Migalhas de Peso

Meramente ou puramente? Até quando os jogos linguísticos servirão para distorcer a lei?

Já dizia o velho ditado latino in claris cessat interpretativo (tradução nossa: na clareza, não há interpretação).

16/5/2022

Quem acompanha os informativos do STJ deve ter reparado uma curiosidade nesse último (735), que saiu no dia 9/5/22. Estou aqui, como mero estudioso do direito civil e processo civil a falar do curioso destaque que transcrevo abaixo:

“Pode ser válida a estipulação que confira ao credor a possibilidade de exigir, "tão logo fosse de seu interesse", a transferência da propriedade de imóvel.”

Aqui convém uma explicação, qualquer cláusula que coloque como possibilidade de qualquer das partes o cumprimento ou descumprimento do contrato por simples “interesse”, sem qualquer consequência, é uma cláusula que deixa tal contrato como um todo sob o arbítrio do contratante. Não é à toa que nosso CC/02 foi incisivo ao vedar tal aberração:

“Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.” (destaque nosso)

Ora, já dizia o velho ditado latino in claris cessat interpretativo (tradução nossa: na clareza, não há interpretação). Tal máxima jurídica refere-se ao fato de que existem certas disposições que não permitem interpretações dissonantes, a despeito de muitas vezes nossos tribunais mostrarem o contrário (correta ou incorretamente).

Pois bem, voltemos ao tema. A esse tipo de cláusula contratual que deixa o contrato ao arbítrio de uma das partes convencionou-se chamá-la de potestativa (advindo claramente da palavra latina potestas – que pode significar algo como potência, um poder-fazer), uma vez que deriva apenas da vontade da parte. Da mera ou pura leitura do texto legal é fácil vislumbrar que o legislador de fato não quis permitir tal tipo de cláusula no direito brasileiro, uma vez que é o tipo de cláusula que acaba por brecar a seriedade do contrato.

Com efeito, se eu como contratante posso simplesmente decidir não cumprir o contrato, difícil falar que ele servirá de fato a alguma finalidade social que não o mero chiste. Mesmo olhando de outro lado, supondo que a parte beneficiada com a cláusula não fosse utilizá-la, seria uma quebra de equidade que fere tragicamente a paridade entre os contratantes, também abarcada pelo princípio da isonomia contratual.

De tudo o que foi dito, deve o leitor se perguntar: mas e o título do artigo? O que tem a ver o meramente e o puramente?

Calma leitor, para se comer a feijoada primeiro é necessário matar o porco. É nesse sentido que agora passo a transcrever a argumentação jurídica expendida pelo STJ para sustentar o destaque referido no Informativo. Vejamos:

“O art. 122 do CC/02 afirma ser ilícita a condição que sujeita a eficácia do negócio jurídico ao puro arbítrio de uma das partes, interditando como defesas, em suma, as condições puramente potestativas.

Uma primeira leitura desse dispositivo legal pode dar a entender que a sujeição da eficácia do negócio jurídico ao arbítrio de qualquer das partes será, sempre e em qualquer hipótese, suficiente para qualificar como ilícita a condição assim estabelecida.

No entanto, somente quando o próprio devedor se reserva o direito de caprichosamente descumprir a obrigação assumida é que sobressai, de fato, o arbítrio da parte como elemento exclusivo para subordinar a eficácia do ato/negócio.

Realmente o estabelecimento, em favor do devedor, de uma cláusula do tipo ‘se me aprouver’, ‘se eu quiser’, configura quase um gracejo, um chiste lançado pela parte com aptidão para afastar por completo a seriedade do negócio jurídico. Quem escuta uma proposição dessa espécie nem mesmo leva a sério o ajuste que se lhe apresenta, pois na verdade o proponente não se obrigou a nada.

A jurisprudência desta Corte parece seguir esse mesmo entendimento, afirmando que apenas as condições (puramente) potestativas estabelecidas em proveito do devedor devem ser consideradas defesas.

No caso, a estipulação assinalada mais se assemelha a termo incerto ou indeterminado do que, propriamente, a condição potestativa.

E mesmo admitindo tratar-se de condição, seria de rigor verificar que ela beneficiava ao credor e não ao devedor, não havendo falar, por isso, em falta de seriedade na proposta ou risco à estabilidade das relações jurídicas.

Ademais, foi estatuída em consideração a uma circunstância fática alheia à vontade das partes: o resultado de uma determinada ação judicial (usucapião), havendo, assim, interesse juridicamente relevante a justificar sua estipulação.

Desse modo a condição não teria natureza puramente potestativa, mas meramente potestativa, devendo, em consequência, ser considerada válida, até mesmo para efeito de impedir a fluência do prazo prescricional.” (destaque nosso) [REsp 1.990.221-SC, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 03/05/2022]

Do quanto exposto acima vê-se, puramente, um jogo de palavras pomposo. Por primeiro, a risível diferenciação entre credor e devedor, uma vez que, como todos que saem das faculdades de direito do país já deveriam saber, ambos contratantes são credores e devedores de forma recíproca, nas respectivas obrigações atinentes ao polo contratual em que estão posicionados. Exemplifico. No contrato de compra e venda, o comprador é credor da entrega da coisa e o vendedor é credor do dinheiro, ao passo que o comprador é devedor do dinheiro e o vendedor é devedor da entrega da coisa. Ou seja, a argumentação, nesse ponto, é anêmica.

O segundo ponto colocado foi a existência de uma circunstância “atrelada” (se é que pode-se dizer isso no caso concreto) para o exercício da cláusula potestativa. E mais uma vez aqui temos que discordar do quanto entendido no julgamento do recurso especial supracitado, pois a mera existência de elemento acidental ao negócio jurídico não desnatura a essência das cláusulas nele contidas. Ou seja, não é porque havia uma condição (subordinação eficacial a evento futuro e incerto) que a cláusula potestativa perdeu sua alma arbitrária.

Por fim, o jogo de palavras. Não adianta repetir mil vezes que uma cláusula é meramente potestativa, pois a potestas, como expressão da potência que é, afigura-se como contrária a gradações intrínsecas, não comportando a referida diferenciação de “puramente” ou “meramente” adotada pelo acórdão. Admitir o contrário é puramente negar a mera realidade que o que foi feito é distorcer a lei.

Paulo Schwartzman
Mestrando em Estudos Brasileiros - IEB-USP. Escritor e estudioso, foca-se na interpretação interdisciplinar dos fatos. Assessor de juiz no TJ/SP. Esp. em Direito Civil. Insta:@opauloschwartzman

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