A incidência de correção monetária em todas as fases do cálculo do benefício previdenciário (SC, Evolução da RMI, Valores pagos em atraso e Ofícios Requisitórios), obedece ao princípio estabelecido no artigo 194, § único, IV da CF/881, da irredutibilidade do valor dos benefícios.
Como princípio próprio da Seguridade Social, a irredutibilidade do valor dos benefícios, determina que “os benefícios — prestações pecuniárias — não podem ter o valor inicial reduzido. Ao longo de sua existência, o benefício deve suprir os mínimos necessários à sobrevivência com dignidade, e, para tanto, não pode sofrer redução no seu valor mensal2".
Significa dizer que o benefício concedido pela Previdência Social, Previdenciário ou Assistencial, não sofrerá redução em seu valor nominal reduzido.
No mesmo sentido os §§ 3º e 4º do artigo 201 da CF, reafirmando o princípio da irredutibilidade, garantem a correção monetária de todos os salários de contribuição considerados para o cálculo do benefício, bem como o reajustamento dos benefícios em manutenção, para preservar-lhes o valor real, conforme critérios estabelecidos em lei3.
Há, ainda, previsão da incidência de correção monetária sobre os valores pagos em atraso (art. 1º-F da Lei 9.494/97), inclusive dos Ofícios Requisitórios (§ 12 do art. 100 da CF). Em todas as hipóteses, a incidência de correção monetária é medida que se impõe como forma de proteção contra a corrosão da moeda, a fim de evitar a perda do poder de compra, e não significa acréscimo patrimonial4.
Ao longo do tempo, e diante tantas alterações, a legislação tratou de prever a incidência, bem como a alteração, de diversos índices de correção monetária.
Ponto relevante para estes autos cinge-se na previsão contida na Lei 10.741/2003, que, em seu artigo 31, determinou que os valores pagos em atraso pela autarquia devem ser atualizados pelo mesmo índice utilizado para os reajustamentos dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. Portanto, conforme disposto no inciso II, do artigo 41, e no artigo 41-A, ambos da lei 8.213/91, o índice de correção monetária aplicado ao valor devido e não pago na data correta, será o Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC.
Tal disposição prevaleceu até o advento da lei 11.960/09, que, alterando a redação do artigo 1º-F da lei 9.494/97 determinou que “nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança”, índice este representado pela Taxa Referencial (TR), conforme disposto no inciso I do artigo 12 da lei 8.177/1991. (grifado)
Este índice, previsto pela lei 11.960/09, incide na fase de liquidação de sentença, onde o valor decorrente da condenação imposta à Fazenda Pública é apurado, e foi afastado pelo STF, quando, ao julgar a ADIn 4357, declarou inconstitucional a expressão “índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança”, constante do § 12 do artigo 100 da CF, declarando inconstitucional, ainda, por arrastamento (ratificado posteriormente no julgamento do Tema 810), parte do artigo 1º-F da lei 9.494/97, com a redação dada pelo art. 5º da lei 11.960, prevalecendo o índice anteriormente aplicado.
Além da correção monetária aplicada sobre o débito da Fazendo Pública, haverá, como compensação da mora, incidência de juros, nos mesmos percentuais aplicados à Caderneta de Poupança5 (art. 1º-F da Lei n. 9.494/1997) que incidem a partir da citação válida, nos termos da Súmula 204 do STJ6.
Esta sistemática prevaleceu até a promulgação da EC 113/21, que, alterando os índices de correção monetária e juros, determinou que (art. 3º) “nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, de remuneração do capital e de compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência, uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente”.
A partir da EC 113/21, portanto, os índices de correção monetária e juros (dupla aplicação) foram substituídos pelo Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), índice único.
Entretanto, a nova sistemática (Selic como correção monetária e juros) afronta ao princípio constitucional da irredutibilidade do valor da prestação previdenciária (art. 194, § único, IV e os §§ 3º e 4º do artigo 201, da CF/88), pois não é idôneo ao fim a que se destina.
