art. 6º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (DL. 4.657/42), como barreira instransponível aos efeitos retroativos das normas benéficas contidas na lei 13.420/21, que alteraram a lei 8.429/92.
Em suma, entendia pela impossibilidade de as novas normas retroagirem, quando já tivesse havido sentença proferida em ação de improbidade administrativa transitada em julgado (Migalhas, 18/3/22).
No entanto, meditando acerca desse tema, diante da modificação do regime jurídico da improbidade administrativa, que não constitui ação civil, e sim sancionadora (art.17-D), aplicando-se os princípios do Direito Administrativo Sancionador (art.1º, §4º), passei a ver essa problemática sob outro ângulo, de acordo, repita-se, com os princípios, valores e bens constitucionais. Conforme esse entendimento, há conexão lógica, uma concatenação jurídico-normativa, entre a Lei de Improbidade Administrativa, o direito administrativo sancionador e o direito penal. Todos fazem parte de um mesmo regime geral, advindo do ‘poder’ punitivo do Estado (jus puniendi).
Na verdade, é o direito penal, por excelência, o regime jurídico de maior envergadura jurídica, e que traz, sem dúvidas, os princípios basilares de proteção à pessoa, os quais, por serem extensões dos direitos e garantias fundamentais, contidos no texto constitucional, incorporaram-se ao direito administrativo sancionador (agora integrantes do regime da improbidade administrativa).
O art. 2º, parágrafo único, do CP Brasileiro, estabelece: ‘A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.’
O eminente E. Magalhães Noronha explica: “a lei penal retroage, a despeito da coisa julgada, na hipótese da abolitio criminis [a lei nova não considera crime a conduta praticada], na da pena mais branda e quando por qualquer outro modo favorecer o acusado. A nós nos parece estabelecido o princípio incondicional da retroatividade in mellius.” (Direito Penal, Vol.I, p.86, 15ªed. Saraiva, 1978. Grifos não-originais).
Assim, o princípio incondicional da retroatividade in mellius, a princípio de natureza penal, impõe-se no regime punitivo geral do Estado, como decorrência da análise sistemática da ordem jurídica.
A coisa julgada é instituto que visa à estabilidade social, isto é, confere segurança jurídica às partes da relação processual. Todavia, no regime punitivo, devido aos princípios favor rei, in dubio pro libertate, in dubio pro reo, presunção da inocência, devido processo legal, retroatividade in mellius, irretroatividade in pejus, vedação ao bis in idem, culpabilidade, dentre outros, preponderam outros valores da República, como a liberdade, a igualdade, a dignidade da pessoa humana, todos ‘expressados’ por princípios e regras constitucionais e legais.
O princípio da igualdade, ligado umbilicalmente à dignidade da pessoa humana, exige do agente estatal atitude em favor do condenado. Não pode ser diferente, eis que o regime jurídico-punitivo deve ser interpretado e aplicado em vista dos princípios constitucionais, sejam ilícitos e sanções administrativos, penais, ou de improbidade administrativa. Assinala, o jurista Francisco Campos, a respeito do princípio da igualdade: “o legislador não deverá aplicar às mesmas coisas ou às mesmas pessoas sistemas diferentes de peso ou de medida.” (Direito Constitucional, Vol.II, p.30, Freitas Batos, 1956. Grifos não-originais).
Por isso, modificando entendimento anterior, é perfeitamente viável a retroatividade das normas benignas, no chamado ‘direito sancionador’, pois, cuidando-se de princípio geral de direito, aplica-se ainda que tenha havido decisão judicial transitada em julgado, alcançando, portanto, situações pretéritas na Lei de Improbidade Administrativa. A coisa julgada não pode ser o discrímen para obviar a aplicação da norma benéfica, contida na lei 13.420/21, ao condenado por ato de improbidade.