1 Introdução
Quem nunca ouviu falar sobre um bem usucapido? Talvez um dos termos do direito mais conhecidos pela população leiga, devido à sua importância histórica e cultural, o usucapião, figura do direito civil relacionada à propriedade, pode ser identificado como um direito sobre determinada coisa própria, considerada um direito real. Nesse sentido, o usucapião seria então uma forma de aquisição de propriedade através da posse da coisa, através de seu uso. Não à toa, a origem desse termo vir da união entre duas expressões do latim: usu e capere, que significam algo como “tomar pelo uso”1.
De origem romana, o usucapião encontra sua importância, essencialmente, na função social da propriedade, sendo instrumento jurídico hábil para solução de problemas socioeconômicos. O usucapião permite, dessa forma, que pessoas adquiram a propriedade de um bem negligenciado pelo dono legal, caso tenham dado a ele uma função econômica ou social com ocupação ininterrupta por determinado período de tempo, tendo em vista o princípio da continuidade do caráter da posse, previsto no art. 1.243 do CC/02.
2 Origens e evolução histórica do usucapião
Apesar de encontrar aplicações anteriores ao seu estabelecimento normativo na legislação romana, como, por exemplo, na Grécia e entre os povos hebreus, no direito romano, o usucapião teve suas raízes fundadas na Lei das Doze Tábuas, consagrada no ano 305 da era romana, 445 a.C. Nesse ordenamento, estabeleceram-se normas e garantias aos cidadãos e princípios democráticos, sendo o usucapião mencionado e estendido tanto para bens móveis quanto para bens imóveis.
Naquele contexto, os prazos para usucapir eram de dois anos para bens imóveis e um ano para bens móveis e similares e, apenas após a evolução do instituto, passou a ser exigido, também, o justo título e a boa-fé como requisitos para o usucapião, acompanhados da posse.
Uma de suas principais finalidades seria, então, solidificar o título defeituoso ou título de aquisição viciado, tendo em vista a ascensão territorial em Roma e a necessidade de organização quanto ao estabelecimento de posses e propriedades, dirimindo, dessa forma, a situação de insegurança provocada quando o bem, adquirido por negócio defeituoso ou viciado, ainda se encontrava exposto2.
O usucapião teria surgido, então, como um instituto cujo objetivo principal seria sanar graves problemas fundiários e sociais advindos do crescimento e expansão do Império Romano, além de ter “o fito de proteger a posse do adquirente imperfeito, que recebera a coisa sem as solenidades necessárias, de acordo com a legislação vigente àquela época”3.
À vista disso, após determinadas transformações do instituto, promovidas pelo imperador Justiniano, no Século VI d.C., o usucapião teria estabelecido sua evolução no direito romano, refletindo no direito ocidental, tendo sido o Código de Napoleão o primeiro diploma moderno a recepcioná-lo4.
3 Importância do instituto
Logo, considerando a origem histórica do instituto do usucapião como sendo uma das maneiras de organização e formalização dos títulos de propriedade durante a expansão territorial romana e tendo em vista que tal instituto, por mais remoto que seja, ainda hoje persiste na legislação dos mais diversos países, neles incluído o Brasil, pode-se entender pela importância do usucapião não só durante períodos de expansão territorial, mas também – e principalmente – na própria organização da sociedade capitalista, baseada na propriedade privada, na qual os títulos de propriedade são um dos bens mais preciosos que se pode adquirir, que servem como garantia de riquezas, bens e proveitos, e refletem não apenas na existência do adquirente inicial, mas também na das gerações futuras, por meio de outros institutos como a herança e a sucessão.
De acordo com Platão, em sua obra A República, o maior bem de uma cidade (ou nação) seria a unidade, e o maior mal, a discórdia, nos seguintes termos:
- Pode haver maior mal que a discórdia e a desagregação, que faz com que a cidade seja muitas ao invés de uma só? E pode haver maior bem do que o laço de unidade?
- Não pode.
- Ora, o que une não é comunidade de alegrias e pesares, quando o maior número possível de cidadãos se rejubile ou se aflija diante dos mesmos acontecimentos felizes ou infaustos?
- Evidentemente – respondeu.
- E o que desune não é a diversidade dos sentimentos privados, quando as mesmas coisas sucedidas à cidade ou aos seus habitantes fazem com que uns não caibam em si de contentes ao passo que outros mergulham em profunda tristeza?
- Sem dúvida.
- Tais diferenças costumam surgir de um desacordo sobre o uso dos termos “meu” e “não meu”, “seu” e “não seu”, não é verdade?
- Perfeitamente certo.
- E a cidade mais bem-organizada não será aquela em que o maior número possível de pessoas apliquem às mesmas coisas e com o mesmo sentido os termos “meu” e “não meu”?
- Como não?5
Dessa maneira, o filósofo reflete sobre os relevantes significados de “meu” e “não meu” para os indivíduos de determinada sociedade, ou seja, reflete sobre o direito de propriedade e sua influência sobre toda uma comunidade. Nesse sentido, assevera ainda as dificuldades encontradas quando não há consenso ou organização com relação a tais institutos, quando há uma “inevitável divisão: uma cidade assim não é uma só, mas duas cidades: a dos pobres e a dos ricos, que convivem no mesmo lugar e conspiram constantemente uma contra a outra”6.
