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Rol taxativo e urgência de modulação de efeitos da decisão do STJ

Na prática, o overruling do STJ significa que as operadoras de planos de saúde somente estão obrigadas a cobrir aquilo que consta na lista definida pela agência reguladora (ANS).

17/6/2022

O STJ precisa, com urgência, modular os efeitos da radical alteração de sua jurisprudência operada em 8/6/22. Na ocasião, os ministros da 2ª seção do STJ1 concluíram o julgamento de dois recursos2 e, por maioria de 6x3, fixaram a tese de que é taxativo “com mitigação” o rol da ANS sobre RPES – Procedimentos e Eventos em Saúde, ou simplesmente “rol de cobertura”.

Não soou justo e nem correto o juízo de ponderação realizado pelo STJ, já que impôs sacrifícios à proteção da saúde dos pacientes e usuários para, de outro lado, resguardar a “saúde financeira” dos planos de saúde. A base da decisão foi essencialmente de ordem econômica. Contudo, suas foram fulminadas pelo voto da ministra Nancy Andrighi, que abriu divergência e foi seguida pelos ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Moura Ribeiro. Segundo a min. Nancy, os planos de saúde tiverem recentes resultados superavitários, tornando insustentável o argumento de risco à “saúde financeira” do setor.

Apesar disso, venceu a tese da taxatividade. Na prática, o overruling do STJ significa que as operadoras de planos de saúde somente estão obrigadas a cobrir aquilo que consta na lista definida pela agência reguladora (ANS). Alterou-se substancialmente a dinâmica da relação jurídica entre pacientes/usuários e os planos de saúde. Além disso, remodelou-se por completo os critérios de ajuizamento e julgamento de ações de tutela do direito da saúde suplementar.

Como consequência, os usuários estão expostos a imediata descontinuidade de fornecimento de medicamentos ou de realização de tratamentos essenciais para diagnóstico, controle, prevenção de agravamento de doenças, para cura e para sobrevida com qualidade e dignidade, e que estão/estavam sendo custeados pelo fundo que as mensalidades pagas pelos pacientes formam e são geridos pelas operadoras. É concreta a possibilidade de massiva migração de pacientes do sistema de saúde suplementar – sem recursos financeiros para pagar pelo aditamento e ampliação da cobertura – para o Sistema Único de Saúde, sem saber-se se o SUS absorverá com eficácia o “passivo” gerado pela decisão do STJ.

Previu-se, de outro lado, “exceções” cunhadas de “rol taxativo mitigado”, um “plexo frankstein” de condicionantes que, se cumpridas pelo paciente, conduziriam à obrigação de o plano custear, mesmo que fora da lista. As exigências do “por fora da lista”, contudo, são quase inalcançáveis e demandarão dos advogados e operadores do direito muita destreza, permanente diálogo com médicos assistentes, diuturnas consultas aos procedimentos incorporados ao rol e/ou já rejeitados pela ANS, e atenção nas ações judiciais para evitar demandas judiciais temerárias ou a imposição de sucumbência.

Diante da emergência que a situação evoca, a decisão da 2ª seção do STJ deve ser alvo de modulação dos efeitos do acórdão do STJ para definir a partir de quando valerá.

Modular os efeitos da decisão significa definir a partir de quando o novo entendimento passa a valer3. Como regra, e em atenção ao instituto da “prospective overruling”, a alteração jurisprudencial deve ter eficácia “ex nunc”, ou seja, não pode retroagir e só vale para o futuro4, sob pena de surpreender e prejudicar pacientes que adquiriram o direito de cobertura de tratamento à luz do status quo ante jurisprudencial então vigente.

Desde logo, é possível afirmar que por força da eficácia horizontal das normas constitucionais, da segurança jurídica, da razoabilidade, da proporcionalidade, da interpretação “pro homine” e do dever de se dar às normas que atinjam direitos fundamentais a hermenêutica que maior efetividade constitucional materialize, a única solução constitucional possível é a aplicação prospectiva (“pró-futuro”) do entendimento de que é taxativo o rol da ANS, tendo por marco inicial o trânsito em julgado do acórdão de 6x3 da 2ª seção do STJ, vindo a atingir somente os casos em que não manifestado/ocorrido o fato gerador do dever de cobertura (doença, laudo médico indicando câncer devastador e com metástase, ou diagnóstico de autismo, por exemplo).

