Os preceitos mandamentais do pronunciamento jurisdicional de mérito que transita em julgado revoltam-se da coisa julgada material. É dizer: Os capítulos decisórios, tão decomponíveis quanto sejam as pretensões do autor (DINAMARCO, 2006), tornar-se-ão imutáveis e indiscutíveis.
O discurso jurídico (figurado no pronunciamento do estado-juiz) só possui efetividade impositiva quando imbuído de autoridade institucional que lhe assegure efetividade declaratória, constitutiva e mandamental (MARINONI, 2016). No plano teórico, a res judicata romana – ressalvada a evolução histórico-dogmática do tema - dá bom azo a essa proteção.
A Constituição Federal de 1988, fruto da erosão democrática pós-positivista que lhe insurgiu do regime militar, assegurou por cerne do próprio estado de direito, a segurança jurídica como direito fundamental no nova carta política, se tratando de princípio-norma constitucional de aplicabilidade plena que detém finalidade na apaziguação social, boa-fé e asseguramento da legítima expectativa do cidadão na conduta do poder estatal, respeitando os atos pretéritos de modo diligente ao futuro (MENDES e GONET, 2021).
A segurança jurídica, mesmo não expressa ipsis literis na carta constitucional, se extrai como direito fundamental a partir de sua interpretação lógico-dedutiva que irradia corolários de garantia multifacetária: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art. 5°, XXXI, CRFB/88), sendo “confluência qualificada das noções de certeza, estabilidade, previsibilidade e confiança” (TAVARES, 2020).
Mas por ora, nos convêm ater tão somente à coisa julgada na égide do processo civil moderno como uma dessas várias facetas da segurança jurídica.
Eis as suas premissas gerais de trabalho: (1) É instituto constitucional-processual que recobre a decisão judicial transitada em julgado de autoridade, mediante ordem que veda sua rediscussão ou mutabilidade (art. 502, CPC); (2) não pertence ao pronunciamento em si. É qualidade exógena a ela atribuída; (3) irradia efeito preclusivo – repele todas as deduções e defesas das quais as partes poderiam se valer para se acolher ou rejeitar o pedido (art. 508, CPC); (4) se formará em face dos partícipes do processo (limite subjetivo) e aos capítulos da sentença, excluindo-se os fatos (causa de pedir próxima) e fundamentos jurídicos (causa de pedir remota) que conduziram a cognição racional do magistrado ao decisório (limite objetivo); (5) se constitui de pronunciamento judicante formado sobre o contraditório e no exercício cognoscível exauriente; (6) questões incidentais que surgem da intercorrência procedimental, embora sobre o crivo exauriente, serão acobertadas da res judicata quando prejudiciais a análise de mérito das questões principais, desde que não se figure a revelia e exista competência jurisdicional pela matéria e pela pessoa (incisos do § 1° do art. 503, CPC).
Mas, sendo o direito um organismo fluido que se modifica tal qual seja a mudança, (in)evolução e/ou alteração dos fatos naturais, da vida, da sociedade e das estruturas de poder, a máxima rebus sic standibus vigorará: sobrevindo – na relação jurídica de trato continuado - “modificação no estado de fato ou de direito” que recai sobre capítulo revolto da coisa julgada material, cessará a rigidez de sua proteção (art. 505, I, CPC), tornado novamente à luz do imprevisível, nova possibilidade de rediscussão e mutação do pronunciamento jurisdicional.
O ilustrativo exemplo da doutrina se dá sobre a decisão definitiva que fixa prestação de alimentos. Ora, se o estado fixado se altera (a necessidade, a capacidade e/ou a proporcionalidade), plenamente possível sua revisão.
Mas fiquemos com uma relação continuada diversa: A jurídico-tributária sob a perspectiva do fato gerador in concreto: Quando o mundo fático encontra os elementos da regra matriz de incidência tributária, forma-se o fato gerador, iniciando-se a relação entre estado e contribuinte.
Ressalvadas divergências de doutrina, o fato gerador pode ser a) instantâneo, que se aperfeiçoa por um único ato no tempo, a exemplo da transmissão de bem imóvel que se inicia e se esgota com o registro do título translativo em matrícula; b) continuado, que pela constância, poderão incidir de modo repetido e estável e/ou c) periódica, fundado em uma cadeia de atos e/ou fatos concatenados que, quando reunidos, incidem na regra do fato gerador, a exemplo a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.
Falando-se em CSLL, tal foi estopim – uma vez mais - para discussões no âmbito da Suprema Corte.
Em síntese, desta vez a União busca a cobrança retroativa – sobre os exercícios financeiros de 2001 a 2003 - de CLSS de pessoa jurídica contribuinte que, em 1992, favoreceu-se com decisão definitiva de declaração incidental de inconstitucionalidade da Lei em que se funda o tributo (Lei 7.869/88), fundamentada na posterior declaração, pelo Supremo, de constitucionalidade na cobrança de CLSS na forma que dispõe a Lei n. 7.869/1988 (ADI n° 15, dotada de eficácia erga omnes, com julgamento finalizado em 14.06.2007), tornando as sentenças contrárias anteriores, discrepantes do entendimento consolidado pelo plenário.
Eis as teses propostas no voto proferido à relatoria do Min. Luís Roberto Barroso, na condução do RE 955.227 (tema 855), onde nega procedência ao Recurso Extraordinário da União em face da ordem de segurança concedida ao contribuinte impetrante:
“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das sentenças transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”
Vota o Ministro no sentido de reconhecer, justamente, a limitação temporal de eficácia da coisa julgada material (art. 505, I, CPC) pela alteração do estado de direito superveniente à coisa julgada que alcançou inúmeros contribuintes favorecidos com decisões passadas em julgado de declaração (em controle incidental) da inconstitucionalidade formal de implementação do tributo aludido, conservando os atos pretéritos da coisa julgada em modulação de efeitos para o futuro.
