Uma das principais discussões nas demandas familiares, ainda mais em tempos de pandemia e recessão, versa sobre questões alimentares, pelo que, como é sabido, o valor da causa deve corresponder ao valor dos alimentos pretendidos pelo alimentado multiplicados por doze meses, nos termos do art. 292, III do CPC.
Desse modo, não é raro que o valor da causa corresponda a valores elevados e, consequentemente, seja necessário o prévio recolhimento de custas iniciais sobre referido montante. Por exemplo, em São Paulo, o cômputo das custas iniciais corresponde a 1% sobre o valor da causa, o que, claramente, pode inviabilizar o acesso à justiça por conta da impossibilidade da parte de arcar com tais montantes (ainda mais em um momento de fragilidade e hipossuficiência).
Nesse cenário, o alimentado, já privado de receber seus necessários subsídios por parte do alimentante, tem de ajuizar ação para intentar o recebimento de tal monta mensal, de modo que, muitas das vezes, se faz imprescindível a concessão dos benefícios da gratuidade de justiça (ainda mais se tratando de menores impúberes).
Muito embora subsista a presunção da veracidade da declaração de hipossuficiência (art. 99, §3º do CPC), muitas vezes os alimentados são instados a comprovar a sua incapacidade de arcar com os custos do processo, sob pena de indeferimento do benefício.
Ocorre que, em alguns casos envolvendo menores de idade, muitas vezes o benefício pretendido é indeferido com base na capacidade financeira de seus genitores/representantes (e não do próprio menor).
Notadamente, tais decisões devem ser objeto de recurso pois não se pode perder de vista que o benefício da gratuidade de justiça é pessoal e intransferível, razão pela qual a capacidade financeira a ser analisada (para a sua concessão ou não) deve ser a dos infantes e não de seus genitores, tal como se manifesta a doutrina:
Como regra geral, o benefício é pessoal e incomunicável, sendo o deferimento resultado de uma análise intuito personae a respeito da insuficiência de recursos daquela parte requerente. É por essa razão que o §6º do art. 99 dispõe que direito à gratuidade da justiça é pessoal, não se estendendo a litisconsorte ou ao sucessor do beneficiário, salvo requerimento e deferimento expressos.1
Desse modo, é sabido que o menor, por si só, é vulnerável e deve ser protegido nos termos da lei como, inclusive, Fernanda Tartuce bem pontua acerca da vulnerabilidade ínsita ao momento em que se encontra o sujeito, desdobrando-se em várias faces, incluindo, a faceta econômica do menor:
Conclui-se que a base das previsões é a vulnerabilidade encontrada no plano material que permite classificar criança e adolescente como “sujeito especial de direitos”; essa aferição é reproduzida no plano processual, como verificado pelas disposições apontadas e permitindo um tratamento diferenciado legítimo.
Em razão do reconhecimento de infância e juventude como momentos especiais na vida do ser humano, criança e adolescente têm status de pessoas em situação peculiar de desenvolvimento.
A vulnerabilidade é ínsita ao momento em que se encontra o sujeito e se desdobra em várias de suas facetas: econômica, informacional e organizacional, partindo-se do pressuposto de que, por si sós, crianças e adolescentes não podem levar a cabo a defesa de seus direitos, sendo, portanto, mais suscetíveis de lesão.2
Ora, considerando que a gratuidade de justiça consiste em benefício personalíssimo, não há razão para considerar a capacidade financeira do genitor ou do representante do menor quando é o menor quem pleiteia tal benesse (já que seus pleitos em juízo devem, necessariamente, ser ajuizados com o resguardo da representação de seus genitores por conta da menoridade em si).
