Encontra-se em tramitação na Câmara Legislativa do Distrito Federal, o projeto de lei 2.749/22, de autoria do sr. governador do Distrito Federal, o qual prevê o pagamento, com recursos públicos, de valores previstos na tabela da OAB/DF para que advogados iniciantes atuem como advogados dativos, ou seja, para fazerem o que a Defensoria Pública não possui condições de fazer, por falta de defensores e de orçamento.
Os favoráveis ao projeto de lei argumentam que, como a Defensoria Pública não consegue atender a todas as pessoas que necessitam, por falta de recursos, ao invés de aumentar o orçamento da instituição, deve-se distribuir recursos para advogados iniciantes atuarem como advogados dativos.
A expectativa inicial é de que sejam destinados seis milhões de reais do orçamento do Distrito Federal para financiar os advogados dativos.
Como se verá a seguir, existem razões jurídicas, econômicas e sociais que tornam o projeto de lei desfavorável aos cidadãos, aos contribuintes e às pessoas em situação de vulnerabilidade do Distrito Federal.
De partida, deve-se perceber que o projeto de lei é inconstitucional. A EC 80/14 – conhecida como “PEC das Comarcas” ou “PEC das Defensorias” – inseriu uma norma impositiva no artigo 98 do ADCT - ato das disposições constitucionais transitórias, determinando que, no prazo de 08 (oito) anos, A Defensoria Pública seja regularmente aparelhada de forma proporcional à efetiva demanda.
A Constituição Federal diz que o número de defensores públicos na unidade jurisdicional deverá ser proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população, e que, no prazo de oito anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais.
O prazo previsto nessa norma vence nos próximos dias, dia 05/06/22. O argumento utilizado pelos governos para justificar o descumprimento da obrigação sempre foi o que não havia orçamento suficiente para viabilizar o seu cumprimento.
No entanto, o projeto de lei, ao invés de destinar mais seis milhões de reais para a Defensoria Pública do DF ampliar os seus serviços para a população necessitada, pretende destinar esse recurso para advogados dativos.
O financiamento da advocacia dativa compromete recursos orçamentários que poderiam ser utilizados na expansão e consolidação da Defensoria Pública, para que a Constituição Brasileira seja, finalmente, cumprida nesse ponto. Isso porque os recursos previstos para serem repassados à advocacia dativa poderiam gerar as condições necessárias para a Defensoria Pública admitir novos defensores em seus quadros.
Fortalecer a Defensoria Pública do DF é uma medida extremamente necessária porque aproximadamente 77% dos moradores(as) do DF (cerca de 2,3 milhões de pessoas) são potenciais usuários dos serviços da Defensoria Pública do DF. No entanto, existem atualmente 260 defensores públicos no DF. O número é bem menor do que o de juízes e desembargadores, que estão em cerca de 380.
Apesar dessa disparidade, a Defensoria Pública do DF se faz presente em aproximadamente 94% das unidades jurisdicionais (varas, juizados e órgãos de tribunais) do DF e realizou, em 2021, mais de 600 mil atendimentos jurídicos.
É importante ressaltar que os defensores e defensoras integram uma carreira específica dedicada exclusivamente ao atendimento da população que necessita dos serviços de assistência, sujeitam-se a regime jurídico próprio e exclusivo, não podendo exercer atividades próprias da advocacia privada. Os serviços da Defensoria Pública são impessoais e institucionais. Os usuários dos serviços da Defensoria podem ter a segurança de que sempre haverá um defensor concursado responsável pelo seu processo e que não há risco de “abandono da causa” pela instituição.
Além disso, os defensores são submetidos a parâmetros éticos rigorosos e são fiscalizados cuidadosamente pela Corregedoria da instituição e por uma ouvidoria externa, chefiada por integrante da sociedade civil, que deve zelar pela qualidade dos serviços oferecidos, evitar que a instituição se encastele e assegurar que ela se mantenha em profunda conexão com a sociedade. Afinal, a Defensoria Pública é da sociedade como um todo, e não apenas dos membros e servidores que a integram. A presença de ouvidor externo estimula a transparência, a oxigenação e a respeitabilidade da instituição.
Por isso, o cidadão sabe como e onde buscar orientação, com quem contar na luta pelos seus direitos e a quem reclamar, no caso de falha do serviço. Tudo isso torna a Defensoria Pública a instituição mais conhecida, mais confiável e mais bem avaliada do sistema de Justiça nacional, de acordo com o estudo da imagem do Judiciário Brasileiro, realizado pela Fundação Getúlio Vargas, a pedido do Ministério Público.
Os advogados dativos, por outro lado, são escolhidos sem a previsão de critérios objetivos e transparentes, pois não se sujeitam à regra do concurso público. De acordo com o projeto de lei em questão, o seu recrutamento se daria mediante indicação do juiz da causa, de acordo com uma lista de interessados.
Os poderes e responsabilidades dos defensores e dos advogados dativos são bem diferentes. Enquanto advogados dativos limitam a sua atuação aos processos em que atuam, os defensores públicos possuem muitas outras funções importantes, descritas na lei complementar 80/94, tais como: (i) colaborar para a resolução extrajudicial das controvérsias, (ii) atuar na difusão e a conscientização dos direitos humanos, (iii) promover a defesa individual e coletiva dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado; (iv) atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes e (v) promover a preservação e a reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência.
