Introdução
Em julgamento recente, no dia 8/6/22, a 2ª seção do STJ entendeu ser taxativo, como regra geral, o rol da ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar, e definiu que os planos de saúde não serão obrigados a cobrir tratamentos não previstos na lista, com alguns temperamentos. Assim, eventuais procedimentos que detenham comprovação médica, além do aval da comunidade científica, e que não possuam tratamentos equivalentes já autorizados dentro do rol, poderão ser considerados dentro da cobertura dos planos de saúde.1
Referida decisão do STJ foi proferida em sede de embargos de divergência, recurso cabível para uniformizar jurisprudência interna, no âmbito do STJ ou do STF.2
Assim, esta pesquisa, tem por objetivo analisar a questão processual do acórdão proferido pela 2ª seção do STJ no julgamento de embargos de divergência. Para tanto, serão tratados os aspectos gerais, bem como os efeitos e os limites da decisão da Corte Superior.
I. Dos embargos de divergência e dos seus efeitos
Os embargos de divergência (vide art. 1.043 e seguintes, do Código de Processo Civil de 2015 [CPC/15]) contém dois objetivos, sendo eles: a) uniformizar a jurisprudência interna do Tribunal Superior; b) reformar/anular o acórdão embargado.3 Apesar disso, não se trata de decisão acobertada pela sistemática dos recursos repetitivos.
Assim, contra decisões colegiadas serão cabíveis embargos de declaração e recurso extraordinário e contra as decisões singulares, além das impugnações mencionadas, caberá o recurso de agravo interno.4
No caso estudado, será cabível apenas o recurso de embargos de declaração e o recurso extraordinário, visto que a decisão foi proferida pelo acórdão colegiado.
Vê-se, portanto, que a possibilidade de mudança do entendimento não se restringe apenas ao STJ, conforme será demonstrado nos tópicos seguintes, em que pese ser notório que a jurisprudência defensiva do STF prevê o não cabimento de recurso extraordinário quando a matéria recursal depender da análise de legislação infraconstitucional.
Na decisão discutida, em que pese ser uma alteração significativa da orientação jurisprudencial, não houve modulação dos efeitos da alteração do entendimento.
Já no tocante à repercussão da decisão em embargos de divergência, nada dispõe nosso ordenamento jurídico de forma específica.
O CPC dispõe, em seu art. 927, inc. V, de forma geral, sobre as orientações dadas no plenário ou no órgão especial dos tribunais superiores. Ocorre que, o caso aqui discutido foi julgado pela seção, detalhe que não se encaixa, portanto, no preceito generalizado do citado art. 927, inc. V.
Ainda em relação ao julgamento dos embargos de divergência no STJ por membros da seção, observa-se que o art. 121-A do regimento interno da Corte Superior prevê a possibilidade da convolação do julgado em súmula de jurisprudência dominante, nos casos de resultado unânime do julgamento. Porém, por não haver unanimidade, esse também não foi o caminho utilizado no presente caso.
A dúvida sobre a repercussão da referida decisão persiste.
II. Possibilidade de alteração do entendimento no STF e no Congresso Nacional
Posto isso, a possibilidade de mudança de entendimento poderá acontecer no STF e no Congresso Nacional. Explica-se.
Existe, em tramitação no STF, uma ADIn que busca discutir a constitucionalidade dos trechos da Lei dos Planos de Saúde (lei 9.656/98), trechos que permitem a interpretação pela taxatividade do rol.
A ADIn é cabível contra leis ou atos normativos, Federais ou estaduais que violam a CF/88, nos termos do art. 102, I, “a”, CF/88. No caso discutido, a Lei dos Planos de Saúde é considerada lei Federal, por isso existe a possibilidade da sua análise no âmbito do STF.
Quantos aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, em regra, atribui-se eficácia ex tunc (efeito retroativo). Porém, por maioria de 2/3 dos juízes, o tribunal poderá realizar a modulação dos efeitos e restringir os efeitos a partir do seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, nos termos da lei 9.868/99, art. 27.5
Além disso, o julgamento da ADIn tem efeito vinculante em relação aos órgãos do poder Judiciário e à administração pública Federal, estadual e municipal (vide art. 102, §2º e art. 28, parágrafo único da lei 9.868/99).