Nas palavras do E. Ministro Aposentado, Ayres Brito, em voto proferido na ADIn 4357, a correção monetária “tem o pagamento em dinheiro como fato-condição de sua incidência e, como objeto, a agravação quantitativa desse mesmo pagamento. Agravação, porém, que não corresponde a uma sobrepaga, no sentido de constituir obrigação nova que se adiciona à primeira, com o fito de favorecer uma das partes da relação jurídica e desfavorecer a outra. Não é isso. Ao menos no plano dos fins a que visa a Constituição, na matéria, ninguém enriquece e ninguém empobrece por efeito de correção monetária, porque a dívida que tem o seu valor nominal atualizado ainda é a mesma dívida. Sendo assim, impõe-se a compreensão de que, com a correção monetária, a Constituição manda que as coisas mudem..., para que nada mude; quero dizer: o objetivo constitucional é mudar o valor nominal de uma dada obrigação de pagamento em dinheiro, para que essa mesma obrigação de pagamento em dinheiro não mude quanto ao seu valor real”.
Destacou ainda que “a correção monetária é instrumento de preservação do valor real de um determinado bem, constitucionalmente protegido e redutível a pecúnia. Valor real a preservar que é sinônimo de poder de compra ou “poder aquisitivo”, tal como se vê na redação do inciso IV do art. 7º da C.F., atinente ao instituto do salário mínimo. E se se coloca assim na aplainada tela da Constituição a imagem de um poder aquisitivo a resguardar, é porque a expressão financeira do bem juridicamente protegido passa a experimentar, com o tempo, uma deterioração ou perda de substância, por efeito, obviamente, do fato econômico genérico a que se dá o nome de “inflação”. Daí porque deixar de assegurar a continuidade desse valor real é, no fim das contas, desequilibrar a equação econômico-financeira entre devedor e credor de uma dada obrigação de pagamento, em desfavor do último”.
Portanto, se há desvalorização da moeda (por incidência da inflação), cabe à correção monetária, como princípio, recompô-la, restaurando o valor real da prestação previdenciária.
Conforme destacado (infra), a determinação constitucional (art. 3º, da EC 113/21), ao impor a Selic como correção monetária e juros, não será capaz de cumprir seu papel (manutenção do poder de compra), ao contrário, permitirá a redução do valor nominal da prestação.
A fim de definir se a Selic é capaz de evitar a corrosão da moeda, basta compará-la ao percentual da inflação do período. Utilizaremos como exemplo a competência abril/2022, onde a inflação medida pelo IBGE7 corresponde a 1,06%.
Para que haja recomposição do poder de compra, evitando a corrosão da moeda, a Selic na mesma competência “deveria” corresponder a, no mínimo, 1,06%, mas, ao contrário disso, corresponde a 0,83%8. Claro está que, na competência abril/22, houve redução nominal, no valor da prestação, no importe de 0,26%.
Ademais, a Selic, por corresponder a 0,83% na competência mencionada, inferior à inflação de 1,06% no mesmo período, além de não manter o valor real da prestação (correção monetária), beneficiará a autarquia, pois não sofrerá penalização (juros de mora) pelo atraso no pagamento da prestação.
Com a devida vênia, a EC 113/21, pela disposição contida no artigo 3º, fere o princípio constitucional previsto no artigo 194, § único, IV, afronta os §§ 3º e 4º, do artigo 201, ambos da CF da CF/88, e ainda premia a autarquia previdenciária, pois, quanto mais demorar para pagar, menos pagará.
Correção monetária deve ser aplicada sempre, integralmente, pois, nas palavras E. Ministro Aposentado, Ayres Brito, em voto proferido na ADI 4357, se caracteriza, operacionalmente, na aptidão de “manter um equilíbrio econômico-financeiro entre sujeitos jurídicos. E falar de equilíbrio econômico-financeiro entre partes jurídicas é, simplesmente, manter as respectivas pretensões ou os respectivos interesses no estado em que primitivamente se encontravam. Pois não se trata de favorecer ou beneficiar ninguém. O de que se cuida é impedir que a perda do poder aquisitivo da moeda redunde no empobrecimento do credor e no correlato enriquecimento do devedor de uma dada obrigação de pagamento em dinheiro. Pelo que já se pode compreender melhor que a agravação no “quantum” devido pelo sujeito passivo da relação jurídica não é propriamente qualitativa, mas tão-somente quantitativa. A finalidade da correção monetária, enquanto instituto de Direito Constitucional, não é deixar mais rico o beneficiário, nem mais pobre o sujeito passivo de uma dada obrigação de pagamento. É deixá-los tal como qualitativamente se encontravam, no momento em que se formou a relação obrigacional. Daí me parecer correto ajuizar que a correção monetária constitui verdadeiro direito subjetivo do credor, seja ele público, ou, então, privado. Não, porém, uma nova categoria de direito subjetivo, superposta àquele de receber uma prestação obrigacional em dinheiro. O direito mesmo à percepção da originária paga é que só existe em plenitude, se monetariamente corrigido. Donde a correção monetária constituir-se em elemento do direito subjetivo à percepção de uma determinada paga (integral) em dinheiro. Não há dois direitos, portanto, mas um único direito de receber, corrigidamente, um valor em dinheiro. Pois que, sem a correção, o titular do direito só o recebe mutilada ou parcialmente. Enquanto o sujeito passivo da obrigação, correlatamente, dessa obrigação apenas se desincumbe de modo reduzido”.
