Migalhas de Peso

Corrupção: chaga invencível?

A presente reflexão se propõe a uma análise do tema um pouco atípica. Abordará de início a condição humana, para tentar entender o que leva o ser racional a perpetrar atos contrários à boa índole e tão lesivos a uma comunidade difusa de vítimas.

31/5/2022

Introdução

O Brasil convive com o pesadelo da corrupção desde tempos imemoriais. Toda a história colonial, imperial e republicana registra episódios que poderiam conduzir à conclusão de que esse mal é insuscetível de se debelar. Esse “vírus” que parece impregnar a Administração Pública e para o qual não existe vacina, seria de fato inextinguível?

O universo jurídico investiu numa intensificada produção doutrinária, em seguida elaborou normatividade adequada e disso resultou jurisprudência consistente. Há inumeráveis julgados sobre o tema da improbidade em todas as instâncias. Tudo parece insuficiente para erradicar essa fissura de caráter que ocorre no ambiente macro, mas que também se infiltra no espaço micro.

A presente reflexão se propõe a uma análise do tema um pouco atípica. Abordará de início a condição humana, para tentar entender o que leva o ser racional a perpetrar atos contrários à boa índole e tão lesivos a uma comunidade difusa de vítimas.

I. A condição humana

A criatura racional é uma entidade complexa. Ninguém pode garantir conhecê-la por inteiro. Há sempre algo a se desvendar. A psicologia procura explicar considerável parcela desse intrincado conjunto de sentimentos, intuições, sensações, desejos e vontades inerentes aos humanos. Para Richard Holloway, “se quisermos alcançar alguma compreensão útil da condição humana, temos de começar pelo reconhecimento de que somos todos subordinados à atração gravitacional de um universo que é indiferente às criaturas que estão sujeitas a seus impulsos sem remorsos. Somos lançados numa existência cujos motivos estamos apenas começando a entender”1

A natureza dos seres racionais não ostenta essência nobre e acolhedora de virtudes. Imbuiu-se a criatura que se considera a primícia dentre as demais, de missão ambiciosa: submeter todos os humanos a uma jornada conducente aos mais elevados desígnios. No discurso edificante produzido pela civilização, “a humanidade vem lutando por espaço para inserir ordem e bondade em sua vida. Inibida pelo cérebro evoluidíssimo, proveniente de uma vida sem constrangimentos, totalmente dominada pelos instintos, a humanidade teve de cavar um doloroso meio-termo para si mesma, trocando, assim, todo o ardor da expressão instintiva pela cortesia do bem social. Esse meio-termo costuma ser definido como ‘civilização’ e é sempre precário, porque a transação desconfortável em que se baseia não é assim tão fácil para todos”2.

O mistério do mal é algo assombroso. Temos experiência pessoal de contato muito próximo com ele. Em contextos favoráveis, de acordo com determinadas circunstâncias, poderíamos penetrar em veredas equivocadas. É manifesto – pois provamos continuamente isso - que “ser humano não é fácil. A consciência e a evidente posse do livre-arbítrio nos inclinam a crer que temos controle sobre a nossa vida, mas os fatos indicam algo bem diferente”3. Há explicações e justificativas consistentes para todos os nossos equívocos?

Neste 2022 em que celebramos o centenário da Semana de Arte Moderna, cabe invocar Mário de Andrade, que se afirmava não ser um, mas trezentos ou trezentos e cinquenta! Somos múltiplos, complexos e paradoxais. Apenas teoricamente comandamos nosso próprio caráter. Sustentamos o domínio do livre arbítrio, porém “grande parte dele é programado por forças sobre as quais jamais tivemos controle algum. Agora, a memória imperscrutável da espécie humana que há dentro de nós, cada um de nós foi lançado em um contexto de vida único e específico, cujos primeiros estágios surtiram efeitos profundos, para o bem ou para o mal, na nossa história subsequente. Também estamos estranhamente sujeitos à atração gravitacional do rebanho humano”4.