Platão, entretanto, entende serem tais conceitos absolutos, ao mesmo passo em que defende duras penalidades para os que desrespeitam tais limitações – a pena de morte, inclusive7. No entanto, apesar da importância de tais reflexões filosóficas quanto ao direito de propriedade, na legislação brasileira, diferentemente do que entendia Platão, não se entende o direito de propriedade como algo absoluto, mas sim que pode ser relativizado, tendo em vista justamente as finalidades econômicas e sociais da propriedade e a preservação do meio ambiente.
Dessa forma, tenta-se valorizar a importância de definição dos conceitos de “meu” e “não meu” sem que tal definição seja completamente absoluta, dando vez às mudanças e vicissitudes da própria existência humana.
3.1 Conceitos e aplicações atuais do usucapião na legislação brasileira
Entende-se, portanto, o usucapião como um instituto de caráter aquisitivo, além do extintivo, pois a negligência ou prolongada inércia do proprietário da coisa pelo seu não uso resulta na prescrição aquisitiva em favor de quem mantém, sobre ela, posse continuada durante certo lapso de tempo, com a devida observância dos devidos requisitos legais8.
Previsto, na legislação brasileira, nos arts. 1.238 a 1.244 do CC/02, o usucapião pode ser de diversos tipos, tais como: o extraordinário, que diz respeito à posse mansa e pacífica por 15 anos contínuos, independentemente de boa-fé e apresentação de documentos do imóvel; o ordinário, que diz respeito à posse mansa e pacífica por dez anos contínuos, com boa-fé e apresentação de documentos do imóvel; o especial urbano, que diz respeito à posse mansa e pacífica por 5 anos contínuos de área inferior a 250m2, utilizado para moradia e desde que a pessoa a usucapir não possua outro imóvel; o coletivo, que diz respeito também à posse mansa e pacífica por cinco anos contínuos, sendo que de propriedade em área urbana menos que 250m2, desde que a pessoa a usucapir não possua outro imóvel; o especial urbano, que diz respeito à posse mansa e pacífica por 5 anos contínuos de área inferior a 250m2, utilizado para moradia e desde que a pessoa a usucapir não possua outro imóvel; o coletivo, que diz respeito também à posse mansa e pacífica por 5 anos contínuos, sendo que de propriedade em área urbana menos que 250m2, desde que a pessoa a usucapir não possua outro imóvel; e, por fim, o especial rural, que diz respeito à posse mansa e pacífica por 5 anos contínuos de área inferior a 50 hectares, com intuito de subsistência e moradia .
Sendo uma modalidade de aquisição originária, pois não existiria vínculo entre o usucapiente e o antigo proprietário da coisa, desse conceito decorrem diversas consequências como, por exemplo, a não obrigatoriedade pelo pagamento do Imposto de Transmissão de Bens Móveis, a não subsistência da hipoteca, dentre outros12.
Além disso, observa-se a importância da inovação trazida pelo Código de Processo Civil de 2015, acerca da usucapião administrativa, determinando que, em quaisquer moralidades de usucapião, caberá o caminho extrajudicial, com o fim de desjudicializar contendas13.
Isto posto, reflete-se sobre a evolução histórica e conceitual desse instituto do Direito de Propriedade, que até os dias atuais ainda encontra espaço para transformação e adaptação social, considerando que a sociedade está sempre em constante mudança, sendo uma das principais finalidades do Direito o acompanhamento de tais variações e a devida proteção dos bens jurídicos.
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1 CARVALHO, Victor. O que é usucapião? Politize!, 2019. Disponível em: Acesso em: https://www.politize.com.br/usucapiao/#:~:text=%C3%80%20grosso%20modo%2C%20usucapi%C3%A3o%20seria,a%20%E2%80%9Ctomar%20pelo%20uso%E2%80%9D. 23 de maio de 2022.
2 ARVANITIS, Eric Georges. A origem e evolução histórica do usucapião. Jus, 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33970/a-origem-e-evolucao-historica-do-usucapiao Acesso em: 23 de maio de 2022.
3 PIETRAFESA, José Paulo; RODRIGUES, Rivaldo Jesus. Da usucapião: origens, evolução histórica e a sua função social no ordenamento jurídico brasileiro no Século XXI. Repositório Institucional da Associação Educativa Evangélica, 2014. Disponível em: http://repositorio.aee.edu.br/jspui/handle/aee/271 Acesso em: 23 de maio de 2022.
4 IBIDEM.
5 PLATÃO. A República, tradução de Leonel Vallandro. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
6 IBIDEM.
7 FIGUEIREDO, Apoliana Rodrigues. Platão: As Leis, Livro XI, analogia ao direito contemporâneo. Âmbito Jurídico, 2017. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-163/platao-as-leis-livro-xi-analogia-ao-direito-contemporaneo/ Acesso em: 23 de maio de 2022.
8 PIETRAFESA, José Paulo; RODRIGUES, Rivaldo Jesus. Da usucapião: origens, evolução histórica e a sua função social no ordenamento jurídico brasileiro no Século XXI. Repositório Institucional da Associação Educativa Evangélica, 2014. Disponível em: http://repositorio.aee.edu.br/jspui/handle/aee/271 Acesso em: 23 de maio de 2022.