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Nulidades no processo penal, sistema acusatório e a dicotomia jurisprudencial.

Posicionamento dos Tribunais X nulidades processuais penais.

25/5/2022

Nulidades

Durante as aulas da graduação em direito temos contato com as famosas nulidades processuais, que no CPP vem descritas em um rol exemplificativo no art. 564.

Pois bem, aprendemos que algumas são relativas e podem ser sanadas no curso da instrução, tipo uma gambiarra que se faz, um remendo, e daí se regulariza a coisa toda e não prejudica nenhuma das partes.

Em regra as nulidades relativas atingem somente um interesse da própria parte no processo, não podendo por isso ser conhecida de ofício pelo juiz, necessitando que o interessado alegue no momento oportuno senão ocorre a preclusão do momento de manifestação e o ato é convalidado, ainda, a parte precisa demonstrar o efetivo prejuízo, caso não seja demonstrado entende-se que não há nulidade.

Já as nulidades absolutas, essa são mais graves, aprendemos que não há possibilidade de correção, uma vez que violaram regras do jogo essenciais de um Estado Democrático de Direito e dessa forma precisam ser anulados e refeitos para restabelecer a ordem constitucional. Vejamos:

1. ocorre uma violação de norma cogente, que tutela interesse público;

2. existe a violação de princípio constitucional;

3.Tanto pode ser declarada de ofício ou mediante invocação da parte interessada;

4. o prejuízo e o não atingimento dos fins são presumidos (não necessita demonstração);

5. é insanável, não se convalida e tampouco é convalidada pela preclusão ou trânsito em julgado.

O professor Aury Lopes Jr. define que em "regra das nulidades absolutas, a gravidade da atipicidade processual conduz à anulação do ato, independentemente de qualquer alegação da parte interessada, podendo ser reconhecida de ofício pelo juiz ou em qualquer grau de jurisdição".

E ainda, que "sendo alegada pela parte, não necessita demonstração do prejuízo, pois manifesto ou presumido". (Direito processual penal / Aury Lopes Jr. – 18. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021).

Interpretação dos tribunais

Até aqui tudo bem, o problema mesmo é quando esta questão de nulidades, seja relativa ou absoluta chega aos tribunais, a jurisprudência tem desmantelado esse conceito, vem sendo feito uma bagunça com os direitos e garantias fundamentais do ser humano, a gambiarra que cabia somente quando se tratava de nulidade relativa tem sido estendida as nulidades absolutas com bases em interpretações equivocadas do nosso CPP.

Por exemplo, no nosso sistema jurídico, por uma interpretação das normas constitucionais em conjunto e por meio da leitura de tratados internacionais do qual o Brasil faz parte, deveria haver uma separação clara das funções de acusar, julgar e se defender no processo, é o que se denomina sistema acusatório, cada qual em seu quadrado.

Digo deveria haver, pois em muitos casos senão na maioria, não há esta separação de funções e muitas vezes o réu tem que exercer o contraditório contra o juiz, contra o promotor, ou seja, uma verdadeira festa punitivista (art. 129, inciso I, da CF/88).

O juiz, como essência no sistema acusatório não pode tomar para si a incumbência de produzir provas por si mesmo, essa é uma função das partes no processo, também não estamos dizendo que deve ser um mero expectador, inerte, entendemos que o juiz pode sim solicitar esclarecimentos de questões ou pontos duvidosos mas dentro do material já trazido pelas partes aos autos, mas nunca solicitar provas por si mesmo.

Veja que, na dialética das nulidades absolutas temos sofrido um retrocesso jurisdicional, o que há na verdade é uma inversão de valores, interpretação onde se dá um famoso jeitinho para encaixar conceitos de nulidade relativa a nulidades absolutas e assim legitimar um ato absolutamente irregular mantendo sua eficácia no processo.

O interesse público em um processo justo e limpo (devido processo legal) tem sido suprimido pelo amplo poder punitivo do Estado e pelo interesse do senso comum que clama por uma falsa justiça ao pedirem a supressão das garantias fundamentais do ser humano no processo penal.

Para atender esses anseios, tem sido adotado pelos tribunais que seja nulidade absoluta ou relativa o prejuízo deve ser demonstrado, essa constatação vem de alguns julgados recentes, que desvirtua o conceito de nulidade absoluta e relativa, a exemplo o abaixo proferido pelo STJ.

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FINANCIAMENTO AO TRÁFICO DE DROGAS. NULIDADES. PEDIDO DE DILIGÊNCIA. OUTROS MEIOS DE PROVAS. COMPROVAÇÃO DE LUCRO. DESNECESSIDADE. PRODUÇÃO DE PROVAS. CIÊNCIA DA PARTE. PRECLUSÃO. ESCLARECIMENTO EM DEPOIMENTOS. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. VIOLAÇÃO AO ART. 212 DO CPP. NULIDADE RELATIVA. PREJUÍZO INEXISTENTE. (...). AGRAVO NÃO PROVIDO. ( AgRg no AREsp 746.463/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 22/06/2021, DJe 29/06/2021).

