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A lei 14.382/22 e o avanço para a comunidade LGBTQIA+

No dia 28 de junho (data, inclsuive, comemorativa para a comunidade LGBTQIA+) deste ano foi publicada a lei 14.382/22, que, talvez tenha passado desapercebida uma alteração legislativa indubitavelmente relevante para a comunidade.

4/7/2022

No dia 28/6/22 de comemorou-se o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, data que remonta ao dia 28/6/69, quando no Stonewall In, bar gay na cidade de Nova York, houve o confronto entre policiais e frequentadores.

Naquela data, policiais invadiram o bar sob o argumento de que ali havia comércio ilegal de bebidas e, com truculência, passaram a deter e colocar os frequentadores dentro das viaturas. Na época esse tipo de “batida policial” era comum. Entretanto, diferentemente de outras ocasiões, os frequentadores que não foram detidos, em vez de se dispersarem, passaram a aplaudir aqueles que foram .

Os espectadores daquele “espetáculo” passaram a aumentar pela presença de turistas e moradores da região, e foram interpelados por uma frequentadora que estava sendo arrastada para a viatura, que disse: “Por que vocês não fazem alguma coisa?” Diante dessa “provocação”, a aqueles que antes apenas observavam, passaram a agir e a fazer parte da história ao se juntarem à “resistência” por meio de cânticos e arremesso de garrafas e pedras contra os policiais, que, por sua vez, se viram obrigados a recuar e a se abrigarem justamente dentro do Stonewall In. Nos dias que se seguiram, novos protestos e confrontos ocorreram, mas o dia 28/6/69 ficou marcado como o dia da resistência .

Para Michael Bronski, professor de Harvard, o ocorrido em Stonewall In representou “[...] “mudança chocante de consciência para o mundo”. E em seu rastro surgiu a Frente de Libertação Gay [...]” .

De lá para cá, ao redor do mundo, a comunidade LGBTQIA+, resistindo ao preconceito – absolutamente infundado, diga-se – foi conquistando direitos, garantias e proteção. É claro que ainda não se tem o ideal, já que ainda vivemos uma sociedade “doente” em que há pessoas – essas sim, “doentes” – que se consideram paladinos da “moral e dos bons costumes”, e vociferam ideias “morais” e “religiosas” (entre aspas mesmo, pois o religioso de verdade, independentemente da vertente, crença, etc., deveria pregar o amor, a igualdade, não o preconceito, a segregação), ainda consideram que ser gay, lésbica, bissexual, trans, inter, assexual, ou qualquer outra identificação que a pessoa tenha ou queria ter, é pecado, é errado, é safadeza, é imoral, e blá-blá-blá.

Pois bem, o dia 28/6/22 agora tem outro motivo para ser lembrado e considerado como histórico, ao menos para a comunidade LGBTQIA+ brasileira. Isso porque, no dia 28/6/22 foi publicada a lei 14.382/22, que, talvez pelo fato de tratar ampla e nominalmente de alterações legislativas relativas a registros públicos, e não especificamente sobre direitos LGBTQIA+, tenha passado desapercebida uma alteração legislativa indubitavelmente relevante para a comunidade. Antes de adentrarmos nela, rememoremos algumas conquistas, ao longo dos últimos anos, até se chegar, de forma, digamos, “natural”, à alteração que será tratada.

Um marco importante na trajetória LGBTQIA+ foi a retirada da homossexualidade da lista de CID pela OMS em maio de 1990.

O Brasil, em termos legais de direitos, garantias e proteção, passou a ter mudanças relevantes a partir do final dos anos 2000, quando em 2008 o processo de redesignação sexual passou a ser oferecido pelo SUS; e, em 2009, o Ministério da Saúde passou a permitir que o nome social fosse usado nos cadastros do SUS.

No ano de 2011, em decisão histórica e paradigmática, o STF, reconheceu o direito de estabelecimento de união estável por casais homoafetivos. Entretanto, ainda assim, alguns casais enfrentaram dificuldades, especialmente com relação à conversão da união estável em casamento. Então, em 2013, o CNJ emitiu a resolução 175, que estabeleceu que os cartórios estavam proibidos de recusar a habilitação, a celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, sob pena de adoção de providências pelo juiz corregedor.

Já no ano de 2019, o STF, em ADIn por omissão, decidiu que, até que o Congresso Nacional edite lei específica sobre o tema, condutas transfóbicas e homofóbicas devem ser enquadradas como tipo penal previsto na Lei do Racismo. Ou seja, transfobia e homofobia foram equiparadas ao racismo.

