1. Introdução
A tecnologia blockchain vem sendo cada vez mais apresentada como o novo paradigma para a sociedade contemporânea e principal representante da inovação, celeridade e confiabilidade nas novas modalidades de transações.
O termo se popularizou, principalmente, com a negociação de criptoativos, em especial o Bitcoin e, mais recentemente, de NFTs - not fungible tokens. Apesar do crescente interesse pelo tema, parte da população ainda vislumbra resistência à aplicabilidade da tecnologia blockchain em suas transações cotidianas.
Referida visão ocorre sobretudo em indivíduos que vinculam a blockchain apenas à imagem das criptomoedas em um contexto de grande volatilidade, baixa aceitabildiade e suposta insegurança jurídica, diante da atipicidade destes meios de transação.
Todavia, é necessário ressaltar que a utilidade da tecnologia blockchain vai muito além das transações de criptomoedas e pode ser utilizada justamente para garantir maior segurança na validade e eficácia dos negócios jurídicos.
Nesse contexto, tem-se os contratos inteligentes (smart contracts), que, por meio da criptografia, revelam-se como contratos autoexecutáveis e auditáveis, proporcionando maior credibilidade e previsibilidade aos contratantes.
Isto é, nos contratos inteligentes todas as condições entabuladas no negócio jurídico estão registradas na blockchain por meio de protocolos criptográficos automatizáveis. Na prática, essa condição revela diversos benefícios aos contratantes, conforme demonstrado a seguir.
2. Características e aplicabilidade dos contratos inteligentes
Embora os contratos inteligentes tenham encontrado sua viabilidade atualmente em razão da blockchain, sua primeira concepção remonta ao final da década de 90, tendo sido proposta por Nick Szabo nos seguintes termos:
A ideia básica por trás dos contratos inteligentes é que muitos tipos de cláusulas contratuais (como garantia, fiança, delineamento de direitos de propriedade, etc.) podem ser incorporados ao hardware e software com os quais lidamos, de forma que violar o contrato se torna mais oneroso (se desejado, eventualmente proibitiva) ao invasor. Um exemplo da vida real, que podemos considerar o ancestral primitivo dos contratos inteligentes, é a humilde máquina de venda automática. Dentro de uma quantidade limitada de perda potencial (a quantidade na caixa deve ser menor do que o custo de violação do mecanismo), a máquina pega moedas e por meio de um mecanismo simples, como um problema de ciência da computação de calouro no projeto com autômatos finitos, dispensar troco e produto de acordo com o preço exibido. A máquina automática é um contrato com o portador: qualquer pessoa com moedas pode participar da troca com o vendedor. O cofre e outros mecanismos de segurança protegem as moedas armazenadas e o conteúdo de invasores, o suficiente para permitir a implantação lucrativa de máquinas de venda automática em uma ampla variedade de áreas.
Os contratos inteligentes vão além da máquina de vendas ao propor a incorporação de contratos em todos os tipos de propriedades valiosas e controladas por meios digitais. Os Contratos Iinteligentes fazem referência a essa propriedade de uma forma dinâmica, muitas vezes aplicada de forma proativa, e fornecem uma observação e verificação muito melhor quando as medidas pró-ativas devem ser insuficientes (tradução livre)1.
Verifica-se que a ideia incipiente dos smarts contracts remonta à característica de sua automação e redução do risco de inadimplência. Embora não tenham sido concebidos especificamente no contexto da blockchain, esta tecnologia trouxe destaque à modalidade contratual, proporcionando todos os requisitos necessários para sua implementação.
Inicialmente, o registro da transação em um bloco sequencial (hash) torna a sequência imutável e auditável, dificultando a ocorrência de fraude após a assinatura ou tentativa de alteração unilateral de alguma das partes.
Posteriormente, como todas as condições do negócio jurídico registradas na blockchain por meio de protocolos automatizáveis, assim que concretizada uma situação prevista, as consequências do ato são automaticamente executadas pelo código registrado. Portanto, evitar o cumprimento do contrato é, senão impossível, um esforço muito mais oneroso e arriscado para uma das partes.
Nesse sentido, Filipi e Wight:
Como os contratos inteligentes são autônomos por natureza, as promessas memorizadas em um contrato inteligente são - por padrão - mais difíceis de rescindir do que aqueles memorizados em um contrato legal de linguagem natural. Como nenhuma parte individualmente controla um blockchain, pode não haver uma maneira de interromper a execução de um Contrato Inteligente após ele ter sido acionado pelas partes relevantes. Uma vez que as rodas de um Contrato Inteligente são colocadas em movimento, os termos incorporados no código serão executados e não podem ser interrompidos, a menos que as partes tenham incorporado uma lógica no Contrato Iinteligente para interromper a execução do programa (tradução livre)2.
Na prática, essa condição revela diversos benefícios aos contratantes, tanto na fase de formação, afastando a necessidade de registro em cartórios para atestar a integridade dos termos entabulados, quanto na fase de execução, dispensando muitas vezes a intervenção do Judiciário para o adimplemento.