A Defensoria Pública é regida por leis específicas e os defensores públicos não precisam estar inscritos nos quadros da OAB. O próprio STF, ao julgar a ADIn 6.870, em voto do ministro relator, Gilmar Mendes, enfatizou: "A atuação de um advogado (particular) e a de um defensor público são diferentes, evidentemente. O primeiro, em ministério privado, tem por incumbência primordial a defesa dos interesses pessoais do cliente. O segundo, detentor de cargo público, tem por escopo principal assegurar a garantia do amplo acesso à justiça, não sendo legitimado por qualquer interesse privado".
Por sua vez, o ministro Edson Fachin, em voto-vista, asseverou que a Constituição Brasileira,"ao estremar a advocacia e a Defensoria Pública em Seções distintas, por si só, já esclareceu a natureza diversa das funções dos Defensores Públicos em relação aos advogados, públicos ou privados. São, assim, Funções Essenciais à Justiça, em categorias separadas (embora complementares): o Ministério Público, a advocacia pública, a advocacia e Defensoria Pública. [...] Para além da topografia constitucional, entendo que as funções desempenhadas pelo defensor público e pelo advogado não se confundem, ainda que em determinadas situações se aproximem. O defensor público não se confunde com o advogado dativo, não é remunerado como este e tampouco está inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Ainda, sua atuação está sujeita aos ditames do art. 134 da Constituição Federal e à própria instituição que integra, não se pautando exclusivamente pelo interesse pessoal do assistido, como o faz o advogado. Ainda mais relevante que as diferenças exemplificativas citadas acima, entendo que a missão institucional da Defensoria Pública na promoção do amplo acesso à justiça e na redução das desigualdades, impede a aproximação com a advocacia".
Nesse mesmo sentido, o STF, em voto do ministro Gilmar Mendes, no julgamento da ADIn 4636, de que foi relator, afirmou que “não se pode limitar a Defensoria Pública, nos atuais moldes, a um mero conjunto de defensores dativos. Tal se consubstancia em visão ultrapassada, que ignora a interpretação sistemática a ser feita”.
Também merece registro o fato de que o STF, ao julgar a ADIn 4163, em voto do ministro relator, Cezar Peluso, pontuou: "É dever constitucional do Estado oferecer assistência jurídica gratuita aos que não disponham de meios para contratação de advogado, tendo sido a Defensoria Pública eleita, pela Carta Magna, como o único órgão estatal predestinado ao exercício ordinário dessa competência. Daí, qualquer política pública que desvie pessoas ou verbas para outra entidade, com o mesmo objetivo, em prejuízo da Defensoria, insulta a Constituição da República”.
É por isso que, nos raros Estados em que existe lei regulamentadora da advocacia dativa, essa legislação já foi reconhecida como inconstitucional pelo STF ou está sendo alvo de questionamentos junto aos tribunais e órgãos de controle.
Além de ser contrário à Constituição Brasileira, o projeto de lei também é ruim para os contribuintes. Isso porque o projeto de lei pretende autorizar o Poder Executivo a utilizar, em 2022, seis milhões de reais para a remuneração de advogados dativos. O valor a ser pago ao advogado dativo é, segundo o projeto de lei, baseado em cada ato praticado e tem como parâmetros o disposto no § 1º do art. 22, da lei federal 8.906/94, ou seja, o pagamento será feito segundo tabela organizada pelo conselho seccional da OAB.
Segundo essa tabela, a realização de uma única audiência custa, no mínimo, 342 reais. A condução de um processo judicial custa, em média, 8.550 reais. Como é fácil perceber, o valor de seis milhões de reais será facilmente atingido na atuação em uma quantidade muito reduzida de processos movimentados por advogados dativos.
Os contribuintes devem estar atentos porque, se o PL for aprovado, o Poder Público pode pagar para um advogado dativo fazer em um único processo o que paga por mês para um Defensor Público fazer em centenas de processos.
Ao longo do último ano, a Defensoria Pública do DF realizou: (i) 25.351 novas ações judiciais individuais, um aumento de 9% em relação a 2020; (ii) 2.028 audiências extrajudiciais para tentar acordos, 42% a mais do que em 2020; (iii) mais de 600 mil atendimentos: 549.788 atendimentos virtuais (por telefone, aplicativo de mensagens ou teleconferência) e 52.550 atendimentos presenciais, um aumento de
13% em relação a 2020; (iv) 681 manifestações em processos judiciais, 26% a mais do que em 2020. Mais de 2.700 manifestações processuais por dia útil; e (v) 44.224 audiências judiciais e 393 plenários do tribunal do júri, 57% a mais do que em 2020.
No último ano, 217 defensores foram responsáveis pela movimentação de processos. Há outros defensores que estão dedicados a atendimentos iniciais, atividades extrajudiciais, educação em direitos e atividades de gestão, que os advogados dativos não realizarão. Cada um desses 217 defensores conduziu, sozinho, em média, 538 processos judiciais, realizou 3.141 atos processuais e participou de 205 audiências judiciais.
