A Lei de Recuperação Judicial e Falência, ora promulgada em 2005, trouxe grande avanço ao tema, vez que deixou de lado o entendimento que a sociedade empresária em estado de insolvência teria de ser liquidada e passou a enfatizar a função social desta, pelo que, assim, o citado diploma legal objetiva preservar o desenvolvimento da atividade econômica através da recuperação judicial, nas palavras de Sérgio Campinho (2015, p. 128, apud Lima, 2022):
O instituto da recuperação vem desenhado justamente com o objetivo de promover a viabilização da superação desse estado de crise, motivado por um interesse na preservação da empresa desenvolvida pelo devedor. Enfatize-se a figura da empresa sob a ótica de uma unidade econômica que interessa manter, como um centro de equilíbrio econômico-social.
É, reconhecidamente, fonte produtora de bens, serviços, empregos e tributos que garantem o desenvolvimento econômico e social de um país. A sua manutenção consiste em conservar o “ativo social” por ela gerado. A empresa não interessa apenas ao seu titular, o empresário, mas a diversos outros atores do palco econômico, como os trabalhadores, investidores, fornecedores, instituições de crédito, ao Estado, e, em suma, aos agentes econômicos em geral. Por isso é que a solução para a crise da empresa passa por um estágio de equilíbrio dos interesses públicos, coletivos e privados que nela convivem.1
Embora a lei falimentar tenha abarcado a proteção da função social do agente econômico, limitou seu alcance ao empresário e a sociedade empresária, deixando de acolher as OSCS – Organizações da Sociedade Civil, pertencentes ao terceiro setor, e, na contramão, não a rechaçou, trazendo a seguinte previsão:
“Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.
Art. 2º Esta Lei não se aplica a:
I – empresa pública e sociedade de economia mista;
II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.(g.n.)”
Neste ponto, importa destacar que as OSCs desempenham importantíssimo papel na sociedade Brasileira, se mostrando como verdadeiro agente econômico ao gerar emprego/renda, prestar serviços, consumir e fornecer produtos, entre outros, diferenciando-se de uma sociedade empresária apenas por não distribuir lucros, vez que todo o seu rendimento é revertido para sua própria manutenção e desenvolvimento de ações e projetos de cunho social beneficente.
Como se vê, as OSCs foram “esquecidas” pela lei 11.101/05, pois a lei não as contempla e não as exclui, pelo que, pode-se afirmar que ante a Lei de Falência e a Recuperação Judicial as OSCs estão num limbo jurídico.
Por tal razão, desde 2005, inúmeros foram os debates e embates em torno do tema, tendo algumas OSCs alcançado o deferimento da recuperação judicial, dentre as quais, se destacaram: Universidade de Cruz Alta; Hospital Casa de Portugal; Rede Ulbra de Educação; Fundação Fucapi; Hospital Evangélico da Bahia; e a Universidade Cândido Mendes.
Ainda assim, os entraves que permeiam a questão permanecem, porém, acredita-se que o fim se aproxima, vez que, em 15/3/22, através do pedido de TP – Tutela Provisória 3.654/RS, formulado pelo grupo Educação Metodista, a 4ª turma do STJ decidiu pela legitimidade ativa das associações civis sem fins lucrativos para requerer recuperação judicial, decisão publicada em 8/4/22.
A decisão proferida na TP 3.654/RS, indubitavelmente traz maior estabilidade jurídica e fundamenta novos pedidos de recuperação judicial provenientes das pessoas jurídicas pertencentes ao 3º setor, entretanto, é imperioso destacar que o tema retornará ao debate na Corte Superior, pois trata-se de uma decisão liminar a qual terá sua matéria discutida com maior profundidade posteriormente na análise do recurso especial interposto pelo grupo educacional.
Outrossim, insta salientar, que o voto vencedor do ministro Luis Felipe Salomão, fora divergente ao voto do relator ministro Raul Araújo, o qual negou provimento ao pedido, dos votos sobressaem os seguintes trechos:
Voto vencido:
(...) "na espécie, contudo, forçoso reconhecer que não se verifica, primo oculi, o fumus boni iuris reconhecido na decisão proferida pela Vice-Presidência do Tribunal de origem", já que"o deferimento da recuperação judicial dos agravantes não encontra, em princípio, respaldo na Lei 11.101/2005. Efetivamente, a teor dos arts. 1º e 2º da Lei 11.101/2005, os institutos da recuperação judicial e extrajudicial e da falência aplicam-se apenas a empresários e sociedades empresárias, havendo inclusive, em relação às últimas, ressalvas expressas". Isso porque," no caso dos autos, conforme consignado no v. acórdão estadual, objeto do recurso especial em comento, as agravantes, constituídas na forma de associações civis sem fins lucrativos, não detêm legitimidade para requerer recuperação judicial"(...)