Quem terá coragem de negar que esse “efeito rebanho” não se faz presente em alguns corruptos e corruptores? “Se todo o mundo faz, por que não eu?”. O afã de empolgar bens da vida considerados essenciais ao investimento na felicidade pessoal leva muitos a se desinibirem na busca da matéria. Como reza a sabedoria popular, “a ocasião faz o ladrão”. Numa nação de iletrados, os que chegam à gestão da coisa pública se inebriam com a aparente infinitude dos recursos do Erário e enxergam a oportunidade de se locupletarem. É da condição humana a tentativa de tirar proveito daquilo que é “público”. Em países de civilização consolidada, o que é “público” é de todos. No Brasil, o “público” equivale à assertiva: “é de ninguém!”. O ufanismo ainda reinante, a sensação de “berço esplêndido”, de terra dadivosa, “onde se plantando tudo dá”, a imensidão luxuriante de nossa biodiversidade, nossa fortuna mineral, sugere que o desvio de um pouco do patrimônio incomensurável – e que é também, ao menos em parte, “nosso”, – é admissível. Proliferam os ímprobos a lesar os recursos públicos e a conspurcar a ética cidadã.            

II. A improbidade administrativa

As práticas tipificadoras da improbidade administrativa estão descritas na lei 8.429/92, com a recente alteração trazida pela lei 14.230, de 25/10/21. Elas configuram dano ao erário, enriquecimento ilícito e violação aos princípios que regem a Administração Pública. O conceito de enriquecimento ilícito é o de auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades públicas.

Há uma enorme gama de atos que causam prejuízo ao erário, ou vulneram os princípios explicitados no artigo 37 da Constituição da República, regedores da conduta exigível aos servidores.

Criticou-se na modificação aprovada pelo Parlamento, a exigência de dolo para a responsabilização dos agentes públicos. Assim, escapam à esfera da improbidade os atos praticados a título de culpa, classicamente caracterizada quando os danos provierem de imprudência, negligência ou imperícia.

Compreensível a exclusão dessas condutas culposas. Improbidade é sinônimo de desonestidade, canalhice, desonradez, fraude, imoralidade, maldade, malícia, malignidade, perversidade ou ruindade. O gestor intelectualmente despreparado – e quantos não existem nos quase seis mil municípios brasileiros! – nem sempre obra com malícia ao prestar contas de seus atos de administração. Muitas injustiças foram cometidas pelo Brasil afora, a partir de uma aplicação rígida e inflexível da literalidade legal.

Sob essa ótica, saudável cometer ao Ministério Público a exclusividade para a propositura da ação de improbidade e a prerrogativa de celebrar acordos, assim como ao juiz a discricionariedade de converter sanções privativas de liberdade em multas. Não é uma transigência com a desonestidade, senão racional incidência do consequencialismo, dever ético imposto ao magistrado pelo artigo 25 do Código de Ética editado pelo CNJ em 2008. Diante do ressarcimento integral do dano e reversão da vantagem indevida obtida no desempenho da atividade pública, o juiz poderá ponderar essa possibilidade, sempre levando em consideração a personalidade do agente e a natureza, circunstância, gravidade e repercussão social do ato de improbidade.

Indiscutível enfatizar que a improbidade administrativa, embora aparentemente geminada à perpetração de um delito, tem caráter cível. Para a prática de crimes existe expressa previsão penal. Daí o legislador estipular o prazo de um ano para que o Ministério Público declare interesse na continuidade dos processos em andamento, seja em que instância estiverem. Confere-se responsabilidade ao Parquet, além de extirpar do horizonte do pretenso ímprobo essa recorrente e angustiante indefinição que deriva do recorrente e inadmissível descumprimento de prazos.

Outras providências aparentemente mitigadoras da condição do ímprobo advieram de reconhecidos abusos em que incorreu o Ministério Público, a instituição mais poderosa da República, a partir de 5.10.1988, mas que não pode ser onipotente e ilimitada. Ao acréscimo incomparável de poderes, deve corresponder igual carga de responsabilidade acrescida. 

III.  A transparência

O que deve preocupar os homens de bem neste momento histórico é a tendência de exclusão do tema “improbidade”, de estrita submissão ao princípio “transparência”, norteador de toda a vida estatal em nossa República.

