Migalhas de Peso

Indícios e presunções no âmbito do CPC

As presunções e os indícios, tradicionais em nosso sistema jurídico, devem agora ser analisadas no contexto do ainda jovem CPC 2015.

11/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução

Comuns no campo penal, as presunções e os indícios possuem evidente espaço de aplicação no processo civil, muito embora com matizes diferenciadas, dada a natureza diversa entre dos dois campos de aplicação mencionados (penal e civil).

O estudo dos indícios e presunções ad hominem (ou comuns) no processo civil são escassos. Uma possível resposta a essa situação seria a resistência em se admitir elementos de natureza subjetiva para auxiliar a formação de convicção do julgador num processo concebido para ser estritamente objetivo e formal.

Liebman, ao conceituar o ato de “julgar” diz: “consiste em valorar determinado fato ocorrido no passado, valoração esta feita com base no direito vigente, determinando, como consequência, a norma concreta que regerá o caso”1, ficando claro essa busca por exatidão e de um racionalismo até cartesiano no processo civil.

Com o tempo, essa pretensão de transformar o direito em mais uma ciência “dura” mostrou pontos de fadiga e incompletude. O juiz “bouche de la loi”, neutro, asséptico, cedeu espaço a uma atuação mais realística desse mesmo juiz frente ao caso submetido a sua avaliação. Nascia, assim, a possibilidade de introduzir elementos subjetivos num sistema objetivo e, neste contexto, se insere este estudo.

1. A prova no processo civil

A ideia do ônus probatório foi legada ao direito por Roma. E a estrutura segundo a qual toca ao autor provar suas alegações e ao réu trazer elementos suficientes para derruir as alegações contra ele endereçadas, e via de consequência desconstituir as provas afetas a tais alegações, vêm dispostas em vários ditos latinos.

Actore non probant, reus absolvitur (não provando o autor, é absolvido o réu); probatio incumbit qui dicit, non qui negat (a prova incumbe a quem alega e não a quem nega); in excipiendo reus fit actor (apresentando exceção, o réu se torna autor); negativa non sunt probanda (fatos negativos não demandam prova); alegare et non provare, alegare nihil, paria sunt (alegar e não provar é o mesmo que não alegar), são alguns exemplos dessa estrutura, ela própria sujeita a certas ponderações.2

Em fins da Idade Média, a chamada “busca da verdade” era vista com extrema parcimônia, admitindo-se ser o resultado dessa busca a obtenção da verdade provável, calçada na “patologia da argumentação”, evitando-se uma discussão “distante da confiança e do espírito de lealdade dos participantes da controvérsia”.3

Na Idade Moderna, adota-se um modelo mais fechado, restrito, racionalista, concebendo-se o juiz como alguém apto a obter a verdade absoluta4. A prova também se submete a este tipo de concepção e “passa a ser entendida como um instrumento normativo, cunhado através do conhecimento ‘científico’ da verdade dos fatos relevantes para a decisão”.5

A prática processual demonstrou o excessivo idealismo contido na pretensão de se obter em juízo a verdade absoluta, a ser, assim, revelada pelo julgador. E, neste novo contexto, a prova passa a constituir “um meio retórico, indispensável ao debate jurídico (...) e o objetivo não é a reconstrução do fato, mas o convencimento dos demais sujeitos processuais sobre ele”6. Para esta concepção mais realista do processo e igualmente mais adequada à sociedade contemporânea, os indícios e as presunções parecem ter um espaço até mesmo natural na dinâmica probatória.

2. Indícios, presunções e ficções no direito

Em âmbito processual, é bastante pacífico que a atividade jurisdicional é fundamentalmente pragmática, com foco claro na obtenção de uma solução aos problemas apresentados formalmente em juízo7. Destarte, o indício, a presunção e até as ficções legais devem ser vistos nesta quadra interpretativa acima destacada.

