Migalhas de Peso

Muito mais do que palavras: o valor jurídico dos emojis

Considerados por muitos como a primeira linguagem independente surgida no ambiente digital, os emojis estão trocando a excepcionalidade, por um papel de destaque em disputas judiciais.

20/5/2022

Séculos atrás, quando o filósofo Confúcio cunhou a máxima “uma imagem vale mais do que mil palavras”, certamente, ele não imaginava a pertinência do seu pensamento para com os dias atuais. Isso porque, ainda que construção do provérbio tenha sido pautada nos ideogramas chineses, o conceito base de que a interlocução visual é por demais expressiva também pode ser aplicado aos emojis, elementos simbólicos que têm revolucionado o modo como nos expressarmos.

Projetados pelo designer de interface, Shigetaka Kurita, os primeiros 176 emojis foram lançados no ano de 1999, pela empresa de telefonia móvel NTT DOCOMO. Inaugurados com traços simples e monocromáticos, os ícones se tornaram mais vívidos, complexos e realistas com o tempo, além de acompanharem as transformações experimentadas pela sociedade. Nessa linha, algumas ilustrações polêmicas foram removidas, enquanto outras alteradas, a exemplo da troca do revólver para uma pistola d’água, em 2016, pela Apple. Os emojis também se adequaram a questões sensíveis, como acessibilidade, representatividade de gênero, de etnias e orientação sexual; modelos de configurações familiares plurais foram incluídos ao lado de vestimentas e alimentos provenientes de diferentes culturas.

Mais do que adicionar nuances divertidas a uma escrita plana, essas ilustrações podem expressar ou potencializar emoções, sendo um importante meio de interação. O rico conteúdo dos signos igualmente desempenha uma função semântica; enquanto pistas que preenchem as lacunas da interlocução eletrônica, tornam possível a compreensão de tudo aquilo que as palavras sozinhas não conseguem transmitir. Outra utilidade associada aos emojis é a de servirem como código. No primeiro dia da guerra Rússia-Ucrânia, por exemplo, circulou nas redes sociais uma montagem composta pela imagem do poeta Pushkin, filas do desenho “uma pessoa caminhando” e o número sete; não se tratava de uma série aleatória, mas da indicação do local (Praça Pushkin) e horário em que ocorreriam os protestos contra a ação militar comandada por Vladimir Putin.

De modo, no mínimo, inusitado, esses expedientes gráficos também têm sido usados para atrair interessados em construir uma identidade própria; alguns investidores estão apostando valor em sequências personalizadas de emojis, os chamados Yats1, como ativos digitais. Trata-se da tecnologia vendida pela Yat Labs como a versão digital de um nome de usuário, que já pode ser usada como URL de sites e endereço de pagamento para uma carteira digital. Desde fevereiro de 2021, a empresa anunciou a comercialização de mais de 160.000 combinações, tendo entre seus compradores famosos, o rapper Common, que adquiriu o arranjo coração e sinal de paz para chamar de seu.

Implementados por diversas empresas de telecomunicação, redes sociais, aplicativos e softwares de mensagens, os emojis se tornaram extremamente populares. Segundo o estudo divulgado pela Unicode Consortium, hoje existem mais de 3.600 opções de figuras digitais cadastradas pela instituição, bem como que cerca de 92% da população online mundial faz uso desses símbolos2. No mesmo sentido, o Facebook relatou que, em média, 2,4 bilhões de mensagens com emojis são enviadas todos os dias em sua plataforma3. Não por outro motivo, o pictograma “rosto com lágrimas de alegria” foi eleito, em 2015, como a “palavra” do ano pelo Oxford Dictionaries.

À vista de tamanha disseminação, não surpreende a presença cada vez mais frequente de emojis em casos levados ao Poder Judiciário. De acordo com o mapeamento publicado por Eric Goldman, docente na Universidade de Santa Clara, na Califórnia, os primeiros signos surgiram no ano de 2015, dispersos em cinco decisões judiciais norte americanas. Em 2021, a contagem jurisprudencial somou 166 menções à emojis, traduzindo um aumento de 23% em relação ao mesmo período anterior 4.

Ainda que inexistente um entendimento consolidado, não podemos deixar de reconhecer a colaboração dos ícones gráficos para a melhor compreensão dos fatos e intenção dos envolvidos. Tendo em conta que o ordenamento processual brasileiro adota o sistema de valoração da persuasão racional (princípio do livre convencimento motivado), o juiz é livre para formar seu convencimento, conferindo às provas produzidas no processo a carga que entender cabível5, circunstância essa que torna viável a atribuição de significado probatório complementar aos emojis. O que se tem observado é, justamente, o emprego desses símbolos, de modo cada vez mais frequente pelos tribunais, tanto para reforçar como derrubar teses envolvendo crimes, justificar o encerramento de vínculos trabalhistas, validar testemunhos, e ainda corroborar a imposição de indenizações.