Sob argumento de que a divulgação de um processo que poderá resultar em improcedência, os réus nas ações de improbidade invocam o direito ao segredo de justiça. Ocorre que do cotejo entre os valores em confronto – a privacidade do réu – e a divulgação do processo – a predominância está no interesse público. Não há sigilo que se sobreponha quando está em jogo a lisura da administração pública. Tudo o que concerne à gestão estatal precisa estar, obrigatoriamente e sem exceção, sob domínio da cidadania. É direito do cidadão o acesso às informações do que se passa na administração dos interesses comuns. Esta condição, protegida pelo status civitatis, confere a cada indivíduo o irrenunciável direito a saber tudo o que ocorre no âmbito do Estado. Uma sociedade de fins gerais, com amplitude suficiente para que, - dentro dela – se desenvolvam as demais formas gregárias de fins particulares e possa também atingir a plenitude de suas potencialidades, qualquer criatura racional que nela seja dado existir.     

O fenômeno do livre acesso à vida pública decorre da estrutura que o constituinte conferiu ao nosso pacto federativo. A alteração topográfica do capítulo dos direitos e garantias fundamentais já sinalizou a importância que o elaborador do pacto outorgou às declarações de direitos. Não satisfeito com a inclusão de cinco valores no caput do artigo 5º, procedeu a uma irradiação resultante em setenta e oito incisos, além dos parágrafos que representam uma porta aberta ao ingresso de inumeráveis outros direitos.

Nessa enunciação abrigaram-se conteúdos conflitantes, que só poderão ser adequadamente observados mediante estratégias hermenêuticas do chamado neo-constitucionalismo, assunto polêmico, pois impregnado de conotação filosófica e ideológica.

Dentre esses valores em confronto estão a publicidade, garantida no artigo 37 e também no inciso LX do artigo 5º, com a única ressalva da defesa da intimidade ou do interesse social. Ora, a publicidade é a regra, com vocação de se converter em absoluta, quando se cuida de atuação estatal. Tanto assim, que a Constituição também garante à cidadania o acesso à informação – artigo 5º, incisos XIV e XXXIII.

Celso Lafer se propõe, em primoroso ensaio, a responder à indagação: “numa democracia existem limites aceitáveis à instantaneidade da transparência da conduta governamental?”5. E o faz com sua autoridade de categorizado pensador e filósofo: “Uma das características de um regime democrático é a convergência, no conceito do público, tanto daquilo que é do interesse comum da res publica (como algo distinto da res privata, domestica, familiaris na qual prevalece a singulorum utilitas) quanto daquilo que é do conhecimento de todos. O exercício em público do poder comum é uma das “regras do jogo” da democracia, para falar com Bobbio, pois a transparência dá à cidadania a possibilidade de avaliar e controlar as decisões dos governantes”6.

A luta pela transparência propõe ferrenho combate ao poder invisível que considera o “segredo como componente do exercício do poder”7. A transparência se vincula “à afirmação que fez Kant no Projeto da Paz Perpétua sobre a publicidade como critério de julgar a moralidade. É um componente da crítica ao realismo da razão de estado que encobre informações, para dominar, voltada para o exercício de um jus dominationis”8. Ocultar as entranhas do poder é, antes de tudo, grave infração ética, antes de ser contrária aos pilares da democracia.

Nada mais importante para que a cidadania adquira uma consciência patriótica, do que saber o motivo pelo qual estão sendo levadas aos Tribunais personalidades que poderiam ser consideradas “insuspeitas”. Muitas delas, sufragadas no exercício democrático da escolha de representantes. Não há motivo justificável para encobrir a apuração hígida de suas responsabilidades, pois é incompatível com o Estado de Direito de índole democrática, esconder mentiras e segredos, na expressão do Chanceler Celso Lafer: “o segredo e a simulação da mentira, que se contrapõem à transparência do poder, interligam-se, como observa Bobbio. Com efeito, as mentiras são parte do arsenal utilizado para resguardar o segredo, e o segredo permite o ocultamento da mentira”9.

