Migalhas de Peso

Processo e tecnologia: acesso à justiça

É importante mencionar que o processo eletrônico somente alcançará o acesso à justiça pleno quando foram realizadas medidas concretas que garantam a inclusão digital a todos.

13/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Com a tecnologia, o mundo ingressou em tempos de agilidade, rapidez e instantaneidade, a qual é definida, por Zygmunt Bauman1, como sendo a era da modernidade líquida.

E o processo civil não deixou de ser atingido por essa fluidez.

Em 2006, houve a criação da lei do processo eletrônico (lei 11.419/06) e nesta direção, em 2015, o legislador, com o advento do Novo Código de Processo Civil, acrescentou algumas previsões de práticas de atos processuais eletrônicos, tais como: artigos 193 a 199; 236, parágrafo 4º; e 385, parágrafo 3º.

Por sua vez, em 2014, houve a criação do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14), no qual restaram estabelecidos princípios, garantias, direitos e deveres para certificar a navegação segura das pessoas na rede mundial de computadores (internet).

Alguns anos mais à frente (entre 2016 e 2021), foram criados também outros meios tecnológicos que impactaram o processo civil, tais como: plataformas de resoluções alternativas de disputas2, softwares jurídicos3; plenários virtuais4; arbitragens onlines, robôs5, etc.

Com essa revolução tecnológica, surge-se o seguinte questionamento: como o avanço tecnológico gerou mudanças no processo judicial e na noção de acesso à justiça?

A tecnologia, representada, primordialmente, pelo acesso à internet, trouxe novos elementos à sociedade que afetaram a dinâmica dos direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988.

Isto porque, através da internet, houve o progresso das capacidades humanas.

Como mencionado por Geovana Maria Cartaxo de Arruda Feire e Tainah Simões Sales6, a internet potencializou o acesso à educação, às informações e a comunicações entre as pessoas, de tal forma que ampliou o exercício da cidadania.

Este posicionamento também é corroborado por Narsizio Calicchio Gonçalves7, ao mencionar que estes impactos causados pela internet delineiam certas caraterísticas de fundamentabilidade ao direito do acesso à internet.

Neste sentido, verifica-se que, inclusive, o legislador, na redação do artigo 7º, caput, do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14)8, reconheceu que o acesso à internet é um direito fundamental, ao explicitar que “é essencial ao exercício da cidadania”.

Deste modo, tendo em vista que a internet é uma ferramenta potencializadora dos exercícios da cidadania, é possível se deduzir que o acesso à justiça também foi ampliou. Tal constatação se infere principalmente a partir da lei do processo eletrônico (lei 11.419/06), a qual, em sínteses, dispõe sobre a informatização do processo judicial.

E com isto, consequentemente, o alcance de pessoas que podem acessar à justiça aumentou, pois, se comparado com o processo físico, certas limitações, como, por exemplo, distância e deslocamento, foram eliminadas através do acesso à internet/processo eletrônico.

Neste ponto, destaca-se ensinamento consonante de Alexandre Henrique Tavares Saldanha e Pablo Diego Veras Medeiros9.

Contudo, isto não significa que todos os problemas relacionados ao acesso à justiça e/ou ao Poder Judiciário foram resolvidos.

Com a dinâmica da internet e do processo eletrônico, houve o surgimento de novos desafios e obstáculos que afrontam a própria noção de processo e de acesso à justiça, haja vista as instabilidades de servidores/sistemas eletrônicos, bem como a impossibilidade de acesso à internet e ausência de conhecimentos básicos para interagir com os meios eletrônicos.

De acordo com o mencionado por Alexandre Henrique Tavares Saldanha e Pablo Diego Veras Medeiros10, a internet e o processo eletrônico resolveram as questões relativas ao acesso à justiça do século XX, mas, àquelas correspondentes ao século XXI, ainda estão longe de serem solucionadas.

Apesar do processo eletrônico possuir problemas a serem vencidos, é inegável que a informatização do processo ampliou o acesso à justiça, haja vista que os contratempos do processo físico, tais como: morosidade na gestão dos processos, acúmulo de processos, logística de espaço e volumes, manuseio e perda de documentos, foram superados. Além disso, as barreiras físicas, como: deslocamento, distância, também foram suplantadas.

No entanto, é importante mencionar que o processo eletrônico somente alcançará o acesso à justiça pleno quando foram realizadas medidas concretas que garantam a inclusão digital a todos, através, principalmente, da implementação de programas educacionais e de infraestrutura mínima para assegurar o acesso à internet. Isto porque, caso isto não seja feito, apenas uma parcela da população terá acesso ao processo eletrônico e, consequentemente, à justiça.

Diante dessa análise, verifica-se que, a partir da informatização do processo, a noção de acesso à justiça e do próprio processo sofreram alterações, uma vez que certas limitações foram superadas.