Isto é, conclui-se que, em caso de entendimento divergente entre o STF e o STJ, prevalecerá aquela proferida pela Suprema Corte Constitucional.
Porém, a eficácia geral e o efeito vinculante de decisão proferida pelo STF em ADIn não alcançam o poder Legislativo, que poderia editar novas leis com o mesmo conteúdo dos textos anteriormente analisados.6
Atualmente, tramitam na Câmara dos Deputados 20 projetos de leis apresentados apenas em 2022, propondo a alteração da Lei dos Planos de Saúde para considerar a lista de referência como meramente exemplificativa7, como uma reação à pressão popular decorrente do julgamento no STJ, que gerou bastante comoção na mídia e redes sociais.
III. Direito adquirido
Há, portanto, outra dúvida que surge após o julgamento da 2ª seção do STJ: como ficam os casos que se fundamentaram no entendimento jurisprudencial anterior de que o rol de procedimentos e eventos estabelecidos pela ANS não são taxativos?
Na hipótese do direito ao procedimento e/ou evento fora do rol estabelecido pela ANS ser oriundo de ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, resta caracterizado como direito adquirido8 (FRIEDE) e seus efeitos juridicamente permanecem, ainda que não tenha sido fruído9 pelo usuário do plano de saúde.
Em caso de recurso pendente, a decisão não está acobertada pelo direito fundamental previsto no art. 5º, XXXVI, da CF/88, bem como na Lei de Introdução ao Código Civil, em seu art. 6º, § 2º. Isto é, a parte insatisfeita poderá modificar o resultado atingido. Ainda, o recorrente tem a possibilidade de desistência da pretensão recursal, instituto previsto no art. 501 e 502, do CPC.
VI. Conclusão
Como explanado, ocorreu sim uma alteração relevante e significativa da orientação jurisprudencial da Corte Superior. Contudo, a discussão sobre a taxatividade ou não rol de procedimentos e eventos estabelecidos pela ANS ainda não chegou ao seu fim.
Neste sentido, existe a possibilidade de mudança da decisão dentro do próprio Judiciário, seja pela via recursal ou pela ADIn, como também pelo poder Legislativo, que vem estudando projetos que versam sobre o mesmo tema.
Portanto, a discussão sobre os efeitos da decisão prolatada pela 2ª seção do STJ ainda estão em aberto, pois, estão em defasagem dispositivos que versam especificamente a repercussão da decisão em sede de embargos de divergência, não submetidos expressamente à sistemática dos recursos repetitivos e cabível sempre a atuação processual para buscar a distinção entre os casos submetidos à apreciação do poder Judiciário.
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1 ROL da ANS é taxativo, com possibilidades de cobertura de procedimentos não previstos na lista. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/08062022-Rol-da-ANS-e-taxativo--com-possibilidades-de-cobertura-de-procedimentos-nao-previstos-na-lista.aspx. Acesso em: 10 jun. 2022.
2 LOURENÇO, Stella Rangel. Os embargos de divergência no projeto do novo Código de Processo Civil. 2011. 19 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade Federal do Espírito Santo, Espirito Santo, 2011, p. 7.
3 DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 19. ed. Salvador (Bahia): Podivm, 2022, p. 285.
4 LOURENÇO, Stella Rangel. O cabimento dos embargos de divergência. 2012. 168 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade Federal do Espírito Santo, Espirito Santo, 2012, p. 138-139.
5 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo (São Paulo): Saraiva, 2008, p. 1.179
6 Rcl 2617 AgR/MG, rel. Min. Cezar Peluso, 23.2.2005. (Rcl-2617)
7 VITAL, Daniel. Após STJ, disputa sobre taxatividade do rol da ANS vai ao STF e ao Congresso. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-10/stj-disputa-rol-ans-stf-congresso. Acesso em: 23 jun. 2022.
8 FRIEDE, Roy Reis: Lições Objetivas de Direito Constitucional, 1999, Saraiva apud AVILA, Marcelo Roque Anderson Maciel. Direito adquirido, ato perfeito, coisa julgada e emendas constitucionais, p. 4
9 MELLO, Celso Antônio Bandeira de: Revista de Direito Público nº 96, p. 119 apud AVILA, Marcelo Roque Anderson Maciel. Direito adquirido, ato perfeito, coisa julgada e emendas constitucionais, p. 4