A Democracia é o regime imune a segredos. Ela existe para titulares do status civitatis, não para vassalos ou para servos da gleba. A cidadania não pode prescindir de informação correta, completa, perfeitamente compreensível. Inafastável da atuação jurisdicional tutelar da transparência, um enfoque nitidamente ético. O funcionamento aberto e transparente dos Tribunais é indicativo do padrão comportamental de uma sociedade em determinada época. Os atos judiciais tendem a ser perenes, ainda que hoje tenham de se adaptar às tecnologias implementadas pela Quarta Revolução Industrial e não sejam invulneráveis aos ataques cibernéticos.

Por que essa vocação tendente à perenidade?

Para que atos eventual ou pretensamente írritos aos princípios consagrados no ordenamento, alguns deles pressupostos, como a lisura na condução da coisa pública, não sejam absorvidos pelo olvido. A Democracia se afirma quando se leva a sério o princípio da transparência do poder estatal. Um princípio que “é constitutivo de um regime democrático que se baseia no exercício em público do poder comum, posto que o que é do interesse de todos deve ser do conhecimento de todos. É por isso que numa democracia a publicidade é a regra e o sigilo é exceção”10.

O Poder Judiciário, uma das funções estatais, igualmente se subordina a esse comando inafastável. A visibilidade do poder, invoque-se ainda uma vez o magistério de Celso Lafer, é “um critério kantiano de moralidade, posto que pressupõe sustentar publicamente a validade de atos governamentais (em sentido amplo, equivalente a “estatais”) e não escondê-los da apreciação da cidadania. Com efeito, como ensina Bobbio, num ensaio luminoso, mesmo numa democracia é difícil a debellatio do poder invisível”11.  

O bem da Pátria tem de ser sempre o objetivo maior. Este o anseio nutrido por uma sociedade cujos objetivos permanentes, explicitados na lei fundante, são a consecução do bem comum, a erradicação da miséria, a redução das desigualdades, a edificação de uma comunidade nacional justa e solidária. Nada pode suplantar esse interesse, no cotejo entre a pretensão daquele que foi levado às barras da Justiça, (sob alegação de ferir a lisura da gestão estatal e agora a pleitear sigilo) e a vontade imperativa da Constituição Cidadã, de plena e absoluta publicidade.

Essa a vontade expressa na Constituição, documento que não é exclusivamente jurídico, mas histórico, econômico, sociológico, filosófico e político, dentre outras possibilidades analíticas. Uma Constituição que vale, e que não é mera utopia, como o jurista Paulo Ferreira da Cunha explorou, metaforicamente, em sua tese de Doutorado em Coimbra.

Embora seja um texto teleológico, a indicar como o mundo deveria ser, a Constituição é mais do que uma utopia. “A partir de uma redução dos textos constitucionais à sua expressão mais simples, e procurando uma sua leitura a um tempo mitanalítica e mitocrítica, poderá muito provavelmente concluir-se que o sentido do mundo apontado pela maioria das constituições é dado pela luta entre as forças da ordem, do bem, da justiça, encarnadas pela constituição em causa, e o outro lado (nem sempre claramente referido ou identificado), do caos ou de uma ordem injusta, a qual é uma forma de caos”12.

Esse “outro lado” é aquele interessado em esconder, tergiversar, utilizar-se de argumentação convincente, pois calcada em elementos sensíveis e emocionais – privacidade, intimidade, recato, o recôndito da vida familiar – e subtrair ao conhecimento da nacionalidade o que ocorre em suas entranhas.

Não é o segredo, o sigilo, a ocultação, a sombra e o engodo aquilo que a Constituição Cidadã de 1988 quer. Não foi isso o que ela prestigiou. Ao contrário, elegeu a transparência como valor basilar, como princípio inspirador e com o qual não se pode transigir. Por isso cabe observar, com Paulo Ferreira da Cunha, que “o melhor sentido de vida para um cidadão é amar a sua utopia, isto é, amar a sua pátria, e defendê-la, morrer por ela se preciso for. Que o sentido último e radical da vida de cada cidadão da utopia constitucional é esse, provam-no inúmeros textos constitucionais que cobram o preço dos bens, da vida e da honra dos cidadãos pela defesa das muralhas ou da constituição, ou da utopia”13. No reino da obscuridade só podem medrar malefícios. O lodo não oxigena, mas enseja podridão. É a natureza a ensinar os homens que o sol da verdade é o melhor fortificante da vida democrática.       

