Durante o transcurso do procedimento investigatório, o agente público tem o dever de obediência à estrita legalidade1, diante da possibilidade manifesta de se praticar atos que invadam e violem direitos fundamentais, tratando-se de uma proteção ao cidadão face eventual arbítrio do estado, não existindo autorização de atingi-lo a não ser por objeto claro e específico em sede de apuração.
Com a delimitação do objeto, o agente investigativo (agente de polícia, delegado ou promotor) busca construir elementos indiciários2, da materialidade e autoria de noticiado fato punível, sob o fito de dar base para existência (ou não) de justa causa para a propositura de ação penal com o legitimado ativo para tanto.
Tais elementos probatórios, por sua vez, vem com objetivo central de busca pela justa causa enquanto “suspeita sólida” para fins de consolidar a opinio delicti, assim ademais, em com a propositura da ação, tem o condão de limitar o objeto da acusação, da mesma maneira que viabilizar a decisão judicial quanto ao seu recebimento, se for o caso.
Entretanto, em tempos de insegurança jurídica constante e banalização de direitos fundamentais do investigado, os elementos probatórios passam a ser alvo de debates para compreender, numa delimitação teleológica, quais os limites que não podem ser transgredidos, usando como referência a legislação e os precedentes.
Nessa fase preliminar em que inexiste processo penal, é importante distinguir os conceitos de atos de investigação e atos de prova, como ensina o professor Aury Lopes Jr3, que sustenta como estes sendo dirigidos a convencer o juiz da verdade de uma afirmação e a formar um juízo de certeza – tutela de segurança; enquanto aqueles não se referem a uma afirmação, mas a uma hipótese para formar um juízo de probabilidade, e não de certeza.
Dessa maneira, entramos na discussão principal, quando na conduta do agente investigativo existe uma postura de formar um elemento probatório de certeza, e não apenas de hipótese a instruir eventual processo penal, o que acaba, por consequência levando a prática em certos momentos do denominado “fishing expedition”.
Na doutrina do professor Alexandre Morais da Rosa, "Fishing Expedition”4 ou pescaria probatória “é a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem 'causa provável', alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém.”
A ausência de indícios de qualquer prática criminosa antes da adoção de medidas constritivas ou invasivas destinadas à “pescaria” de indícios da ocorrência de fatos criminosos pode trazer, claramente o caráter exploratório e abusivo pela autoridade, quando sem a existência de lastro mínimo que indique sua necessidade, bem como sem objeto, pessoa ou delito definidos a serem investigados, praticam a “pescaria de provas”.
O entendimento é de que a pescaria probatória ocorrerá nos casos em que fique realmente configurado o desvio de finalidade e falta de quaisquer evidências que possam embasar eventual instrução criminal futura, mas não os casos em que pode emergir as chamadas provas fortuitas. O agente responsável pela diligência deve sempre se ater aos limites do escopo - vinculado à justa causa - para o qual excepcionalmente se restringiu o direito fundamental à intimidade, ressalvada a possibilidade de encontro fortuito de provas.
O encontro fortuito de provas é permitido pela jurisprudência5, que considera válidas as provas encontradas casualmente por agentes da persecução penal relativas a infrações penais até então desconhecidas, no curso do cumprimento de medidas de investigação autorizadas para apuração de outros delitos, desde que não haja desvio de finalidade na execução das diligências.
O STJ tem entendimentos distintos em situações distintas, pois só admite a interpretação da chamada pescaria probatória quando o agente está totalmente desprovido de qualquer indício acusatório, não reconhecendo a irregularidade de se descobrir novo ilícito e pessoas envolvidas, já no curso do procedimento investigatório no crime anteriormente observado, decorrente de medida investigativa (quebra de sigilo ou interceptação telemática por ex.), de maneira acidental.
Existem, portanto duas posições que atualmente o STJ tem adotado. No HC 598.051/SP (rel. ministro Rogerio Schietti), a sexta turma propôs nova e criteriosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento do morador para o ingresso em seu domicílio por agentes estatais. Existindo premissas basilares para tal ato: “a) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões6 (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.[...]”
Já em outro julgado, RHC 150354 / PR sob a relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, tem-se o encontro fortuito de provas7, onde afirma que não á ilicitude das provas desde que o procedimento tenha sido regularmente autorizado e executado dentro dos limites estabelecidos pela autoridade judiciária, não ocorrendo abuso de autoridade e desvio de finalidade.