Não seria nesse caso o prejuízo evidente? Vejamos.

Na situação acima, que o juiz desobedece a ordem na oitiva das testemunhas e passa ele mesmo a fazer as perguntas iniciais diretamente às mesmas, de início pode parecer algo simples, fácil de superar, não tão grave, mas se olharmos no contexto geral, no âmbito da legalidade e legitimidade vemos uma série de violações, não só ao art. 212 do CPP, mas a uma série de garantias constitucionais, como por exemplo a garantia da imparcialidade do juiz, a garantia do sistema acusatório, a garantia do devido processo legal, da isonomia, da ampla defesa e do contraditório, entre outros muitos princípios.

Primeiro, ele (juiz), assumiu o papel da acusação pois passou a produzir a prova, segundo, ele produzindo a prova pode produzi-lá no sentido de fazer um juízo de confirmação, terceiro, há um desprezo pela forma legalmente prevista para o ato, o que abre um precedente muito perigoso, quarto e não menos importante, a isonomia é violada de cara, veja que a defesa na sua vez de fazer as perguntas deve estar atenta a todas as perguntas do juiz e também do MP, irá se defender de ambas, uma verdadeira disparidade processual, não há ampla defesa nesse cenário, uma vez que se tornou duvidosa a atuação do julgador e o contraditório passou a ser exercido tanto com quem acusa quanto com quem julga.

Horas bolas, o prejuízo é evidente, não precisa de demonstração, nem precisa longo e extenso raciocínio para visualizar a extensa ferida no texto constitucional.

Basta pensar o seguinte:

Quem vai garantir que o juiz foi imparcial em suas perguntas? quem garante que ao iniciar a seção de perguntas o juiz não as fez no sentido de apenas confirmar um juízo de valor pré-estabelecido em sua cabeça, sendo ignoradas todas as demais situações de fato e direito que pudessem afastar a sua íntima convicção?

Sendo assim, não há outra conclusão a não ser que, o caso vertente trata-se de uma nulidade absoluta, que não pode ser relativizada, o prejuízo nesse caso é presumido e independe de demonstração.

Onde existe dúvida não existe garantia alguma e se não há garantia existe o prejuízo, simples assim.

Veja que, para o réu demonstrar o prejuízo ao contraditório, a ampla defesa, a imparcialidade do julgador, é algo praticamente impossível, pois seria necessário ingressar no campo subjetivo do julgador, a não ser que este viesse a exteriorizar seu pensamento antes de proferir a sentença, o que não é raro de acontecer e temos alguns exemplos na prática forense.

Nesse contexto é que o professor "Aury Lopes Jr." faz duras críticas ao sistema de nulidades relativas e absolutas, em sua visão (e nossa também), as nulidades relativas acabaram se transformando em um importante instrumento a serviço do utilitarismo e do punitivismo, pois é recorrente a manipulação discursiva para tratar como mera nulidade relativa àquilo que é, inequivocamente, uma nulidade absoluta. Ou seja, a categoria de nulidade relativa é uma fraude processual a serviço do punitivismo.

Mas o pior mesmo é o dever da parte que invoca a nulidade ter que demonstrar o prejuízo, quando deveria ser o contrário, o Estado demonstrar não haver prejuízo algum e manter a eficácia do ato.

Nesse sentido, defendem Gustavo Henrique Badaró e Aury Lopes Jr, pois, se há um modelo, ou uma forma prevista em lei, que foi desrespeitada, o normal é que tal atipicidade gere prejuízo, sob pena de se admitir que o legislador estabeleceu uma formalidade absolutamente inútil.

Nessa seara, "não é a parte que alega a nulidade que deverá “demonstrar” que o ato atípico lhe causou prejuízo, senão que o juiz, para manter a eficácia do ato, deverá expor as razões pelas quais a atipicidade não impediu que o ato atingisse a sua finalidade ou tenha sido devidamente sanado. Trata-se de uma “inversão de sinais”, de liberação dessa carga probatória por parte da defesa (que nunca poderá tê-la), e atribuição ao juiz, que deverá demonstrar a devida convalidação do ato para legitimar sua validade e permanência no processo". (Aury Lopes Jr. – 18. ed. – , 2021).

Ou seja, o que temos visto e que é inadmissível, são atos processuais sendo praticados com evidente violação de princípios constitucionais, sem a necessária anulação e repetição (com vistas ao restabelecimento do princípio violado), e os tribunais suprimindo tais ilegalidades fazendo uma manipulação e inversão interpretativa, sobrecarregando sempre a parte mais frágil e vulnerável no processo penal em termos probatórios, que sempre é o Réu, com o dever de que este demonstre um prejuízo que é evidente.

_____

[1] - FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2ª Ed. 2006, p. 518.

[2] - LOPES JR., Aury, Direito processual penal / Aury Lopes Jr. – 18. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

[3] - BADARÓ, Gustavo. Processo Penal - Ed. 2021. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2021.

Flavio Viana
Advogado. Pós Graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Ebradi - Escola Brasileira de Direito.

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