IV. Uma questão moral

Não seria necessário buscar a lição kantiana para concluir que a corrupção e suas múltiplas formatações concernem a uma questão essencialmente moral. O moralista Jacques Maritain, que influenciou tantos pensadores brasileiros, observa que “os antigos sublinhavam mui fortemente as inclinações naturais para o bem moral; falavam muito delas, talvez de maneira um tanto simples demais, pois essas inclinações nem sempre são estáveis, e sofrem exceções. O amor materno é uma inclinação natural, mas há galinhas que matam seus pintinhos”14.

Essa a razão pela qual o filósofo distingue as duas categorias de instintos e de inclinações que integram a condição humana: “de uma parte, os instintos concernentes à natureza animal do homem, as tendências hereditárias, os fatores determinados pela natureza; e, de outra parte, as inclinações e as tendências nascidas da razão, ou, antes, da natureza como que enxertada de razão, porque o homem é naturalmente racional, e porque aquilo que é acorde com a razão agrada naturalmente ao animal racional”15.

Ambas as categorias de instintos ou de inclinações ou tendências podem ser pervertidas, além do que, encontram-se em conflito mútuo, não se sabendo qual delas vencerá o embate. Tais tendências são frágeis, não estão imutavelmente determinadas em si mesmas, diz Maritain. Dependem de inúmeros fatores. Submetem-se aos costumes sociais, mas são influenciados por elementos internos, emocionais, genéticos e atávicos.

Numa sociedade permissiva, cujos freios inibitórios foram negligenciados e excessivamente flexibilizados, tornou-se comum a malversação de dinheiro do povo. Os escândalos se sucedem e já não chocam mais. Parte do senso moral se prostituiu. O direito não é suficiente, em sua sofisticada e crescente normatização, para coibir condutas lesivas ao erário e nefastas à higidez da convivência social.

É de se concordar com Jacques Maritain, que “as tendências e as inclinações naturais não proporcionam à filosofia bons instrumentos de argumentação. Aduzem um material experimental precioso, mas os raciocínios e demonstrações da filosofia moral devem proceder pela determinação conceitual, pela elucidação científica daquilo que é conforme ou não á razão e aos fins da natureza humana; a filosofia tem de elaborar a teoria das inclinações naturais, tem de lhes explicar a existência e o papel, e não invocá-las como prova”16. Se isso ocorresse e o espaço de pesquisa fosse o Estado brasileiro, acabar-se-ia por acreditar que a humanidade apresenta sintomas de um projeto fracassado.

Cumpre à lucidez nacional resgatar as inclinações naturais em sua destinação de perfectibilidade. Elas constituem a via normal, a via natural e, para Maritain, “a única via, do conhecimento natural – não filosófico, senão pré-filosófico – dos valores morais. O que implica que à filosofia e às disciplinas de saber moral é que compete julgar em última análise, de maneira a discriminar os valores autênticos e os valores apócrifos”17.

Tais reflexões nos levam a considerar que a corrupção é mácula moral intolerável. Contrapõe-se à ordem estética, ambiente de contraposição entre as coisas belas e as coisas feias. “O belo e o feio aparecem-nos então como espécies estéticas da mesma maneira como o bem e o mal são espécies morais”18. A beleza está na virtude do comportamento irrepreensível dos agentes públicos imbuídos da intenção e da vontade de buscar o bem de todos. Mas existem aqueles que se inserem na “categoria do feio; do feio, do vil, do repugnante, do sujo, do imundo, do pegajoso, do viscoso, do nauseabundo. É esse um aspecto da natureza e da existência”19.