Nos casos em que já ocorreu o fato gerador da obrigação de cobertura de tratamento durante a vigência do entendimento jurisprudencial da natureza exemplificativa do rol da ANS (antes de 8/6/22), tal contexto fático afasta os efeitos do novel entendimento do STJ, independentemente do ajuizamento da ação pelo paciente para afastar negativa de cobertura, presente a vedação constitucional de a nova norma jurídica (o novel entendimento do STJ equivale à nova lei) atingir o direito adquirido e o ato jurídico perfeito.5

A “mudança” da jurisprudência do STJ em matéria de direito de saúde sempre remete a indagações sobre a segurança jurídica. Nesse sentido, vislumbra-se a importância do estudo do instituto da modulação dos efeitos temporais das decisões do STJ, notadamente quando enseja alteração na jurisprudência para piorar a situação de pacientes e usuários do sistema de saúde suplementar.

O estudo da teoria dos precedentes e de sua modificação evidencia que, por força da segurança jurídica e da estabilidade do sistema jurídico, tal qual ocorre com a lei, a jurisprudência pretérita, uma vez alterada, continua a reger os casos em que o fato gerador do direito à cobertura de tratamento ocorreu sob sua vigência.

Isso porque, o texto legislado não corresponde à norma jurídica. Na célebre lição de Peter Häberle (normativo-estruturante), não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada, e é o exercício da hermenêutica que coloca o ato normativo no tempo e o integra à realidade pública.6

Ao preconizar a irretroatividade da lei em relação ao ato jurídico perfeito e em relação ao direito adquirido, a proibição constitucional de atribuição de efeito ex tunc, não alcança o mero enunciado legislado, positivado, mas, sim, a inteligência da lei aplicada ao caso concreto7 e em associação à normas constitucionais que regem o direito fundamental à saúde. O plexo normativo decorrente dessa hermenêutica corporifica a lei. Assim, para fins de irretroatividade da lei sobre direito adquirido e ato jurídico perfeito, “lei” deve ser entendida como o direito, a inteligência normativa que se adere à “ponta do iceberg” positivada, compreendendo, portanto, a própria jurisprudência veiculadora da natureza exemplificativa do rol da ANS em matéria de direito à saúde dos pacientes/usuários de planos de saúde, cuja ulterior modificação somente pode ter aplicação prospectiva.

Quando uma corte de justiça, notadamente o STJ, toma a decisão grave de reverter uma jurisprudência consolidada e “pro homine”, não pode nem deve fazê-lo com indiferença em relação à segurança jurídica, às expectativas de direito por ele próprio gerada, à boa-fé e à confiança dos jurisdicionados e pacientes/usuários dos planos de saúde.

Se é o poder Judiciário, e sobretudo o STJ, no sistema brasileiro, o órgão que define em última análise qual é o direito decorrente de lei Federal, a modificação do entendimento consolidado da Corte sobre determinada matéria altera o direito vigente, e, sob a perspectiva do cidadão, tal providência se equipara, em todos os elementos relevantes, à alteração do próprio texto legislado.

Ora, a fim de proteger a pessoa humana, a Constituição estabelece balizas e limites à inovação legislativa, notadamente as de conteúdo de direito à saúde e patrimonial (dentre outras) cujos preceitos possam violar direito adquirido e ato jurídico perfeito.

Pelas mesmas razões, uma Corte de Superposição como o STJ que decide modificar sua jurisprudência consolidada deve preocupar-se ter idênticos cuidados, o que não se verificou no julgamento dos EREsp 1886929/SP e EREsp 1889704/SP.

A mudança da jurisprudência, no presente caso, produziu idêntico efeito de inovação legislativa, e permitir sua aplicação em uma definição temporal flerta com a retroatividade, traduzindo-se em malferimento à regra do art. 5º, XXXIV, da CF/88, de sorte que a mudança de orientação do STJ não pode alcançar pacientes e usuários que ao tempo do overruling já tinham o direito adquirido à cobertura de tratamento.

Estão em xeque axiomas por demais valiosos ao Estado Democrático de Direito, consistentes na segurança jurídica, confiança legítima8 e a boa-fé nas relações entre Poder Público (poder Judiciário) e particulares, circunstância esta que, nos termos do art. 927, §3º, do NCPC, enseja a modulação dos efeitos da alteração de jurisprudência dominante, para que tenha aplicação prospectiva (ex nunc).

E seja pelo controle difuso ou concentrado da constitucionalidade da lei, seja pela teoria do binding precedent, não é novidade no nosso sistema jurídico o mister de modular efeitos de decisões de grande repercussão social e na vida dos cidadãos, a bem da segurança jurídica e outros valores constitucionais.