A partir daqui trataremos de um dos principais e mais delicados temas que envolvem a comunidade LGBTQIA+: o nome civil.

Em primeiro lugar, não é demais lembrar que o CC/02, no art. 16, estabelece que “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.

O nome civil, segundo Caio Mário da Silva Pereira, “é o elemento designativo do indivíduo e fator de sua identificação na sociedade, o nome integra a personalidade, individualiza a pessoa e indica grosso modo a sua procedência familiar” .

Sendo um elemento designativo do indivíduo e integrante da personalidade, por óbvio, o nome está intrinsicamente relacionado à dignidade, à honra, à imagem da pessoa. Um nome vexatório, pode gerar, por exemplo, consequências social e psicologicamente negativas. Tanto é que o legislador estabeleceu (lei 6.015/73) a possibilidade de a pessoa, ao atingir a maioridade civil (18 anos), dentro de um ano, alterar o seu prenome. Além disso, o registro civil pode negar o registro de prenomes suscetíveis de expor ao ridículo. Ou seja, o nome, para qualquer pessoa, é um elemento de identificação pessoal e social fundamental. 

Pois bem, em março de 2018, em julgamento de ADIn, o STF reconheceu a possibilidade de transgêneros alterarem o nome e o gênero no assento de registro civil, mesmo sem a realização de cirurgia de redesignação de sexo e sem a necessidade de autorização judicial. Como decorrência dessa decisão, o CNJ, em junho de 2018, emitiu a resolução 73 que trata do tema, e que, apesar de prever a possibilidade de alteração do prenome no registro civil, exige uma série de documentos, dentre eles, certidões de distribuição de processos cíveis e de protestos, por exemplo.

Em que pese a decisão do STF e a resolução do CNJ, há pessoas que ainda encontram dificuldade para ter garantido direitos judicialmente reconhecidos, dentre eles o direito de alteração do prenome, sob fundamentos ilegais, tais como convicção pessoal e/ou religiosa; bem como de que não apresentaram laudos psicológicos e/ou de transição de gênero (não obrigatórios, mas sim facultativos) .

É nesse ponto que o dia 28/6/22, data em que foi publicada a lei 14.382/22, é um dia marcante para a comunidade, muito embora ela não trate, especificamente, sobre direitos LGBTQIA+. Isso porque, a partir de agora, independentemente de prazo, motivação, gênero, juízo de valor ou de conveniência (salvo supeita de vício de vontade, fraude, falsidade, má-fé ou simulação) e de decisão judicial, qualquer pessoa, após ter atingido a maioridade civil, poderá requerer a alteração do seu prenome de forma extrajudicial, conforme se observa da nova redação dada ao art. 56 da lei 6.015/73 abaixo consignado:

Art. 56. A pessoa registrada poderá, após ter atingido a maioridade civil, requerer pessoalmente e imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de decisão judicial, e a alteração será averbada e publicada em meio eletrônico.     

§ 1º A alteração imotivada de prenome poderá ser feita na via extrajudicial apenas 1 (uma) vez, e sua desconstituição dependerá de sentença judicial.    

§ 2º A averbação de alteração de prenome conterá, obrigatoriamente, o prenome anterior, os números de documento de identidade, de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, de passaporte e de título de eleitor do registrado, dados esses que deverão constar expressamente de todas as certidões solicitadas.

§ 3º Finalizado o procedimento de alteração no assento, o ofício de registro civil de pessoas naturais no qual se processou a alteração, a expensas do requerente, comunicará o ato oficialmente aos órgãos expedidores do documento de identidade, do CPF e do passaporte, bem como ao Tribunal Superior Eleitoral, preferencialmente por meio eletrônico.

§ 4º Se suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente, o oficial de registro civil fundamentadamente recusará a retificação.

Em vista do exposto, considerando-se especialmente a nova redação do art. 56 da lei 6.015/73, é possível afirmar, sem sombra de dúvidas, que aqueles (as) que não se identifiquem com o seu prenome, especialmente aqueles (as) da comunidade LGBTQIA+, com ênfase às pessoas trans, que o direito à alteração do prenome é um direito legalmente garantido, não havendo mais que falar discussão baseada em idade, decisão judicial, resolução administrativa e/ou convicções pessoais.

João Felipe Oliveira Brito
Sócio no OBMA Advogados | Professor Universitário | Especialista em Direito Civil e Processo Civil e Mestre em Direito pela FMU.

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