Ainda que assim não fosse, remanesce na jurisprudência a necessidade de que para a concessão dos benefícios da gratuidade, o julgador deve analisar apenas a capacidade dos próprios infantes e não de seus genitores, conforme o C. STJ vem se manifestando:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. GRATUIDADE DE JUSTIÇA. INDEFERIMENTO COM BASE NA RENDA DO REPRESENTANTE LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. DIREITO PERSONALÍSSIMO. AGRAVO CONHECIDO PARA DAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL, EM JUÍZO DE RETRATAÇÃO. DECISÃO Cuida-se de agravo interno interposto por Benicio dos Santos de Andrade contra decisão monocrática proferida por este signatário, a qual conheceu do agravo não conhecer do recurso especial, nos termos da seguinte ementa (e-STJ, fls. 118-124): AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. 1. OFENSA AOS ARTS. 489 E 1.022 DO CPC/15. NÃO CONFIGURADA. 2. JUSTIÇA GRATUITA. HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO COMPROVADA. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ. 3. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL PREJUDICADO. SÚMULA 13/STJ. 4. AGRAVO CONHECIDO PARA NÃO CONHECER DO RECURSO ESPECIAL. Em suas razões (e-STJ, fls. 127-131), o agravante repisa os argumentos acerca da sua hipossuficiência, não devendo ser levada em consideração a situação financeira de seu representante legal, o que impõe a concessão do benefício da gratuidade justiça. Impugnação às fls. 136-141 (e-STJ). Brevemente relatado, decido. Do reexame minucioso dos autos, verifica-se que melhor sorte socorre ao agravante. Consabido, o direito à gratuidade de justiça é personalíssimo, sendo inadmissível a exigência de comprovação dos requisitos à concessão da benesse por pessoa diversa daquela que o postula. Diante disso, mostra-se descabido o indeferimento da gratuidade de justiça, com a restrição injustificada ao exercício do direito de ação, com argumento de que o representante legal da parte possuiria condições financeiras capazes de arcar com as custas processuais. Nesse sentido: CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA CONDENATÓRIA DE ALIMENTOS. DIREITO AO BENEFÍCIO DA GRATUIDADE DA JUSTIÇA. NATUREZA INDIVIDUAL E PERSONALÍSSIMA. EXTENSÃO A TERCEIROS. IMPOSSIBILIDADE. EXAME DO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS AUTORIZADORES A PARTIR DA SITUAÇÃO ECONÔMICA DE PESSOA DISTINTA DA PARTE, COMO A REPRESENTANTE LEGAL DE MENOR. VÍNCULO forte ENTRE DIFERENTES SUJEITOS DE DIREITOS E OBRIGAÇÕES. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA DO MENOR. AUTOMÁTICO EXAME DO DIREITO À GRATUIDADE DE TITULARIDADE DO MENOR À LUZ DA SITUAÇÃO ECONÔMICA DOS PAIS. IMPOSSIBILIDADE. CRITÉRIOS. TENSÃO ENTRE a natureza personalíssima do direito E incapacidade econômica do menor. PREVALÊNCIA Da regra do art. 99, § 3º, do novo CPC. ACENTUADA PRESUNÇÃO DE INSUFICIÊNCIA DO MENOR. CONTROLE JURISDICIONAL POSTERIOR. possibilidade. preservação do acesso à justiça e contraditório. relevância do direito material. alimentos. imprescindibilidade da satisfação da dívida. risco grave e iminente aos credores menores. impossibilidade de restrição injustificada ao exercício do direito de ação. representante legal que exerce atividade profissional. valor da obrigação alimentar. irrelevância. 1- Recurso especial interposto em 18/05/18 e atribuído à Relatora em 13/02/19. 2- O propósito recursal é definir se, em ação judicial que versa sobre alimentos ajuizada por menor, é admissível que a concessão da gratuidade de justiça esteja condicionada a demonstração de insuficiência de recursos de seu representante legal. 3- O direito ao benefício da gratuidade de justiça possui natureza individual e personalíssima, não podendo ser automaticamente estendido a quem não preencha os pressupostos legais para a sua concessão e, por idêntica razão, não se pode exigir que os pressupostos legais que autorizam a concessão do benefício sejam preenchidos por pessoa distinta da parte, como o seu representante legal. 