Voto vencedor:
(...)
Deveras, apesar de não se enquadrarem literalmente nos conceitos de empresário e sociedade empresária do art. 1º da Lei n. 11.101/2005 para fins de recuperação judicial, as associações civis também não estão inseridas no rol dos agentes econômicos excluídos de sua sujeição (LREF, art. 2º).(...) Em diversas circunstâncias, as associações civis sem fins lucrativos acabam se estruturando como verdadeiras empresas do ponto de vista econômico, em que, apesar de não distribuírem o lucro entre os sócios, exercem atividade econômica organizada para a produção e/ou a circulação de bens ou serviços, empenhando-se em obter superávit financeiro e crescimento patrimonial a ser revertido em prol da própria entidade e da mantença de todas as benesses sociais às quais está vinculada.(...) Na sequência, a outra questão que se impõe é: a LREF não seria aplicável às pessoas jurídicas que, apesar de não terem o fim lucrativo (espécie), teriam finalidade econômica (gênero)? Tal indagação surge justamente porque as associações civis podem ter como desiderato a atividade econômica, ainda que não realizem a distribuição de lucros entre os associados.
Realmente, muitas associações civis, apesar de não serem sociedade empresária propriamente dita, possuem imenso relevo econômico e social, seja em razão de seu objeto, seja pelo desempenho de atividades perfazendo direitos sociais e fundamentais em que muitas vezes o Estado é omisso e ineficiente, criando empregos, tributos, renda e benefícios econômicos e sociais. (...) É justamente em razão de sua relevância econômica e social que se tem autorizado a recuperação judicial de diversas associações civis sem fins lucrativos e com fins econômicos, garantindo a manutenção da fonte produtiva, dos empregos, da renda, o pagamento de tributos e todos os benefícios sociais e econômicos decorrentes de sua exploração. (...)
(STJ - AgInt no TP: 3654 RS 2021/0330175-0, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 15/03/2022, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/04/2022)
Denota-se que a Corte Superior ao decidir pela possibilidade de uma OSC requerer recuperação judicial acatou o entendimento do voto divergente, o qual apresentou importantíssima discussão sobre o tema, reconhecendo a essencialidade das OSCs no contexto social e econômico, na medida em que elas atuam como verdadeiras empresas sob o ponto de vista econômico, vez que, de igual forma, também atuam em prol da criação de empregos, além de gerarem incomensuráveis benefícios à Sociedade, como, por exemplo, a erradicação da pobreza.
É notório que a acertada decisão do STJ está em verdadeira consonância com o objetivo principal da Lei de Recuperação Judicial, que procura preservar, não apenas a pessoa jurídica, mas, também, o estímulo ao desenvolvimento da atividade econômica e a função social da recuperanda, conforme dispões o art. 47, da lei 11.101/05:
A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Neste ponto, não há nenhum exagero em enaltecer que a OSC tem por objetivo o desenvolvimento de atividades que beneficiem a população carente, portanto, a perpetuação de sua atividade é de extrema relevância, seja sob o aspecto econômico, seja sob o aspecto social, visto que sua função social excede aquela abarcada pela legislação, pois vai além do fomento da economia local.
Dessa forma, tem-se por certo que a TP 3.654 – RS representa um marco nesse debate, tendo, as reflexões trazidas pelo ministro Luis Felipe Salomão pavimentado extenso caminho na condução do entendimento de que as associações civis sem fins lucrativos, embora, não estejam expressamente mencionadas na lei 11.101/05, atendem aos requisitos trazidos pelo instituto da recuperação judicial, e, portanto, gozam de legitimidade ativa para requerê-la.
Assomado a essa decisão do sr. magistrado, dois outros conceitos podem ser perfeitamente aplicados ao caso epigrafado, quais sejam, o Princípio da Legalidade expresso no inciso II do art. 5º da CF/88, o qual aduz que aos particulares é permitido fazer tudo aquilo que não a lei não veda, bem como a possibilidade de utilização da analogia e dos princípios gerais do direito nos casos em que a lei for omissa, ora previsto no art. 4º da LICC.
Com base no acima exposto, a conclusão mais prudente é pela existência de fortes indícios de que as decisões judiciais que estão por vir seguirão esse entendimento, ante os fortes fundamentos jurídicos existentes, capitaneado pela nossa Carta Magna, por legislações infraconstitucionais e entendimentos jurisprudenciais e doutrinários.
1 LIMA, Carla Pinheiro. Recuperação judicial para os entes do terceiro setor Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 11 fev 2022, 04:28. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58076/recuperao-judicial-para-os-entes-do-terceiro-setor. Acesso em: 10 abr 2022.