Vislumbra-se sua utilização em diversos ramos, como um contrato de aluguel em que o valor da multa é transferida para a outra parte automaticamente assim que ocorrer o comando de rescição unilateral antecipada da outra parte.
Em um cenário onde os órgãos públicos passem a integrar com a cadeia criptográfica, o ato de compra e venda de um veículo já acarretaria o registro no órgão responsável assim que realizado o pagamento pelo comprador.
As hipóteses de utilização são incontáveis, mas, seja qual for o exemplo, resta claro que a implementação de smart contracts no contexto empresarial e consumerista contribuiria para a redução dos custos de contratação e o aumento da segurança jurídica nos negócios.
Todavia, a principal caracterísitica dos smarts contracts, a autoexecução, somente se torna possível quando da estipulação de obrigações determinadas, objetivas e condicionais, como representadas pela premissa lógica “Se x, então y”.
Necessário, portanto, que todas as condições sejam passíveis de identificação e execução por meio do protocolo programado. Caso contrário, restaria inviabilizada a autoexecução.
Os smarts contracts, portanto, podem ser analisados sob duas óticas: no campo da Ciência da Computação enquanto programa autoexecutável e no Direito, enquanto adequação às normas do ordenamento jurídico.
3. As repercussões jurídicas dos smart contracts
Sob a ótica jurídica, ainda que não haja legislação específica, os smarts contracts estão abrangidos pelas normas do Direito Civil e possuem respaldo, em última instância, na autonomia da vontade, fonte do direito que possibilita a criação de novos laços jurídicos pelos contratantes.
Nesse sentido, afirma Maria Helena Diniz, o contrato é “o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial”3.
Isto é, o alicerce da caracterização do contrato é a manifestação de vontade em acordo bilateral, de modo que não há conflito para a adoção de novas tecnologias, desde que de acordo com as normas jurídicas.
O avanço tecnológico já havia impactado o Direito Contratual com a popularização da internet e o surgimento dos contratos eletrônicos, de modo que a experiência jurídica já absorveu a utilização e validade de outras formas de negócio jurídico, além das tradicionais.
Nesse ponto, ressalta-se que todos os negócios jurídicos estão sujeitos ao regramento geral do ordenamento jurídico e, em regra, devem atender aos pressupostos de existência, validade e eficácia, conforme leciona Tartuce, remontando à Escada Ponteana:
Negócio jurídico, na visão de Pontes de Miranda, é dividido em três planos: existência, validade e eficácia. No plano da existência estão os pressupostos para um negócio jurídico, ou seja, os seus elementos mínimos, seus pressupostos fáticos, enquadrados dentro dos elementos essenciais do negócio jurídico. Nesse plano há apenas substantivos sem adjetivos, ou seja, sem qualquer qualificação (elementos que formam o suporte fático). Esses substantivos são: agente, vontade, objeto e forma. Não havendo algum desses elementos, o negócio jurídico é inexistente, conforme defendem os doutrinadores que seguem à risca a doutrina de Pontes de Miranda[...]. No segundo plano, o da validade, as palavras indicadas ganham qualificações, ou seja, os substantivos recebem adjetivos, a saber: agente capaz, vontade livre, sem vícios; objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita e não defesa em lei [...]. Por fim, no plano da eficácia estão os elementos relacionados com as consequências do negócio jurídico, ou seja, com a suspensão e a resolução de direitos e deveres relativos ao contrato, caso da condição, do termo, do encargo, das regras relacionadas com o inadimplemento, dos juros, da multa ou cláusula penal, das perdas e danos, da resolução, da resilição, do registro imobiliário e da tradição (em regra). De outra forma, nesse plano estão as questões relativas às consequências e aos efeitos gerados pelo negócio em relação às partes e em relação a terceiros.4
Portanto, os smart contracts também devem atender a todos os pressupostos indicados, diferindo apenas na forma da comprovação e manifestação das vontades.
No que se refere à forma, inexistindo diploma específico sobre o tema, todo negócio jurídico pode ser celebrado por meio dos smart contracts, exceto aqueles que a lei já determina outra forma específica (art. 104, incisco II, do Código Civil).
Os demais pressupostos (agentes, objeto, manifestação de vontade) também podem e devem ser verificados, assim como ocorre nas outras modalidades de contratos eletrônicos já difundidos na sociedade.
Apesar da perspectiva de maior segurança jurídica e redução de custo com a adoção dos smarts contracts, com a tecnologia também surgem novos desafios ao ordenamento.
Inicialmente, ao contrário dos contratos tradicionais, os contratos inteligentes demandam não apenas um amplo conhecimento jurídico, mas também o domínio da programação.
Assim, deverá haver a comunhão de esforços entre os profissionais das ciências do Direito e da computação, garantindo que sejam estipuladas cláusulas juridicamente válidas na forma de códigos auditáveis e autoexecutáveis.
Ademais, como fato jurídico, os contratos jurídicos não estão imunes à intervenção judicial, podendo ser discutidos sempre que caracterizada violação a alguma das partes (art. 5º, inciso XXXV, da CF/88).
Em razão da autoexecutoriedade, possivelmente eventuais demandas estariam atreladas de forma majoritária ao escopo anulatório ou reparatório do que com a finalidade de execução e satisfação do cumprimento.