No caso em lume, mesmo sendo o delito investigado originariamente com a pena de detenção, a descoberta de crime que leva a prisão, de maneira fortuita por meio de procedimento investigativo regularmente iniciado em consonância à lei 9.296/96 não atinge de forma deletéria as provas obtidas, não se caracterizando o fishing expedition, por não existir qualquer ato de investigação que tenha assumido caráter meramente especulativo.
Assim o STJ entende que a vedação ao fishing expedition como consequência da garantia contra a autoincriminação (privilege against self-incrimination), direito constitucional de não produzir provas contra si mesmo, deve ser compreendido de forma restritiva, haja vista que a instauração de instrumento investigativo pela autoridade, ainda que em delito totalmente distinto do que se descobre posteriormente, legitima o poder de encontrar provas “casualmente” que direcionem à nova investigação, derivando o procedimento em linha investigatória antes desconhecida e em delito antes sequer cogitado pela autoridade.
Diante dos precedentes apurados no STJ, é possível que ao mesmo tempo que existe a delimitação de atuação pela autoridade apuradora do delito, considerando a ilicitude de provas obtidas claramente em sede de desvio de finalidade na conduta do agente, também permite a ampliação interpretativa dessa mesma autoridade, quando se aponta novos delitos que aparecem em cautelares de quebra (sigilo bancário e telefônico, por exemplo), presumindo a instauração de procedimento anterior como premissa de legalidade dos indícios e provas agora, ainda que totalmente diferentes do objeto até então investigado.
Ainda não é possível prever as consequências dessa tolerância dentro de um processo penal democrático e investigação transparente, pois abre possibilidade para que os agentes investigativos apontem indícios derivados de novos elementos probatórios antes estranhos, à investigação, a partir de informações obtidas com violação da intimidade, remando para um abismo de dados obtidos que podem representar inúmeras situações da vida privada do investigado e que nada tem relação ao objeto de acusação.
1 Art. 37 da CF; art. 2º, a da Lei 4.717/65; arts. 2º, 11, 13, III e 53 da Lei 9.784/99; arts. 1º e 2º Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (Resolução 34/169 da ONU).
2 “se a instrução definitiva prova ou não prova que há crime ou contravenção, a instrução preliminar prova ou não prova que há base para a acusação” (ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. A Contrariedade na Instrução Criminal. São Paulo: [s.n.], 1937, p. 12)
3 LOPES JR, Aury. Direito processual penal.16. ed. São Paulo. Saraiva Educação, 2019. p.180.
4 (ROSA, Alexandre Morais da, Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos, 1ª ed., Santa Catarina: Emais, 2021, p. 389-390)
5 (AgRg nos EDcl no RHC 150.354/PR, Rel. ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 15/03/2022, DJe 18/03/2022)
6 (HC 663.055/MT, Rel. ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 22/03/2022, DJe 31/03/2022)
7 AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. FRAUDE A LICITAÇÕES. ENCONTRO FORTUITO DE PROVAS. POSSIBILIDADE. PROCEDIMENTO REGULARMENTE INSTAURADO NO CURSO DE OUTRA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Neste caso, tem-se o encontro fortuito de provas, também chamado pela doutrina de serendipidade, o que é reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência dos Tribunais Superiores. Não há que se falar em ilicitude das provas desde que o procedimento tenha sido regularmente autorizado e executado dentro dos limites estabelecidos pela autoridade judiciária, desde que não haja desvio de finalidade na execução das diligências. 2. Embora os crimes imputados sejam puníveis com detenção, o fato de terem sido descobertos de maneira fortuita por meio de procedimento investigativo regularmente instaurado nos termos e limites da Lei n. 9.296/1996 não macula as provas obtidas. 3. Não há que se falar em fishing expedition neste caso, pois, não se constata que a investigação tenha assumido caráter exploratório ou especulativo. Trata-se apenas da obtenção de elementos indiciários de modo fortuito em procedimentos de investigação regularmente instaurados. 4. Agravo regimental não provido. (AgRg nos EDcl no RHC 150.354/PR, Rel. ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 15/03/2022, DJe 18/03/22)