Ao submeter tais práticas à Justiça humana, não se está livre de cometer equívocos, de atuar de forma temerária, pois o equipamento é falível como são falíveis os seres racionais. Todavia, propiciar à sociedade o acompanhamento daquilo que se realiza no foro, é garantir o melhor funcionamento do sistema justiça e propagar à cidadania o que deve ser o paradigma de conduta de um agente estatal.

A apuração aberta, pública e transparente, além de sua finalidade pedagógica, é a mais adequada demonstração de que a prática da corrupção traz um significado anti-humano, ofensivo ou degradante, nefasto para a construção da sociedade propugnada pelo constituinte.

Um processo público, aberto e transparente é uma tentativa de reconquista dos valores morais, de se conferir ressignificação ao desempenho de funções de governo ou de exercício de qualquer atuação voltada à consecução do bem comum.

Eventuais e não improváveis equívocos, que possam lesar a reputação dos envolvidos, são plenamente corrigíveis, pois nenhuma vulneração ou ameaça a direito ou a interesse legitimamente protegido restará imune à apreciação judicial. Mais uma vez é de se ponderar a mais valia da salus publica do que o interesse individual, por relevante parecer possa.   

O combate à corrupção no Brasil é luta sem tréguas e a República já incorporou ao sistema tudo aquilo que a comunidade internacional entendeu relevante nessa área, destacando-se medidas que assegurem a participação da sociedade civil e o amplo acesso à informação. Existem mecanismos de consulta e de participação na gestão pública, não discrepantes com o regramento vigente. Nesse sentido, a jurisprudência tem sufragado a tese de que a regra da publicidade, expressão da transparência republicana, tem prevalência ante qualquer alegado interesse individual em preservação do sigilo.

Reitera-se: a transparência é, além de regra conforme com a índole democrática da República Federativa do Brasil, potente antídoto à reiteração de condutas lesivas ao erário e à moralidade pública, um componente ético há muito pleiteado por uma Nação saqueada por malversações de vária ordem.

As futuras gerações merecem compostura na vida pública, etapa obrigatória na edificação da pátria justa, fraterna e solidária prometida pelo constituinte de 1988.

_______________

1 HOLLOWAY, Richard, Entre o monstro e o santo – Reflexões sobre a condição humana, Rio de Janeiro-São Paulo: Editora Record, 2013, p. 29.

2 HOLLOWAY, Richard, op. cit., idem, p. 31/32.

3 HOLLOWAY, Richard, op. cit., idem, p. 54.

4 HOLLOWAY, Richard, op. cit., idem, p. 55.

5 LAFER, Celso, Vazamentos, sigilo, diplomacia: a propósito do significado do Wikileaks, in Filosofia e Teoria Geral do Direito – Um percurso no Direito no Século XXI, vol. 3, São Paulo: Atlas, 2015, p. 113.

6 LAFER, Celso, op. cit., idem, p. 115.

7 LAFER, Celso, op. cit., idem, p. 116.

8 LAFER, Celso, op. cit., idem, ibidem.

9 LAFER, Celso, op. cit., idem, ibidem.

10 LAFER, Celso, Direitos Humanos – Um percurso no Direito no Século XXI, São Paulo: Atlas, 2015, p. 150/151.

11 LAFER, Celso, Direitos Humanos, cit., idem, p. 151.

12 CUNHA, Paulo Ferreira da, Constituição, Direito e Utopia. Do jurídico-constitucional nas utopias políticas, Coimbra: Universidade de Coimbra Editora, 1996, p. 363.

13 CUNHA, Paulo Ferreira da, op. cit., idem, ibidem.

14 MARITAIN, Jacques, Problemas fundamentais da Filosofia Moral, Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1977, p. 77.

15 MARITAIN, Jacques, op. cit., idem, ibidem.

16 MARITAIN, Jacques, op. cit., idem, p. 72.

17 MARITAIN, Jacques, op. cit., idem, p. 73.

18 MARITAIN, Jacques, op. cit., idem, p. 78.

19 MARITAIN, Jacques, op. cit., idem, p. 79.

José Renato Nalini
Doutor e mestre em Direito Constitucional pela USP, desembargador aposentado do TJ/SP, onde exerceu Corregedoria e Presidência.

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