Uma celeuma nesse contexto seria a hipótese de eventual contrato inválido, por vício do consentimento, já ter gerado seus efeitos em razão da automatização dos protocolos criptográficos. Assim, o Judiciário se revela como o meio para a parte prejudicada buscar a anulação e a indenização cabível.
Igualmente, eventual erro na programação dos protocolos automatizados que não foi notado a tempo pelas partes contratantes pode acarretar a intervenção do Judiciário para reparação dos danos e responsabilização dos agentes causadores.
Ademais, em razão da linguagem condicional dos protocolos criptográficos, o Judiciário seguiria como abrigo para execução forçada dos contratos em hipóteses em que a parte devedora suscita, por exemplo, a teoria do adimplemento substancial para resguardar seu interesse na manutenação do negócio jurídico.
Portanto, os contratos inteligentes despontam como meios alternativos para a efetividade dos negócios jurídicos em determinadas hipóteses, porém não se afastam de todo o regramento jurídico atual e podem vir a exigir a intervenção do Judiciário.
Assim, não é necessária lei específica para que eventuais contratos inteligentes sejam juridicamente válidos. Todavia, para maior popularização e adoção da tecnologia é relevante que ocorra a evolução legislativa para o tema.
Sobretudo em um cenário que diversas plataformas podem coexistir no mercado ofertando os serviços para a cadeia criptográfica, eventual legislação com regramentos de padronização mínima e integração com orgãos públicos possibilitaria maior difusão e aplicação da ferramenta.
Ressalta-se, contudo, que a referida regulamentação deve se atentar apenas ao estabelecimento dos parâmetros mínimos sobre o tema, sob risco de inviabilizar a aplicação da tecnologia e afastar a concretização de seu principal objetivo5.
4. Conclusão
Inconteste que a criptografia blockchain seguirá causando relevantes mudanças na sociedade e, por conseguinte, acarretando um grande impacto no campo jurídico, principalmente na seara contratual.
Nesse contexto, os smart contracts não são apenas instrumentos contratuais capazes de criar e comprovar os laços obrigacionais, mas também o meio de garantir seu próprio cumprimento.
O tema reforça a necessidade de profissionais multidisciplinares, garantindo o domínio dos conhecimentos jurídicos necessários para a validade do negócio, conjuntamente com a programação dos protocolos na blockchain.
Os contratos inteligentes, via de regra, são passíveis de atender todos os requisitos legais do ordenamento jurídico, ainda que ausente legislação específica do tema. Todavia, para ocupar de vez o espaço no cotidiano, é relevante que o tema esteja na pauta do Legislativo, com o estabelecimento de regramentos mínimos e integração da tecnologia com os órgãos públicos.
Embora revelem-se efetivos para casos com paridade dos contratantes, obrigações objetivas e bem delineadas, é necessário compreender que podem acarretar desafios ao Judiciário em algumas hipóteses na eventualidade de cláusulas dúbias ou abusivas e erros no protocolo executável.
De toda forma, resta claro que os contratos inteligentes serão importantes instrumentos para a redução dos custos de transação e segurança jurídica dos negócios, contribuindo de forma relevante para o desenvolvimento econômico da sociedade.
1 No original: The basic idea behind smart contracts is that many kinds of contractual clauses (such as collateral, bonding, delineation of property rights, etc.) can be embedded in the hardware and software we deal with, in such a way as to make breach of contract expensive (if desired, sometimes prohibitively so) for the breacher. A canonical real-life example, which we might consider to be the primitive ancestor of smart contracts, is the humble vending machine. Within a limited amount of potential loss (the amount in the till should be less than the cost of breaching the mechanism), the machine takes in coins, and via a simple mechanism, which makes a freshman computer science problem in design with finite automata, dispense change and product according to the displayed price. The vending machine is a contract with bearer: anybody with coins can participate in an exchange with the vendor. The lockbox and other security mechanisms protect the stored coins and contents from attackers, sufficiently to allow profitable deployment of vending machines in a wide variety of areas.
smart contracts go beyond the vending machine in proposing to embed contracts in all sorts of property that is valuable and controlled by digital means. smart contracts reference that property in a dynamic, often proactively enforced form, and provide much better observation and verification where proactive measures must fall short.
SZABO, Nick. smart contracts: Formalizing and Securing Relationships on Public Networks. First Monday, Volume 2, Number 9, 1997. Disponível em: https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/download/548/469. Acesso em 10/10/2021.
2 FILIPPI, Primavera de; WRIGHT, Aaron. Blockchain and the Law : The Rule of Code, Harvard University Press, 2018. ProQuest Ebook Central. Pág 77.
3 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 15ª Ed. 2010. São Paulo: Saraiva. p. 370
4 TARTUCE, Flávio. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. 10ª ed. São Paulo: Editora Método, 2015, p. 15.
5 DIMITROPOULOS, Georgios. The Law of Blockchain, 95 Wash. L. Rev. 1117 (2020). Disponível em: https://digitalcommons.law.uw.edu/wlr/vol95/iss3/3 Acesso em 10/10/2021.