O indício sempre foi elemento polêmico no campo probatório, tanto na esfera civil como penal, muito embora nesta última seja um elemento importante na análise da conduta do investigado/réu. As restrições, contudo, são claras. O Código Penal de 1830, e.g., taxativamente previa que nenhuma presunção “por mais vehemente que seja, dará motivo para imposição de pena”. Os indícios, na atualidade, seguem inspirando cautela. Sérgio Cruz Arenhart8 cita julgado expressivo neste sentido:

Toda e qualquer condenação criminal há de fazer-se alicerçada em prova robusta. Indícios e o fato de se ouvir dizer que o acusado seria um traficante de drogas não respaldam pronunciamento judicial condenatório, o mesmo devendo ser dito em relação a depoimentos colhidos na fase policial e não confirmados em juízo. (...)” (STF, 2a Turma. HC 77.987/MG, rel. Min. Marco Aurélio. DJU 10.09.99, p. 2).

As presunções podem ser legais ou judiciais. As primeiras se voltam a ficções lógicas criadas pelo legislador para proteger certos interesses/direitos. Veja-se o exemplo da comoriência (art. 8º, CC/02): havendo dificuldade concreta em se determinar o momento da morte de duas ou mais pessoas envolvidas num mesmo evento, presume-se pelo falecimento de todas no mesmo instante. Também o disposto no art. 1.597, I, CC, presumindo-se como filhos concebidos na constância do casamento aqueles nascidos no período de pelo menos 180 dias após o estabelecimento da convivência conjugal.

O atual CPC trata das presunções legais no art. 334, IV, admitindo-as como fatos carentes de comprovação. Muito embora redundante tal previsão, remanesce a necessidade de quem as invoca comprovar não o fato em si, presumido, mas o amoldamento do fato com a previsão legal.9

Se a presunção supõe uma realidade, baseada num juízo de probabilidade razoável e obtido por um raciocínio lógico, a ficção cria uma realidade assumidamente não verdadeira, porém tomada como se o fosse. Exemplo clássico é o do não comparecimento da parte para depor, atraindo, assim, a confissão dos fatos contra ela alegados (art. 343, § 1°). A lei até fala em presunção, mas a doutrina é uníssona em tratar a situação como uma ficção, daí a expressão “confissão ficta”.

Os indícios, por sua vez, se aproximam das presunções ad hominem, aquelas em que o juiz parte de fatos conhecidos para comprovar um fato desconhecido. No CPC de 1973, o art. 335 dispunhas sobre “regras de experiência”, muito embora seja pacífico não haver na lei processual revogada expressa previsão para o instituto.

Carlos Alberto Álvaro de Oliveira exemplifica seu cabimento, afirmando que a “pensão que o investigado dá ao pretenso filho faz presumir a paternidade”.10 O indício é um fato conhecido, contudo não cabalmente provado. Diz-se cabal, no caso, para se referir a fatos comprovados pelos meios clássicos: prova oral, documental ou pericial. Indício, assim, não é prova, mas tem força probante e pode levar à comprovação de um fato11:

Pode-se definir o indício como sendo um fato cuja certeza depende de uma prova, para demonstrar que seja verdadeiro. No entanto, uma sucessão de indícios, todos na mesma direção, pode levar ao julgador a convicção da ocorrência de um fato como verdadeiro. Muitas vezes, um indício é o ponto de partida para novas investigações de forma a concluir que aquele é certo, seguro, confiável.

Por fim, se o julgador for se basear em apenas um indício para provar um fato, e não há óbice formal a tanto, este indício deve ser suficientemente convincente, exibindo valor probante evidente e até mesmo “forte”.

3. Provas, presunções, indícios e simplificação procedimental no NCPC

De início, havia quem duvidasse do caráter inovador da lei processual civil em comento12. Nada obstante, hoje não há mais dúvida: é conceitual e substancialmente inovadora a lei processual civil vigente. Em seus termos, o poder Judiciário deve ser eficiente e o processo judicial deve perseguir essa mesma meta. A esse respeito pode-se concluir pela efetiva outorga de um poder diretivo processual mais amplo, profundo e ao mesmo tempo flexível ao juiz na nova lei ora em debate.

No capítulo das provas (XII), o antes observado se confirma: há uma busca no NCPC pelo afastamento de medidas formais, com a simplificação e sincretização de procedimentos. O art. 369 adotou uma redação mais ampla e livre, admitindo meios de prova “não especificados neste Código”, desde que “moralmente legítimos”.

