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A consolidação do entendimento do STF sobre a penhorabilidade do bem de família do fiador

O contrato de fiança deve ser levado tão a sério quanto o de locação, sabendo o garantidor, quando da assinatura, que seu patrimônio está sujeito à constrição em caso de inadimplemento do locatário, independentemente da destinação da locação (residencial ou comercial).

7/6/2022

Nos últimos dias foi publicado o acórdão do Recurso Extraordinário 1307334/SP, afetado com repercussão geral, que contou com a relatoria do ministro Alexandre de Moraes.

Com isso, é possível esmiuçar o debate que se deu em plenário, e que culminou no tema 1127, estruturado com a seguinte redação: “É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial”.

Na origem, tratou-se de agravo de instrumento interposto em face de decisão que rejeitou impugnação à penhora do único imóvel pertencente a fiador de contrato de locação comercial, determinada na fase de cumprimento de sentença de demanda de cobrança de alugueres.

O principal argumento do fiador consistia na alegada impossibilidade de penhorar seu único imóvel, por ser ele garantidor de locação de natureza comercial. Segundo ele, o tema 295 do STF seria aplicado apenas às locações residenciais, dado que o STF nos autos do RE 6057091, de relatoria do min. Dias Toffoli, em que figurou como relatora para acórdão a min. Rosa Weber, afastou a penhorabilidade do imóvel de fiador de contrato de locação comercial, ao entendimento de que a tese firmada no tema 295 da repercussão geral aplicar-se-ia apenas aos contratos de locação residencial.

O TJ/SP negou provimento ao recurso do fiador, aduzindo que a decisão prolatada pelo STF e de relatoria da min. Rosa Weber seria isolada e sem caráter vinculante, “(...) devendo a matéria ser analisada de acordo com o art. 3º, VII, da lei 8.009/90, que não faz qualquer distinção entre imóveis residenciais e comerciais para fins de exceção à impenhorabilidade”.

Após a afetação do recurso com a repercussão geral, a Procuradoria Geral da República, em parecer, sustentou o provimento do recurso extraordinário, compreendendo que a penhora do bem do fiador apenas deveria persistir quando há fiança onerosa2, “(...) pois nesse caso o fiador é remunerado em razão dos riscos do negócio assumido”.

Antes de explicitar os votos dos julgadores, cabe rememorar que o direito à moradia foi incluído no rol dos direitos sociais pela Emenda Constitucional 26/2000. Após isso, o STF foi instado a se manifestar sobre a constitucionalidade do art. 3º, VII, da lei 8.009/90, dispositivo que excepciona a proteção ao bem de família na hipótese de “obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”. No julgamento do Recurso Extraordinário 407.6883, o STF assentou a compatibilidade do art. 3º, VII, da lei 8.009/90, na redação da lei 8.245/91, com o art. 6º da Constituição Federal.

Posteriormente, no julgamento do Recurso Extraordinário 6123604, submetido à sistemática da repercussão geral, de relatoria da Min. Ellen Gracie, fixou-se o tema 295, que dita: “É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da lei 8.009/90 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000”.

Um ponto de destaque do julgamento do tema 1127 foi o registro, no acórdão, de que para a fixação do tema 295 não foi feita a distinção entre locação residencial e comercial, não obstante o leading case tomar por base um contrato de locação residencial. Segundo o min. Gilmar Mendes, que votou pelo desprovimento do recurso, “a natureza residencial da locação não figurou como condição necessária para a compatibilidade da penhora de bem de família do fiador com o direito à moradia”.

Essa ponderação é relevante, porque, apesar da aparente fixação do entendimento no sentido de licitude e possibilidade de penhora do bem de família do fiador, a partir do RE 605.7095, a 1ª turma do STF, acompanhando, por maioria, voto divergente da min. Rosa Weber, decidiu que o bem de família de fiador em contrato de locação comercial não se submeteria ao tema 295. Dessa forma, segundo esta concepção, o bem de família do fiador que garante contrato de locação comercial seria impenhorável.

A partir desse primeiro julgado, o STF começou a prolatar decisões nos dois sentidos, ora sendo feita a distinção entre locação comercial e residencial, ora aplicando pura e simplesmente o tema 295.

Em razão dessa nova feição da discussão, houve a afetação em repercussão geral do RE que aqui se analisa. Em seu voto, o min. Alexandre de Moraes pontuou que a legislação não diferenciou, para o fim de excepcionar a impenhorabilidade do bem de família, a locação residencial da comercial. Ademais, quando o legislador quis distinguir as modalidades de locação, o fez expressamente, como se observa da sistemática da lei 8.245/91.

Concluiu o relator que “eventual declaração de inconstitucionalidade da penhora de bem de família de fiador em locações comerciais implica restrição à livre iniciativa e ao direito de propriedade do próprio fiador do contrato de locação”. Para tanto, levou em consideração que a fiança é a garantia mais utilizada no mercado locatício, por ser a menos custosa.

O min. Roberto Barroso acompanhou o voto do relator, ponderando que o STF, no julgamento do tema 295, compreendeu que a impenhorabilidade do bem de família do fiador oneraria demasiadamente os locatários em locações residenciais, porque “eles não poderiam obter fiança de um particular e teriam que obter uma fiança bancária, ou seguro fiança, ou fazer diferentes depósitos”.