Se as atividades de apenas um desses 217 defensores públicos fossem realizadas por um advogado dativo, e ele recebesse de acordo com a tabela da OAB, como autoriza o projeto de lei, o Poder Público pagaria, para cada advogado dativo, 4,6 milhões reais pelos processos conduzidos, acrescidos de 70 mil reais pelas audiências realizadas. Assim sendo, o que se verifica é que, caso implementado o projeto de lei, o que se gastaria para um advogado dativo fazer aquilo que, em média, faz um único defensor público é suficiente para contratar e remunerar cerca de dez defensores públicos.
Investir na contratação de defensores públicos é, portanto, uma medida mais eficaz para a população vulnerável e mais econômica para os cofres públicos. Por meio da Defensoria Pública, mais pessoas são atendidas, com mais qualidade e eficiência, por um valor final centenas de vezes menor do que aquele que seria dispendido com advogados dativos pagos para realizar cada ato processual.
Há, ainda, um outro aspecto a ser considerado na comparação de custoeficiência entre os modelos de prestação de assistência jurídica gratuita da advocacia dativa e da Defensoria Pública. O projeto de lei permite que os honorários advocatícios sucumbenciais – ou seja, aqueles que a parte vencida deve pagar à parte vencedora – sejam revertidos integralmente ao advogado dativo.
Já o modelo de prestação de serviços por intermédio da Defensoria Pública impõe, conforme previsão do art. 4º, inc. XXI, da Lei Complementar Federal nª 80/1994, acrescido pela lei complementar federal 132/09, que as verbas sucumbenciais decorrentes da atuação da Defensoria Pública devam ser destinadas “a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional de seus membros e servidores”. A lei complementar Distrital 744/07, ao regulamentar o Fundo de Aparelhamento da Defensoria Pública do DF, previu a destinação das verbas sucumbenciais para o aparelhamento das instalações da DPDF, a aquisição de bens e serviços e a qualificação profissional dos seus integrantes. Ao destinar as verbas sucumbenciais aos advogados e advogadas dativas, o Poder Público abriria mão de recursos que podem ser reinvestidos na aquisição de bens e serviços para Defensoria Pública.
Além disso, o projeto de lei é ruim para os usuários dos serviços de acesso à justiça porque não prevê critérios objetivos e transparentes para a seleção e organização da fila de nomeação dos advogados dativos – tais como o concurso público -, tampouco parâmetros específicos de fiscalização sobre a sua atividade. O Projeto de Lei autoriza o pagamento sem qualquer avaliação da qualidade dos serviços prestados, apenas mediante mera “certidão emitida por juiz competente”.
Fica claro que a política de subsídios à advocacia privada, como uma forma de substituição da necessidade de expansão da Defensoria Pública, é socialmente e economicamente contraproducente. O Projeto de Lei claramente se apresenta como alternativa ao aumento da estrutura e da capacidade de prestação de serviços pela Defensoria Pública para permitir o pleno atendimento da população necessitada.
Talvez por desconhecer que a Defensoria Pública do DF, com seus atuais 260 defensores e defensoras, se faz ausente em apenas 6% das unidades jurisdicionais do DF, a medida supõe que preencher essa lacuna com mais defensores represente um custo econômico inviável, mas isso não é verdade. Com mais seis milhões de reais em seu orçamento, para contratar mais de uma dezena de defensores, a instituição possuirá condições de atender 100% das unidades jurisdicionais, dispensando a contratação de advogados dativos.
Não temos dúvida, portanto, de que o projeto de lei é prejudicial aos interesses da população carente do Distrito Federal. Se há recursos orçamentários disponíveis para custear a assistência jurídica para as pessoas necessitadas, o investimento deveria ser feito na própria Defensoria Pública, de modo a aprimorar os seus serviços em prol do atendimento da população em situação de vulnerabilidade do Distrito Federal.
O STF, ao julgar a ADIn 2.903, em voto da relatoria do ministro Celso de Mello advertiu: "A Defensoria Pública, enquanto instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, qualifica-se como instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que são titulares as pessoas carentes e necessitadas. É por essa razão que a Defensoria Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente pelo poder público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas – carentes e desassistidas –, que sofrem inaceitável processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado. De nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam – além de desrespeitados pelo poder público ou transgredidos por particulares – também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública”.
A Associação das Defensoras e Defensores Públicos do DF confia na disposição do Governo do DF e da Câmara Legislativa do DF de aprofundar o debate sobre o tema, rever o projeto de lei apresentado e, com isso, preservar os interesses jurídicos, econômicos e sociais das pessoas e grupos vulneráveis, que seguramente não serão beneficiados com a medida na forma que atualmente encontra-se em debate. Não interessa à sociedade descumprir a EC 80/14. A prestação dos serviços de assistência jurídica gratuita aos necessitados deve ser feita pela Defensoria Pública, como determina a Constituição Cidadã de 1988.
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https://www.anadef.org.br/images/user/389/estudoimagemjudiciariobrasileiro_1.pdf.