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O conflito entre normas da LGPD e o Marco Civil da internet: uma breve comparação entre seus dispositivos normativos

O presente trabalho possui o objetivo de analisar o conflito existente entre alguns dispositivos da LGPD e o Marco Civil da Internet.

7/6/2022

1 – INTRODUÇÃO

O Marco Civil da Internet (lei 12.965/14) foi a primeira legislação a regular o uso da internet no Brasil, elegendo, em seu artigo 3º, III, a proteção de dados como um dos princípios fundamentais do uso da internet no Brasil.

Contudo, faltava maior especificidade quanto a proteção dos dados pessoais, razão pela qual foi publicada, em 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, lei 13.709.

Embora possuam focos de proteção distintos, alguns dispositivos das citadas leis conflitam entre si, abrindo margem para dúvidas sobre qual lei aplicar em um caso concreto.

Assim, a solução proposta para a resolução da citada antinomia é a utilização de critérios consagrados pela doutrina jurídica, a saber: critério cronológico; critério hierárquico; e critério da especialidade.

Por fim, será possível chegar à conclusão de que, em um determinado caso concreto, havendo a violação a dados pessoais, deverá prevalecer a determinação legal contida na LGPD, entretanto, o MCI deve ser aplicado, quando a questão estiver adstrita à guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet, já que a LGPD não regula tal situação.

2 – BREVE HISTÓRICO

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (lei 13.709/18) representa um marco histórico na regulamentação sobre o tratamento de dados pessoais no Brasil, tanto em meios físicos quanto em plataformas digitais.

Anteriormente a publicação mencionada da lei, a disciplina era regida por disposições normativas esparsas, de forma que não existia, no país, uma normatização adequada à tutela de dados pessoais.

Como exemplo desses normativos, pode-se citar as disposições constitucionais referentes à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, dispostas no artigo 5º, X e XII1 e as leis ordinárias de caráter público, quais sejam, a Lei de Arquivos Públicos (lei 8.159/91), a Lei de Habeas Data (lei 9.507/97) e a Lei de Acesso à informação (lei 12.572/11).

No âmbito privado, haviam os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor (Capítulo V, Seção VI – Dos Bancos de Dados e Cadastros dos Consumidores2), do Código Civil (arts. 123 e 214) e a Lei do Cadastro Positivo (lei 12.414/11)5.

Vale realçar que no ano de 2.014 foi publicada a primeira lei regulamentadora das atividades realizadas no âmbito virtual, conhecida como Marco Civil da Internet – MCI (lei 12.965/14), dispondo sobre os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil.

Embora com foco na normatização do uso da internet, referida lei elege, em seu artigo 3º, III6, a proteção de dados como um dos princípios fundamentais do uso da internet no Brasil. 

Faltava, no entanto, maior especificidade e proteção aos dados pessoais, ou seja, às informações pessoais que determinam a identificação, ou possibilidade de identificação, de uma pessoa, como seu nome, data de nascimento, documentos pessoais.

Assim, em agosto de 2018, foi publicada a Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil, visando a proteção dos dados pessoais no meio digital e físico.

3 – A PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Vale esclarecer que a expressão “tratamento de dados pessoais” disposta na Lei Geral de Proteção de Dados, compreende qualquer operação realizada com dados pessoais, englobando as etapas de acesso, coleta, retenção, processamento, armazenamento, avaliação, transferência e eliminação.

O objetivo da lei é garantir a tutela de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, a saber, a liberdade, a privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade humana, conforme estabelece seu artigo inaugural7, abaixo transcrito:

“Art. 1º Esta lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”.

Nesse contexto, destaca-se que a disposição normativa limitou sua proteção aos dados pessoais da pessoa natural, não estendendo a tutela às pessoas jurídicas. Assim, na visão de Cots e Oliveira, a legislação em comento possui notável caráter humanista, uma vez que se projetou à proteção das pessoas humanas, seres únicos e completos, totalmente suscetíveis às condições adequadas do ambiente para que possam se desenvolver da melhor maneira possível8.

Outro ponto importante a se mencionar é a expressa disposição de que a lei deverá ser aplicada contra o tratamento ilegal de dados pessoais praticado tanto por pessoa natural quanto por pessoa jurídica, seja esta de direito público ou privado. Em suma, a LGPD visa tutelar direitos fundamentais de modo transversal, aplicando-se às relações jurídicas tanto de direito público quanto de direito privado9.

Vale, ainda, ressaltar que a EC 15/22, incluiu a proteção de dados pessoais no rol de direitos e garantias fundamentais, passando a tutelar de forma autônoma o instituto em estudo. Isso quer dizer que a inviolabilidade ou a defesa do tratamento ilícito de dados pessoais da pessoa natural independe de outras violações. Trata-se, portanto, de garantia à proteção de dados pessoais em âmbito constitucional, como liberdade positiva dos indivíduos terem o direito de controlar seus respectivos dados10.

Assim, a LGPD apresenta previsões relacionados ao tratamento de dados pessoais nas esferas privada e pública, dos direitos do titular, da segurança e do sigilo de dados, bem como dos procedimentos de fiscalização e das sanções aplicáveis, sendo essa uma garantia fundamental da pessoa natural11.

__________

1 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; (...)”.

2 “Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.

§ 1° Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos.

§ 2° A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.

§ 3° O consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus dados e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas.

§ 4° Os bancos de dados e cadastros relativos a consumidores, os serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidades de caráter público.

§ 5° Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidas, pelos respectivos Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aos fornecedores.

§ 6o Todas as informações de que trata o caput deste artigo devem ser disponibilizadas em formatos acessíveis, inclusive para a pessoa com deficiência, mediante solicitação do consumidor.

Art. 44. Os órgãos públicos de defesa do consumidor manterão cadastros atualizados de reclamações fundamentadas contra fornecedores de produtos e serviços, devendo divulgá-lo pública e anualmente. A divulgação indicará se a reclamação foi atendida ou não pelo fornecedor.

§ 1° É facultado o acesso às informações lá constantes para orientação e consulta por qualquer interessado.

§ 2° Aplicam-se a este artigo, no que couber, as mesmas regras enunciadas no artigo anterior e as do parágrafo único do art. 22 deste código”.

3 “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.

4 “Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.

5 CAMARINHA, Sylvia M.F.et al (2020). Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados. 1. ed. e-book baseada na 1.ed. impressa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. Disponível em https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/235810730/v1/page/RB-1.2. Acesso em 02/05/2022.

6 “Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:

(...)

III - proteção dos dados pessoais, na forma da lei; (...)”.

7 BASAN, Arthur Pinheiro. A lei geral de Proteção de dados pessoais e a tutela dos direitos fundamentais nas relações privadas. Revista jurídica eletrônica da Universidade Federal do Piauí, v. 8, n. 1, jan/jun 2021.

8 COTS, Ma'rcio e OLIVEIRA, Ricardo. Lei geral de protec¸a~o de dados pessoais comentada. Thomsons Reuteres. Brasil: Sa~o Paulo, 2018. p. 54

9 BASAN, op. cit.

10 MALDONADO, Viviane Nóbrega; BLUM, Renato Opice. LGPD: Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais Comentada. 4. ed. e-book baseada na 4. ed. impressa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. Disponível em: https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/codigos/188730949/v4/page/RL-1.2. Acesso em 02/05/2022.

11 CAMARINHA. op. cit.

Mayara Bueno Barretti Rocha
Advogada no escritório Barreto e Dolabella Advogados. Mestranda em Direito Profissional Privado, Tecnologia e Inovação pelo IDP. Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo IDP. Pós-graduada em Direito Empresarial pela UNINOVE.

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