O ministro Nunes Marques acompanhou o relator, acrescentando o argumento de que se no tema 295 foi reconhecida a possibilidade de penhora na locação residencial, com mais razão deveria o mesmo ocorrer nas locações comerciais.

A divergência foi aberta pelo ministro Edson Fachin, que votou pelo provimento do Recurso Extraordinário. A min. Rosa Weber acompanhou a divergência, compreendendo que a penhora apenas deveria ser aceita nos casos de locação residencial, dado que, nestes, estar-se-ia ponderando duas moradias, enquanto na locação comercial, a garantia visa a assegurar a livre iniciativa em detrimento da moradia do fiador. Dessa forma, segundo a min. Weber, a penhorabilidade, na locação residencial, promoveria o próprio direito à moradia.

O min. Ricardo Lewandowski também acompanhou a divergência, sustentando que não deve prevalecer o direito ao crédito do locador em detrimento do direito à moradia do fiador, dado que o ordenamento oferece outras modalidades de garantias que poderiam ser contratadas. Exarou que seria ilógico penhorar “o único imóvel do fiador de locação comercial, desconsiderando-se totalmente o direito à moradia, quando a legislação infraconstitucional (parágrafo único do art. 1º da lei n. 8.009/90) impede a penhora, até mesmo, dos bens que compõem a residência do locatário (devedor principal)”.

Já a min. Cármen Lúcia diferenciou o entendimento que vinha sendo adotado pelas 1ª e 2ª turmas do STF. Enquanto a 2ª turma recentemente afastava a aplicação do tema 2956 às locações comerciais, a 1ª turma não fazia tal distinção, mantendo a penhorabilidade. Considerou o posicionamento da Procuradoria Geral da República, votando no sentido de dar provimento ao recurso, com a seguinte proposta de tese: “É impenhorável o bem de família de fiador em contrato de locação comercial, em virtude da incompatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da lei 8.009/90 com o direito à moradia deste, salvo no caso de fiança onerosa”.

Contudo, vencida a divergência, o tema 1127 resultou, por ora, na seguinte tese: “É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial”. Houve a oposição de embargos de declaração no dia 2/6/22, que aguardam julgamento.

Trazidos tais elementos, a decisão pareceu acertada. Além de coadunar com o entendimento que já vinha sendo adotado pelo STF, foi dada primazia à obrigação veiculada à fiança, que é justamente a de garantir uma dívida alheia. O contrato de fiança deve ser levado tão a sério quanto o de locação, sabendo o garantidor, quando da assinatura, que seu patrimônio está sujeito à constrição em caso de inadimplemento do locatário, independentemente da destinação da locação (residencial ou comercial).

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1 STF, RE 605709, Relator: DIAS TOFFOLI, Relatora p/ Acórdão: ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 12/06/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-032, divulgado em 15-02-2019, publicado em 18-02-2019.

2 “Tem sido admitida a fiança onerosa, que refoge ao sentido tradicional da fiança, quando o devedor contrata a fiança mediante pagamento de determinado valor e durante tempo certo, principalmente com instituição financeira, também denominada carta de fiança” (LÔBO, Paulo. Direito civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 418).

3 STF, RE 407688, Relator(a): CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/02/2006, DJ 06-10-2006 PP-00033 EMENT VOL-02250-05 PP-00880 RTJ VOL-00200-01 PP-00166 RJSP v. 55, n. 360, 2007, p. 129-147.

4 CONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. RATIFICAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA FIRMADA POR ESTA SUPREMA CORTE. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

(RE 612360 RG, Relator(a): ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2010, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-164 DIVULG 02-09-2010 PUBLIC 03-09-2010 EMENT VOL-02413-05 PP-00981 LEXSTF v. 32, n. 381, 2010, p. 294-300).

5 EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO MANEJADO CONTRA ACÓRDÃO PUBLICADO EM 31.8.2005. INSUBMISSÃO À SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL. PREMISSAS DISTINTAS DAS VERIFICADAS EM PRECEDENTES DESTA SUPREMA CORTE, QUE ABORDARAM GARANTIA FIDEJUSSÓRIA EM LOCAÇÃO RESIDENCIAL. CASO CONCRETO QUE ENVOLVE DÍVIDA DECORRENTE DE CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. INCOMPATIBILIDADE COM O DIREITO À MORADIA E COM O PRINCÍPIO DA ISONOMIA (...) (RE 605709, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Relator(a) p/ Acórdão: ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 12/06/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-032  DIVULG 15-02-2019  PUBLIC 18-02-2019).

6 AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR NO CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA AOS ARTS. 1°, III, 6° E 226, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – É impenhorável o bem de família do fiador em contrato de locação de imóvel comercial, dada a necessidade de observância ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da CF), ao direito fundamental à moradia (art. 6° da CF) e à preservação da unidade familiar (art. 226 da CF). II - A orientação firmada no Tema 295 da Repercussão Geral (RE 612.360-RG/SP) não se aplica aos casos em que se discute a penhorabilidade de bem de família do fiador em contrato de locação comercial. III – Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 1304844 AgR, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 22/03/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-084  DIVULG 03-05-2021  PUBLIC 04-05-2021)

Marina Amari
Advogada no escritório Assis Gonçalves, Kloss Neto e Advogados Associados. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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