Em emblemática manifestação no julgamento do RE 590809/RS, cujo tema de fundo era a irretroatividade de novo entendimento em direito tributário (supressão crédito de IPI), o min. Luiz Fux, do STF, trouxe um veemente apelo em prol da adoção do efeito ex nunc como uma regra em caso de alteração jurisprudencial:

Hoje, não é possível a nenhum atuante, na área do direito, nem nós magistrados, nem o Ministério Público, nem os advogados, iniciarem qualquer trabalho sem que ingressem na rede mundial de computadores. E, através dessa rede, eles sabem como é o fim da linha. [...]

Então, o que se espera da jurisprudência se ela é um fator de previsibilidade e segurança jurídica? Que ela seja estável. Mas se ela não for estável, que, quando houver uma modificação dessa jurisprudência, haja, efetivamente, uma modulação temporal, para não criar um estado de surpresa no cidadão jurisdicionado. [...] A Professora Tereza Alvim, na exposição de motivos do projeto de lei que nós entregamos ao Senado, e que está para ser apreciado pela Câmara dos Deputados, baseada numa afirmação de Caenegem, numa obra específica sobre juízes, professores e legisladores, ela afirmava que "O cidadão jurisdicionado não pode ser tratado como um cão, que só sabe o que é proibido quando um taco de beisebol lhe toca o focinho", que é mais ou menos o que está acontecendo. Quer dizer, a jurisprudência era pacífica, o juiz seguiu a jurisprudência [...] nós seguimos essa jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça também; e, aí, vem a jurisprudência e sofre uma modificação. E ESSA MODIFICAÇÃO PEGA DE SURPRESA A TODOS. ENTÃO, EVIDENTEMENTE, ELA TEM QUE TER EFICÁCIA EX NUNC. (grifou-se)

Se em matéria de cunho financeiro/tributário houve um apelo tão contundente em prol da modulação dos efeitos, não pode ser diferente quanto ao caso tratado no persente artigo, que tematiza o direito fundamental à saúde.

Nesse contexto, em observância ao direito adquirido e ao negócio jurídico perfeito, o quanto decidido em 8/6/22 nos EREsp’s 1886929/SP e 1889704/SP deve reger apenas os casos em que o fato gerador do direito à cobertura contratual ocorra após tal data, de sorte que, como regra, os pacientes/usuários que já manifestaram doença ou necessidade de tratamento (são só exemplos da composição do fato gerador) sob a vigência do entendimento da natureza exemplificativa do rol da ANS antes de 8/6/22 não podem ser atingidos pela nova orientação veiculadora do rol taxativo, por questão de segurança jurídica.

Sem essa modulação de efeitos, a decisão do STJ será draconiana, pois inexistirá um regime de transição para que pacientes e familiares possam organizar-se para migrar para o SUS ou para pagar pela ampliação contratual de cobertura via aditamento.

O art. 23 da LINDB preconiza que a decisão “judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”.

Do mesmo modo, sem atentar para os efeitos prospectivos da decisão do STJ, poderão os pacientes ter seus pedidos julgados improcedentes com base no novel entendimento, gerando risco de sucumbência pesadíssima e imposição de prejuízo financeiro ainda maior, sem olvidar, naturalmente, do risco à saúde e à vida.

_____

1 A Segunda Seção do STJ congrega a 3ª e 4ª Turmas do STJ, sendo órgão que resolve divergência entre as Turmas no âmbito do Direito Civil/Privado.

2 EREsp 1886929/SP e 1889704/SP.

3 NCPC, art. 927, §3º: “Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.

4 STF, AR 2422/DF, rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 25.10.2018.

5 CF, art. 5º, XXXVI.

6 Häberle, Peter. “Zeit und Verfassung”. In: Probleme der Verfassungsinterpretation.org: Dreier, Ralf/Schwegmann, Friedrich, Nomos, Baden-Baden, 1976, p. 312/313. Esta obra fora citada no voto do então Presidente do STF, Min. Gilmar Mendes, ao acompanhar a maciça maioria que concedera a ordem no HC n. 91676, Plenário.

7 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Irretroatividade e jurisprudência judicial. São Paulo: Manole, 2007, p. 07 e 14.

8 Neves. Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil. Inovações, Alterações, Supressões Comentadas. 3. ed., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016, p. 513/514.

Wilson Knoner Campos
Advogado Criminalista e Professor. Mestrando em Criminology e Criminal Justice na Royal Holloway, University of London. Pres. Com. Direito Saúde OAB/SC. Especialista em Dto Médico e Dto Penal.

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