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Terceira Turma do STJ reforma acórdão do TJ/SP e reconhece a responsabilidade do fornecedor por defeitos ocultos de produto durável

Não obstante o escoamento do período da garantia contratual.

28/6/2022

A Terceira Turma do STJ, no Resp 1.787.287 (2018/0247332-2) relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, decidiu que, em caso de vício oculto de produto previsto no § 3º do artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o consumidor não está subordinado ao prazo da garantia convencional ou legal, sendo-lhe permitido solicitar reparos durante a vida útil do produto. Dessa forma, ocorre a separação do prazo decadencial para reclamar vício oculto do prazo de garantia pela qualidade do produto, que pode ser o legal, como o previsto no artigo 26, I e II do CDC (e no artigo 445 do Código Civil) ou o prazo contratual. Além disso, por se tratar de relação consumerista, cabe ao fornecedor demonstrar que o vício não é oriundo de uso inadequado do produto pelo consumidor, o que não ocorreu no caso em julgamento.

A teoria da vida útil do produto tem sido utilizada em diversos julgados, como no REsp 984.106/SC, de 2012, relatada pelo ministro Luis Felipe Salomão, o qual afirmou que os prazos de garantia (legais ou contratuais) se relacionam com defeitos relativos ao desgaste natural do bem durante um intervalo durante o qual não se espera que ele apresente qualquer deterioração, sendo que, findo tal período, é tolerável a ocorrência de qualquer falha decorrente de desgaste sem que seja imputada culpa ao fornecedor. Já o vício oculto relaciona-se com deficiências oriundas de questões estruturais da fabricação do produto, tais como erros de projeto, cálculos e resistência de materiais, entre outros fatores, que só aparecem com o tempo de uso, uma vez que se encontravam latentes até se fazerem notar. Caso a falha intrínseca se torne visível durante a vida útil do produto, período durante o qual se espera razoavelmente que ele mantenha seu bom funcionamento (e em atendimento à legítima expectativa do consumidor), tem o consumidor o direito de reclamar o reparo, observando-se os prazos decadenciais descritos nos incisos I e II do referido artigo 26, os quais devem ser contados a partir da constatação do defeito.

Ambos os julgados mencionados, porém, ressalvam que esse raciocínio não equivale a dizer que o fornecedor tem o dever de se responsabilizar pelo seu produto permanentemente, mas apenas durante o ciclo vital dele esperado, o que deverá ser analisado caso a caso, posto que não existem prazos pré-estabelecidos (e vinculantes) de vida útil para cada tipo de bem.1

Nesse sentindo, destaca o ministro Salomão no paradigmático Resp  984.106/SC:

5. Por óbvio, o fornecedor não está, ad aeternum, responsável pelos produtos colocados em circulação, mas sua responsabilidade não se limita pura e simplesmente ao prazo contratual de garantia, o qual é estipulado unilateralmente por ele próprio. Deve ser considerada para a aferição da responsabilidade do fornecedor a natureza do vício que inquinou o produto, mesmo que tenha ele se manifestado somente ao término da garantia.

9. Ademais, independentemente de prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum. Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo.”

O trecho destacado reflete a teoria da qualidade desenvolvida pela doutrina brasileira mais moderna, encabeçada por Antônio Herman Benjamin. Essa teoria se funda na ideia da qualidade como fundamento básico do CDC para a responsabilidade contratual e extracontratual dos fornecedores de bens e serviços. Assim, a legislação impõe um dever de qualidade com relação ao que é oferecido no mercado aos consumidores, sendo que, em caso de descumprimento desse dever, a consequência será a obrigação de sanar o vício ou substituir o bem viciado ou, ainda, reparar os danos causados ao consumidor. Tais efeitos podem ser contratuais ou extracontratuais, a depender da situação fática, e, nos casos em que o defeito seja oculto, a obrigação perdura no tempo da vida útil do bem. Esse dever de qualidade seria uma obrigação anexa à atividade do fornecedor, e ele pode ser dividido na exigência de qualidade com relação à adequação (conforme arts. 18 e ss do CDC) e segurança (conforme artigos 12 a 17 do CDC) do produto/serviço.2