4- Em se tratando de menores representados pelos seus pais, haverá sempre um forte vínculo entre a situação desses dois diferentes sujeitos de direitos e obrigações, sobretudo em razão da incapacidade civil e econômica do próprio menor, o que não significa dizer, todavia, que se deva automaticamente examinar o direito à gratuidade a que poderia fazer jus o menor à luz da situação financeira de seus pais. 5- A interpretação que melhor equaliza a tensão entre a natureza personalíssima do direito à gratuidade e a notória incapacidade econômica do menor consiste em aplicar, inicialmente, a regra do art. 99, § 3º, do novo CPC, deferindo-se o benefício ao menor em razão da presunção de sua insuficiência de recursos, ressalvada a possibilidade de o réu demonstrar, com base no art. 99, § 2º, do novo CPC, a posteriori, a ausência dos pressupostos legais que justificam a gratuidade, o que privilegia, a um só tempo, os princípios da inafastabilidade da jurisdição e do contraditório. 6- É igualmente imprescindível que se considere a natureza do direito material que é objeto da ação em que se pleiteia a gratuidade da justiça e, nesse contexto, não há dúvida de que não pode existir restrição injustificada ao exercício do direito de ação em que se busque o adimplemento de obrigação de natureza alimentar. 7- O fato de o representante legal das partes possuir atividade remunerada e o elevado valor da obrigação alimentar que é objeto da execução não podem, por si só, servir de empeço à concessão da gratuidade de justiça aos menores credores dos alimentos. 8- Recurso especial conhecido e provido. ( REsp 1.807.216/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 04/02/20, DJe 06/02/20 - sem grifo no original) No caso, a presunção relativa de veracidade da declaração de hipossuficiência da parte não foi desconstituída por outros elementos a não ser pelo argumento de que o genitor da parte seria empregado da SABESP e receberia vencimentos mensais na orgem de R$ 11.567,28 (onze mil, quinhentos e sessenta e sete reais e vinte e oito centavos), o que não se mostra razoável para o indeferimento do benefício, tornando imperiosa a reforma do acórdão a quo. Ante o exposto, reconsidero a decisão de fls. 118-124 (e-STJ) e conheço do agravo para dar provimento ao recurso especial a fim de deferir a gratuidade de justiça. Fiquem as partes cientificadas de que a insistência injustificada no prosseguimento do feito, caracterizada pela apresentação de recursos manifestamente inadmissíveis ou protelatórios contra esta decisão, ensejará a imposição, conforme o caso, das multas previstas nos arts. 1.021, § 4º, e 1.026, § 2º, do CPC/2015. Publique-se. Brasília, 07 de junho de 2022. MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator.3
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA CONDENATÓRIA DE ALIMENTOS. DIREITO AO BENEFÍCIO DA GRATUIDADE DA JUSTIÇA. NATUREZA INDIVIDUAL E PERSONALÍSSIMA. EXTENSÃO A TERCEIROS. IMPOSSIBILIDADE. EXAME DO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS AUTORIZADORES A PARTIR DA SITUAÇÃO ECONÔMICA DE PESSOA DISTINTA DA PARTE, COMO A REPRESENTANTE LEGAL DE MENOR. VÍNCULO forte ENTRE DIFERENTES SUJEITOS DE DIREITOS E OBRIGAÇÕES. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA DO MENOR. AUTOMÁTICO EXAME DO DIREITO À GRATUIDADE DE TITULARIDADE DO MENOR À LUZ DA SITUAÇÃO ECONÔMICA DOS PAIS. IMPOSSIBILIDADE. CRITÉRIOS. TENSÃO ENTRE a natureza personalíssima do direito E incapacidade econômica do menor. PREVALÊNCIA Da regra do art. 99, § 3º, do novo CPC. ACENTUADA PRESUNÇÃO DE INSUFICIÊNCIA DO MENOR. CONTROLE JURISDICIONAL POSTERIOR. possibilidade. preservação do acesso à justiça e contraditório. relevância do direito material. alimentos. imprescindibilidade da satisfação da dívida. risco grave e iminente aos credores menores. impossibilidade de restrição injustificada ao exercício do direito de ação. representante legal que exerce atividade profissional. valor da obrigação alimentar. irrelevância. 