O art. 371 afasta uma formalidade conceitual antes existente quanto a quem teria produzido a prova. Agora, a prova pertence ao processo, à instrução processual, e não à parte13. A prova emprestada foi expressamente positivada (art. 372) e o ônus da prova pode não apenas ser alterado (art. 373, § 1°), como também vir a ser objeto de “convenção das partes” (art. 373, § 3°). E o art. 375 expressamente trata dos indícios e das presunções. Segue:

Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.

A expressão “o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece” é justamente a positivação das presunções ad hominem ao processo civil. Antes aplicada por influxos doutrinários e jurisprudenciais, agora estão positivadas, com o peso inerente a tal condição.

Há clara relação harmônica entre o acima comentado e o teor do art. 386 do CPC. Agora, o juiz avaliará a conduta da parte que “deixar de responder ao que lhe for perguntado ou empregar evasivas”, podendo fazer constar na sentença “se houve recusa de depor”, algo potencialmente autorizador de aplicação da pena de confesso.

Mais uma vez estamos no campo de presunções comuns, de aspectos subjetivos, mas perfeitamente identificáveis, no ofício judicante. O juiz deverá avaliar, e levar em conta, uma conduta omissiva, ou simplesmente evasiva, para fins de formar seu convencimento e mesmo aquilatar a conduta da parte. Não fornece a lei os elementos objetivos necessários a tal avaliação, como faz, por exemplo, com a litigância de má-fé, mas antes deixa claro, segundo se depreende do texto legal, ser tal tarefa subjetivamente afeta ao julgador.

4. Considerações Finais

Por fim, insere-se aqui apenas três tópicos conclusivos:

A. O CPC 2015 propõe um processo judicial diferente do existente no CPC 1973 e veio atender aos anseios de “um novo corpo com uma nova alma: uma alma de busca de resultados concretos para a efetividade do processo14. Se isso foi ou está sendo de fato alcançado, não se sabe ainda, mas esse é o mote e o tom dessa nova norma processual.

B. Inegavelmente o NCPC traz uma nova formulação teórica sobre a figura do juiz. O julgador está sendo chamado, pela nova lei processual civil, a assumir um papel mais protagônico no processo e mesmo na sociedade. Claro está que isso impõe a esse julgador o dever da prudência e do comedimento no exercício de sua função, evitando-se abusos.

C. É plenamente possível se construir razoável e objetivamente conceitos de aplicação prática cujo objeto são princípios altamente subjetivos. Assim não fosse, a “dignidade da pessoa humana” seria de aplicação inviável dada sua alta subjetividade, ou mesmo o conceito da “duração razoável do processo”, ideação ao mesmo tempo objetiva e subjetiva (qual seria, numericamente, essa duração?).

Na mesma linha, as presunções comuns, os indícios e as percepções subministradas pela experiência comum, podem influenciar positivamente o julgador, sem que isso, necessária e previamente, seja tomado por descabido ou excessivo. 

_____

ARENHART, Sérgio Cruz. O indício e a prova no direito processual. in: DUARTE, Bento Herculano; DUARTE, Ronnie Preuss (Coord.). Processo civil: aspectos relevantes. São Paulo: Método, 2006.

BUZAID, Alfredo. Do ônus da prova. in “Revista dos Tribunais”, São Paulo: 1974.

CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos. Código de processo civil. 1939.

CARPES, Artur Thompson. Prova e participação no processo civil: a dinamização dos ônus probatórios na perspectiva dos direitos fundamentais. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2008.

KRELL, Andreas Joachin. Entre desdém teórico e aprovação na prática: os métodos clássicos de interpretação jurídica. Revista de Direito da GV, n° 19, jan-jun, 2014.

LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

LOURENÇO, Haroldo. O neoprocessualismo, o formalismo-valorativo e suas influências no novo CPC. Revista Temas Atuais de Processo Civil, Vol. 2, Fev/2012.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Presunções e ficções no direito probatório. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul (PGE-RS). Porto Alegre: Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul. V. 33, nº 70, p. 79–86, jul./dez., 2012.