Conforme essa leitura, vê-se que o CDC alargou a aplicação da responsabilidade por vício redibitório previsto no Código Civil, não limitando a obrigação do fornecedor de substituir o bem adquirido em função de contrato ou reduzir-lhe o preço (artigo 441 do Código Civil) no prazo descrito no § 1º do artigo 445, mas permitindo a incidência dessa responsabilidade durante toda a vida útil do produto, o que é evidenciado pela ausência de um limite temporal no § 3º do artigo 26 para reclamação de vícios ocultos3. Essa ampliação também está relacionada à ideia de proteção da confiança que o consumidor deposita no fornecedor ao adquirir um bem ou contratar um serviço, ou seja, a confiança de que o produto/serviço será adequado para o fim para o qual foi comprado ou contratado por um prazo razoavelmente esperado. Há, portanto, uma relação estreia com o dever anexo do fornecedor relativo à qualidade e adequação do bem ou serviço que oferece com a confiança que o consumidor deposita neste fornecedor ao escolhê-lo para lhe suprir um bem (ou prestar um serviço) e a expectativa de que o que foi adquirido permanecerá útil durante um prazo razoável, que variará de acordo com a natureza do produto.4

Considerando que a jurisprudência e doutrina mais moderna têm se encaminhado para acolher a visão mais protetiva ao consumidor no que tange a vício oculto, conforme descrito neste artigo, é importante que aqueles que participam da cadeia de consumo e que, portanto, respondem solidariamente pelos vícios dos produtos duráveis e não duráveis (artigo 18 do CDC) estejam atentos para a importância de estarem aptos a atenderem as reclamações dos consumidores que podem surgir em função de um vício oculto pelo prazo de vida útil do produto, tomando providências como manter no mercado peças sobressalentes que podem ser necessárias para reparação de um produto, garantindo estoque suficiente para fazer frente às eventuais demandas de consertos ou trocas.     

Se por um lado esse posicionamento pode parecer mais um ônus para as empresas, por outro pode ser uma oportunidade para promover um aumento do investimento em tecnologia, projetos e materiais qualidade, gerando mais dinamismo e modernização das indústrias, produtos mais adequados ao conceito de sustentabilidade por serem mais duradouros e, consequentemente, mais alinhados com a visão mais atual de consumo. Além disso, há um ganho reputacional que também é importante, e ele se traduz em fidelização de clientela justificada pelo vínculo de confiança que estabelece com os consumidores.

 ___________

1 Há algumas referências que podem ser utilizadas nessa análise, como a pesquisa realizada em 2013 pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e o Instituto de Pesquisa Market Analysis intitulada “Ciclo de Vida de Eletroeletrônicos”. A pesquisa aponta a vida útil média no Brasil de produtos como celular, câmera fotográfica, impressora, computador, micro-ondas, lavadora de roupas, fogão, televisão e geladeira ou freezer. Cf em http://www.idec.org.br/uploads/testes_pesquisas/pdfs/market_analysis.pdf

2 Cf. Marques, Cláudia Lima, “Contratos no Código de Defesa do Consumidor”, Editora Revista dos Tribunais, 9ª edição, 2019, pg. 1346 e segs.

3 Nesse caso, o prazo decadencial passará a contar a partir do descobrimento do vício oculto.

4 Conforme Resp 114.473, 96/0074492-0/RJ, relatado pelo ministro Sálvio Figueiredo Teixeira, publicado no DJ em 05/05/1997, “Entende-se por produtos não duráveis aqueles que se exaurem-no primeiro uso ou logo após sua aquisição, enquanto os duráveis, definidos por exclusão, seriam aqueles de vida útil não efêmera.”

Maria Carolina Mendonça de Barros
Advogada em São Paulo sócia do escritório Mendonça de Barros Advogados. Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). ECPC-B Professional DPO Certification, European Centre on Privacy and Cybersecurity (Maastricht University). CIPP/E. Certificação Data Privacy Brasil em Privacidade e Proteção de Dados.

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