Ao longo da vigência da Contribuição Social pelo Lucro Líquido, o exercício do controle incidental de constitucionalidade pelas Varas Judiciais do país se instaurou e, por muitas das vezes, foi favorável ao contribuinte ao compreender que a lei que o institui deve ser acompanhado do quorum e da forma de legislação complementar.
Até este ponto, sem maiores problemáticas. O controle incidental de constitucionalidade produz efeitos inter partes. O contribuinte interessado que inicie a sua via crucis para obter a declaração de inconstitucionalidade do tributo para si.
Daí a questão: Do procedimento de execução fiscal, o Código de Processo Civil ao art. 535, § 8º dispõe que, sobrevindo - após o trânsito em julgado do título judicial que constitui o fundamento da execução - declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo do qual o título judicial se funda, quando proferida pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado ou difuso afeto por repercussão geral, poderá a coisa julgada ser desconstituída pelas vias da ação rescisória (art. 966 e seguintes, CPC), “cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal”.
A tese (tema 855) propõe efeitos diretos e automáticos ex tunc sobre a coisa julgada material constituída em matéria tributária, sendo dispensável a propositura da via rescisória nas relações tributárias continuadas quando do exercício de controle incidental sob a sistemática de repercussão geral.
Aparentemente, as técnicas hermenêuticas dos Ministros se pautarão incisivamente em delimitar a literalidade dos dispositivos de pertinência, onde a declaração de “inconstitucionalidade” que deles se lê, não alcançarão o mesmo resultado prático que uma declaração de “constitucionalidade”, como feito com o tributo (CSLL). É dizer: O art. 535, §8° diz respeito à declaração de inconstitucionalidade, mas não se estende às hipóteses em que a Suprema Corte declara, por outro lado, justamente a constitucionalidade de lei ou ato normativo. Mesmos sistemas de controle, efeitos práticos diferentes.
A celeuma solucionista também se encontra aqui: Com o surgimento da ordem pré-requisitória de repercussão geral para acesso à Suprema Corte pelo Recurso Extraordinário (relevância econômica, político-social ou jurídica que transcenda o mero interesse das partes), em muito se aproximou o controle de constitucionalidade incidental da teleologia a que se recosta o controle concentrado – de efeitos erga omnes e de vinculação forte -. Verdadeiro fenômeno de “abstrativização do controle difuso de constitucionalidade” que tanto preleciona a doutrina constitucionalista moderna, a começar pelo próprio Ministro Relator que exercita o tema em obra de sua autoria.
Tal aproximação do exercício de controle de constitucionalidade pela Suprema Corte alavanca a similitude de força das decisões do plenário - objetivação do exercício de controle constitucional -, o que se reforça com a revisita do Min. Relator à proposta do Min. Gilmar Mendes em sede da Reclamação n° 4.335, nos fins de abalizar a interpretação do art. 52, X, CRFB/88, que peremptoriamente prevê ser de competência privativa do Senado Federal atribuir efeitos extra partes de ineficácia da “lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;”. Tal dispositivo será dispensável, por ora, pela aplicabilidade de mutação Constitucional que adequa a hermenêutica do juiz ao espírito dos tempos. O dispositivo constitucional se limita à competência privativa do Senado em atribuir a publicidade necessária à declaração, apenas, conforme interpretam os Ministros citados.
Sobre este panorama, alçado à técnica de ponderação de direitos e garantias fundamentais não absolutas e de igual vértice de estatura, principalmente pela primazia da isonomia dos contribuintes - considerando a situação díspare entre contribuintes beneficiados com sentença definitiva de inconstitucionalidade do tributo e os que não o foram -, bem como em consideração ao art. 505, I, CPC, se propõe interromper a eficácia da coisa julgada nas relações de discussão jurídico-tributária de modo automático ao proferimento de declaração de constitucionalidade que a elas se contrariem, quando emanado pelo pleno da Suprema Corte em vias incidentais com repercussão geral e, ao caso, modulando-se os efeitos em observação aos princípios da anterioridade nonagesimal, “conforme a natureza do tributo”.
Em igual toada argumentativa, conduz o Relator Min. Edson Fachin o RE 949.297, ao propor o mesmo raciocínio hermenêutico de irradiação automática de efeitos modificativos da coisa julgada nas relações jurídico-tributárias da celeuma, quando da ulterior decisão do pleno em sede de controle de constitucionalidade concentrado.
O tema despertou divergência pelo voto do Min. Gilmar Mendes, que predita a possibilidade no resguardo da ação rescisória para o caso e, para a situação em concreto submetido à julgamento, prover o Recurso Extraordinário interposto pela União para fins de denegar a ordem de segurança impetrada pelo contribuinte na finalidade de assegurar a não cobrança retroativa dos exercícios financeiros de 2001 a 2003, sinalizando futuro embate de votos, principalmente na possibilidade, ou não, de cobrança retroativa do tributo de trato sucessivo afastado por decisão transitada em julgada anterior à apreciação contrária da Suprema Corte.
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1 DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de Sentença. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
2 MARINONI, Luiz Guilherme. A Intangibilidade da Coisa Julgada Diante da Decisão de Inconstitucionalidade: art. 525, §§ 12, 13, 14 e 15, CPC/2015. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
3 MENDES, Gilmar Ferreira; GONET, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 16. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
4 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, 18. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
5 Recurso Extraordinário 955.227/BA (tema 855), Min. Relator Luís Roberto Barroso.
6 Recurso Extraordinário 949.297/CE (tema 881), Min. Relator Edson Fachin.