Todavia, para que o processo eletrônico possa alcançar o pleno acesso à justiça, é necessário que alguns obstáculos sejam vencidos, como por exemplo: instabilidades de servidores/sistemas, impossibilidade de acesso à internet e ausência de conhecimentos básicos para interagir com os meios eletrônicos. Caso tais desafios não sejam subjugados, a informatização do processo apenas prometerá garantias na letra fria da legal e, não, concretizará, na realidade prática, o pleno acesso à justiça.

____________

1 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. “Os tempos são ‘líquidos’ porque tudo muda tão rapidamente. Nada é feito para durar, para ser ‘sólido’.”

2 Cita-se, por exemplo, MODRIA, ferramenta desenvolvida dentro do e-Bay e do Paypal, que permite a customização para cada conflito; JUSTTO; os sites do www.semprocesso.com.br/ e www.consumidor.gov.br/pages/principal/?1634598344410.

3 Cita-se, por exemplo, Astrea; TOTVS; Jusbrasil PRO; Contraktor; Escritório Online Jusbrasil etc.

4 Cita-se, por exemplo, os julgamentos virtuais do STF e do STJ.

5 Cita-se, por exemplo, os robôs utilizados pelo Tribunal de Contas da União: ALICE (Análise de Licitações e Editais); SOFIA (Sistema de Orientação sobre Fatos e Indícios para o Sistema de Orientação sobre Fatos e Indícios para o Auditor); MONICA (Monitoramento Integrado para Controle de Aquisições); Dra. Luzia (criação da primeira a robô-advogada do Brasil, em parceria da startup LegalLabs com a Procuradoria-Geral do Distrito Federal).

6 FREIRE, Geovana Maria Cartaxo de Arruda. SALES, Tainah Simões. A inclusão digital como direito fundamental e instrumento para concretização do exercício democrático. In: Encontro Nacional do CONPEDI, 20., 2011, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte, 2011, p. 4433-4445.

7 GONÇALVES. Narsizio Calicchio. O acesso à internet como Direito Fundamental. Disponível em: http://rdu.unicesumar.edu.br/handle/123456789/5134. Acesso em 21/10/2021. “Assim, a internet e o acesso a ela, trazem a característica de alavancar a promoção e o progresso das capacidades humanas (informação, educação, cidadania etc), de modo que, deve-se observar o seu status de direito fundamental, pois essa ferramenta está intimamente relacionada com o princípio da dignidade humana, e, a partir disso, poderia exigir-se do Estado a garantia desse direito. Além de que, o uso desse instrumento, reafirma a eficácia dos direitos fundamentais presentes nas dimensões citadas no tópico anterior, como a liberdade, a educação, a cidadania, à comunicação, a informação, a democracia, e o pluralismo.”

8 Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:

9 SALDANHA, Alexandre Henrique Tavares; MEDEIROS, Pablo Diego Veras. Processo judicial eletrônico e inclusão digital para acesso à justiça na sociedade da informação. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, v. 9, n. 90, p. 32-47, jul. 2020. “Assim chega-se justamente na questão do acesso à justiça na sociedade da informação, pois, a partir do momento em que o processo judicial se torna digital, o acesso físico e territorial ao poder judiciário deixa de ser uma barreira”.

10 Ibidem. “Em outros termos, o acesso à justiça em tempos de acesso pelos microcomputadores resolve problemas do século XX, mas enfrenta problemas do século XXI. Um destes desafios, isto pode ser dito, está no amplo domínio das técnicas necessárias para uso das plataformas do judiciário, pois nem todos os que precisam da tutela jurisdicional de seus interesses jurídicos possui o conhecimento informático necessário para interação com o processo judicial em ambiente digital, ainda que para isto não seja necessário vasto domínio técnico. Ou seja, problemas que envolvem educação informática e difusão social das máquinas e demais tecnologias hábeis desafiam a satisfação do acesso à justiça uma vez inserido no contexto da cibercultura. Fato este que reflete no conceito de, ou na compreensão do que seja, outro direito fundamental, inclusão digital”.

Gabriella Viezzer Molina
Advogada atuante no Direito Administrativo, especialista em causas envolvendo servidores públicos estaduais. Pós-graduanda em Processo Civil pela Fundação Getúlio Vargas. Advogada do escritório Advocacia Sandoval Filho.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Afinal, quando serão pagos os precatórios Federais em 2025?

19/12/2024

Decisão importante do TST sobre a responsabilidade de sócios em S.A. de capital fechado

20/12/2024

Planejamento sucessório e holding patrimonial: Cláusulas restritivas societárias

20/12/2024

As perspectivas para o agronegócio brasileiro em 2025

20/12/2024

A sua empresa monitora todos os gatilhos e lança as informações dos processos trabalhistas no eSocial?

20/12/2024