Na justiça brasileira, a figura de uma banana já serviu para apoiar condenações por racismo; recentemente, inclusive, uma denúncia por injúria racial foi aceita contra uma advogada que, em conversa no WhatsApp, respondeu a mensagens de uma colega negra com emojis da fruta (TJDFT - PROC 0707940-11.2021.8.07.0020)6. Em outro processo, foi rejeitada a alegação de ofensa à moral levada a termo pelo uso de uma “carinha sorridente” em publicação de homenagem a autora, mulher transexual, no dia internacional da mulher (TJSP - PROC 1004499-15.2020.8.26.0291)7. Fato relevante envolvendo emojis também se deu quando o Tribunal Superior Eleitoral negou o pedido, do então candidato à presidência, Jair Bolsonaro, para suspender a veiculação no youtube de um vídeo da campanha adversária, que associava sua imagem à face estilizada “vomitando”. Nos termos da decisão, o uso do recurso "não se enquadra nas vedações da lei das eleições”8.

Cabe trazer ainda um emblemático episódio ocorrido em Israel. Após visitarem um imóvel, os potenciais inquilinos enviaram ao proprietário uma série de emojis comemorativos, levando-o a rejeitar outros candidatos e retirar o anúncio do mercado. No entanto, passados alguns dias, o casal encerrou abruptamente a negociação e acabou por escolher outro espaço. Após analisar os fatos, o tribunal declarou que os pretensos locatários agiram de má-fé, pois as figuras eram suficientes para transmitir grande otimismo e denotar a intenção de que alugariam a residência; os acusados foram condenados ao pagamento de 8.000 shekels (cerca de R$ 11.900) pelos danos gerados9.

Além de terem que lidar com novas ferramentas de mineração, preservação e apresentação de emojis, os profissionais da área jurídica precisarão passar por um processo de alfabetização visual, bem como enfrentar alguns entraves atrelados à natureza dos ícones. A diversidade de representações por parte das plataformas é um deles; não obstante os esforços da Unicode Consortium em determinar um padrão para os emojis, os fabricantes de software, como Apple e Google, disponibilizam versões próprias, com dimensões, coloração e detalhes exclusivos. Como consequência, o ícone enviado pode ser visto com uma aparência pelo emissor e assumir uma distinta frente ao destinatário, condição que abre caminho para inconsistências e falhas de comunicação.

Outra dificuldade diz respeito às camadas de significados que integram alguns emojis. Por mais que o site Emojipedia10 documente acepções usuais dos caracteres, do mesmo modo como acontece com palavras, de um único símbolo podem despontar diferentes interpretações. Como bem explica Stephanie Tomsett11, analista da ABI Research, um “rosto com óculos escuros” pode ser usado para noticiar um dia de sol, transmitir uma sensação de frescor, tal qual a ideia mais provocativa "lide com isso".

Não obstante a existência de desafios, nada supera as benesses decorrentes da incorporação desses grafites modernos à seara jurídica. Verdadeira tendência global, a ascensão das figurinhas digitais no cenário legal tem repercutido de forma tão expressiva que até a célebre frase originária no instituto norte americano “Aviso de Miranda” tende a sofrer uma atualização, afinal, na era dos emojis, só o que for dito, mas também encaminhado, poderá ser usado nos tribunais.

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1 https://fortune.com/2022/02/08/yat-labs-nft-emoji-crypto-investment/

https://home.unicode.org/emoji/about-emoji/

https://www.istoedinheiro.com.br/facebook-messenger-atualiza-sistema-de-emojis-e-de-reacoes/

https://blog.ericgoldman.org/archives/2022/01/2021-emoji-law-year-in-review.htm 

5 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil – Volume único, 8. ed. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p, 960.

https://pjeconsultapublica.tjdft.jus.br/consultapublica/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/listView.seam?ca=dbfa56356fb13b879db3d6949c2e829fd1723d75c007e6eb 

https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=15081891&cdForo=0

https://oglobo.globo.com/politica/tse-libera-emoji-de-vomito-em-campanha-tucana-contra-bolsonaro-23085380

https://cardozoaelj.com/2019/02/10/judge-israel-ruled-emoji-can-prove-intent-landlordtenant-case/

10 https://emojipedia.org/

11 https://edition.cnn.com/2019/07/08/tech/emoji-law/index.html

Mariana Amorim
Advogada formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com Master pela ESPM. Especialista em Direito Digital e integrante da Comissão de Estudos sobre Políticas e Mídias Sociais - IASP. Instagram: @mariana.amorim.digital

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