1- Recurso especial interposto em 18/05/18 e atribuído à Relatora em 13/02/19. 2- O propósito recursal é definir se, em ação judicial que versa sobre alimentos ajuizada por menor, é admissível que a concessão da gratuidade de justiça esteja condicionada a demonstração de insuficiência de recursos de seu representante legal. 3- O direito ao benefício da gratuidade de justiça possui natureza individual e personalíssima, não podendo ser automaticamente estendido a quem não preencha os pressupostos legais para a sua concessão e, por idêntica razão, não se pode exigir que os pressupostos legais que autorizam a concessão do benefício sejam preenchidos por pessoa distinta da parte, como o seu representante legal. 4- Em se tratando de menores representados pelos seus pais, haverá sempre um forte vínculo entre a situação desses dois diferentes sujeitos de direitos e obrigações, sobretudo em razão da incapacidade civil e econômica do próprio menor, o que não significa dizer, todavia, que se deva automaticamente examinar o direito à gratuidade a que poderia fazer jus o menor à luz da situação financeira de seus pais. 5- A interpretação que melhor equaliza a tensão entre a natureza personalíssima do direito à gratuidade e a notória incapacidade econômica do menor consiste em aplicar, inicialmente, a regra do art. 99, § 3º, do novo CPC, deferindo-se o benefício ao menor em razão da presunção de sua insuficiência de recursos, ressalvada a possibilidade de o réu demonstrar, com base no art. 99, § 2º, do novo CPC, a posteriori, a ausência dos pressupostos legais que justificam a gratuidade, o que privilegia, a um só tempo, os princípios da inafastabilidade da jurisdição e do contraditório. 6- É igualmente imprescindível que se considere a natureza do direito material que é objeto da ação em que se pleiteia a gratuidade da justiça e, nesse contexto, não há dúvida de que não pode existir restrição injustificada ao exercício do direito de ação em que se busque o adimplemento de obrigação de natureza alimentar. 7- O fato de o representante legal das partes possuir atividade remunerada e o elevado valor da obrigação alimentar que é objeto da execução não podem, por si só, servir de empeço à concessão da gratuidade de justiça aos menores credores dos alimentos. 8- Recurso especial conhecido e provido.4
O E. Tribunal Bandeirante também vem acolhendo tal orientação, conforme se verifica do julgado abaixo reproduzido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO REVISIONAL DE ALIMENTOS PROPOSTA PELO ALIMENTANDO – MENOR, TITULAR DO DIREITO, REPRESENTADO POR SUA GENITORA - GRATUIDADE PROCESSUAL REVOGADA – INSURGÊNCIA. Recurso em face de decisão que, acolhendo impugnação do requerido/alimentante, revogou o benefício da gratuidade processual – Insurgência recursal que se acolhe, uma vez que o beneficiário é a parte alimentanda, menor, que não se confunde com seu genitor – Requisitos legais preenchidos, pela manutenção da gratuidade processual. Recurso provido.5
Outros Tribunais6 da Federação também vem admitindo que o benefício seja concedido ao analisar apenas e tão somente a capacidade dos próprios menores.
Portanto, é inegável que o benefício deve ser analisado caso a caso mas, na grande maioria das vezes, os menores não possuem meios capazes de subsidiar os custos do processo de modo que, por serem pobres na acepção jurídica da palavra, devem ter o benefício concedido em seu favor.
Por tais considerações, é necessário frisar que embora a declaração de insuficiência financeira seja presumida como verdadeira, caso sejam necessárias maiores explicitações acerca da capacidade financeira, a análise deve recair apenas e tão somente sobre a capacidade dos infantes e não de seus genitores, sob pena de fazer tabula rasa a benesse e, consequentemente, violar o acesso à justiça do Jurisdicionado.