Destacou ainda que, “se há um direito subjetivo à correção monetária de determinado crédito, direito que, como visto, não difere do crédito originário, fica evidente que o reajuste há de corresponder ao preciso índice de desvalorização da moeda, ao cabo de um certo período; quer dizer, conhecido que seja o índice de depreciação do valor real da moeda – a cada período legalmente estabelecido para a respectiva medição – , é ele que por inteiro vai recair sobre a expressão financeira do instituto jurídico protegido com a cláusula de permanente atualização monetária. É o mesmo que dizer: medido que seja o tamanho da inflação num dado período, tem-se, naturalmente, o percentual de defasagem ou de efetiva perda de poder aquisitivo da moeda que vai servir de critério matemático para a necessária preservação do valor real do bem ou direito constitucionalmente protegido”. (grifado no original)
A EC 113/21, ao prever a incidência da Selic, que não reflete a perda de poder aquisitivo da moeda, como índice de correção monetária e juros, nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, afronta princípios constitucionais próprios da Seguridade Social.
Conclui-se, portanto, que o artigo 3º da EC 113/21, “acabou por artificializar o conceito de atualização monetária. Conceito que está ontologicamente associado à manutenção do valor real da moeda. Valor real que só se mantém pela aplicação de índice que reflita a desvalorização dessa moeda em determinado período”. (Ministro Aposentado, Ayres Brito, em voto proferido na ADIn 4357)
Se a correção monetária dos débitos da Fazenda Pública “deixa de corresponder à perda do poder aquisitivo da moeda, o direito reconhecido por sentença judicial transitada em julgado será satisfeito de forma excessiva ou, de revés, deficitária. Em ambas as hipóteses, com enriquecimento ilícito de uma das partes da relação jurídica. E não é difícil constatar que a parte prejudicada, no caso, será, quase que invariavelmente, o credor da Fazenda Pública”. (Ministro Aposentado, Ayres Brito, em voto proferido na ADIn 4357)
Deve-se reconhecer, portanto, a inconstitucionalidade da norma atacada, pois, a fixação da Selic como índice de correção e juros dos débitos da Fazendo Pública, “implica indevida e intolerável constrição à eficácia da atividade jurisdicional. Uma afronta à garantia da coisa julgada e, por reverberação, ao protoprincípio da separação dos Poderes” (Ministro Aposentado, Ayres Brito, em voto proferido na ADIn 4357), além de afrontar o princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios (art. 194, § único, IV, da CF da CF/88) e os §§ 3º e 4º, do artigo 201, da CF da CF/88.
________________
1 GEROMES, Sergio. Cálculo de Liquidação no Cumprimento de Sentença Previdenciária. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021. p. 188.
2 SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. n.p.
3 GEROMES, Sergio. Cálculo de Liquidação no Cumprimento de Sentença Previdenciária. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021. p. 188.
4 GEROMES, Sergio. Cálculo de Liquidação no Cumprimento de Sentença Previdenciária. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021. p. 188.
5 0.5% ao mês , caso a taxa selic ao ano seja superior à 8,5%, ou 70% da taxa Selic ao ano, mensalizada, nos demais casos.
6 GEROMES, Sergio. Cálculo de Liquidação no Cumprimento de Sentença Previdenciária. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021. p. 204.
7 Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao.php. Acesso em 6 de jun. 2022.
8 Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/orientacao-tributaria/pagamentos-e-parcelamentos/taxa-de-juros-selic. Acesso em 6 de jun. 2022.