PASSONI, Marcos Paulo; SILVEIRA, Fábio Guedes Garcia da. Breve Abordagem sobre alguns princípios constantes no Projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, vol. 211.

1 LIEBMAN, Enrico T. Manual de direito processual civil. Tomo I. R. de Janeiro: Forense, 1984, p. 4.

2 Autores clássicos já registravam que “interessa somente o demonstrado, não quem o demonstrou”, bem exibindo que a partilha do ônus probatório nunca foi restrita e rígida como alguns outros tendem a conceber. BUZAID, Alfredo. Do ônus da prova. in “Revista dos Tribunais”, São Paulo: 1974, p. 7-26.

CARPES, Artur Thompson. Prova e participação no processo civil: a dinamização dos ônus probatórios na perspectiva dos direitos fundamentais. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2008, p. 19.

4 Apoiando-se em Chiovenda e Carnelutti, Buzaid afirma ser função precípua dos órgãos jurisdicionais “afirmar e atuar aquela vontade da lei que eles estimam existente como vontade concreta, à vista dos fatos que consideram como existentes”. BUZAID,op. cit., p. 7-26.

5 TARUFFO apud CARPES, op. cit., p. 26-27.

6 ARENHART, Sérgio Cruz. O indício e a prova no direito processual. in: DUARTE, Bento Herculano; DUARTE, Ronnie Preuss (Coord.). Processo civil: aspectos relevantes. São Paulo: Método, 2006, p. 289-316. Arenhart registra que na Idade Média “o fato de alguém sobreviver aos suplícios da tortura era sinal de que esta pessoa tinha razão – daí decorre que este indício, para aquele sistema, era perfeitamente condizente com a conclusão de que, quem sucumbisse aos tormentos da tortura não se encontrava na proteção divina e, portanto, mentia”.

7 CATÃO, apud KRELL, Andreas Joachin. Entre desdém teórico e aprovação na prática: os métodos clássicos de interpretação jurídica. Revista DireitoGV, n° 19, jan-jun, 2014, p. 295-320.

8 ARENHART, idem, ibidem.

9 No mesmo sentido, ver OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Presunções e ficções no direito probatório. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul (PGE-RS). Porto Alegre: Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul. V. 33, nº 70, p. 79–86, jul./dez., 2012.

10 Idem, ibidem.

11 Idem, ibidem.

12 LOURENÇO, Haroldo. O neoprocessualismo, o formalismo-valorativo e suas influências no novo CPC. Revista Temas Atuais de Processo Civil, Vol. 2, Fev/2012, p. 41-75. Lourenço, além de defender a ausência de ineditismo no NCPC, afirmando que o “Código Buzaid está sendo somente organizado e sistematizado”, referência Gilmar Mendes, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero como autores que advogam da mesma opinião.

13 A rigor, a doutrina clássica já referenciava tal aspecto. Buzaid, op. cit., p. 19, afirma: “o que interessa é somente o demonstrado, não quem o demonstrou”.

14 PASSONI, Marcos Paulo; SILVEIRA, Fábio Guedes Garcia da. Breve Abordagem sobre alguns princípios constantes no Projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, vol. 211, p. 239. Na exposição de motivos do CPC de 1939, o ministro de Vargas responsável pelo texto legal em questão, professor Francisco Campos, já então afirmava ser o processo tradicional um "instrumento de dominação política (...) formalista e bizantino, tendo sido apenas um instrumento das classes privilegiadas, que tinham lazer e recursos suficientes para acompanhar os jogos e cerimônias da justiça, complicados nas suas regras, artificiosos na sua composição e, sobretudo demorado nos seus desenlaces". CAMPOS, Francisco. Exposição de Motivos. In “Código de processo civil”, 1939, p. 2.

Antonio Celso Baeta Minhoto
Doutor em Direito Público pela ITE, Bauru, SP; Mestre em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie, São Paulo, SP; Professor do Programa de Mestrado da UNILIBRE, Bogotá, Colômbia; Advogado.

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