Migalhas de Peso

McMinhoca

Ao contrario de 15-20 anos atrás, o poder público não mais reage à altura a esse tipo fraude contra o consumidor, que voltou a campear de forma aguda e abrangente.

6/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

McPicanha que não tem uma só molécula de picanha na composição de sua carne de hambúrguer; whooper costela que contém zero de costela...

A era fake, em solo tupiniquim, ganha em volume e abrangência. Na exata proporção da permissividade oficial que, “dando de baciada”, deteriora o país.

Há algum tempo (15-20 anos) o brasileiro descobriu, de maneira dolorosa ao bolso, que a forma da embalagem e a denominação do produto podem conter intrinsecamente grave distorção informativa e enganosidade publicitária, seja em aspecto quantitativo, seja qualitativo.

O microssistema consumerista, ponteado pelo Código de Defesa do Consumidor, na esteira das diretrizes constitucionais de proteção e defesa ao consumidor, eloquente e peremptoriamente coíbe esse tipo de fraude.

Naquela época, o consumidor brasileiro se viu enganado massivamente pela diminuição sub-reptícia do conteúdo de produtos que se mantinham com suas embalagens e rótulos tradicionais.  Mas, na ocasião, houve reação contundente, não só na mídia, também pelo poder público.

Detectou-se, ali, um movimento claramente coordenado entre grandes fornecedores, alguns multinacionais, para encetar o logro no mercado e solo brasileiro.

Foi uma época em que a expressão “apertado como numa lata de sardinha” corria o risco de perder o sentido: as novas latinhas, visualmente de idêntico tamanho, passavam a trazer menor quantidade do pescado. Biscoitos que vinham em 200 gramas emagreceram para 160/140g. A mesma sujeira foi feita com a caixa de sabão em pó, cujo conteúdo “encolheu”, embora sob idêntica aparência. Até o papel higiênico entrou nesse rolo: aparentemente iguais, unidades antes de 40 metros foram reduzidas a apenas 30m.

O objetivo, óbvio, era o de promover um aumento indireto do preço desses produtos, de modo a que o consumidor não percebesse.

Mas o consumidor percebeu. E os organismos de defesa do consumidor agiram. Ali havia estado e havia governo para reagir e defender o povo.

Felizmente nunca fomos tão idiotas como supunham os fornecedores velhacos. Mais do que perceber a fraude, o consumidor se sentiu traído. Os órgãos de defesa do consumidor se mobilizaram. Com apoio do governo e do legislativo, combateram veementemente aquilo que passou a ser conhecido como “maquiagem de produto” e as grandes empresas se viram obrigadas a fazer uma série de ajustes, em especial no sentido de trazer informações mais claras e precisas quanto a eventuais mudanças feitas (e que viessem a fazer) em seus produtos e embalagens (quantidade, gramatura, etc).  Toda mudança tinha que ser informada com destaque nos rótulos: “nova embalagem com alteração de quantidade: antes, 500g, hoje, 400g”.

Pois foi só a poeira baixar, o interesse do governo arrefecer, que o logro e a ganância empresarial voltaram a dar as caras. Com força. Retornaram aos montes os casos de “maquiagem” (ou “McAgem”?): mudanças sutis, enganosas, precariamente informadas nos produtos e em suas embalagens. Vidros de azeite que comumente traziam 500 ml, hoje se apresentam lépidos e faceiros com 100 ml a menos. Biscoitos, massas, congelados, laticínios, sorvetes, produtos de limpeza com gramaturas e mililitragens minguantes... Sem falar do chocolate que não para de encolher! As informações sobre mudanças, quando há, são imperceptíveis como ácaros.

E a nova explosão de fraudes não veio somente em termos de enganosidades quantitativas. Também as há no aspecto qualitativo.

No passado, por exemplo, através de nomes enganosos de fantasia, tentava-se induzir a venda de pó de filito como se fosse cal hidratada. À época, prontamente, de novo, os órgãos de regulação reagiram para coibir a prática, inclusive por meio de normatização.

Em termos de alimentos, dava-se o mesmo. Mas se houvesse enganação, era sempre esperada alguma reação e combate pelos órgãos de regulação, assim como o respectivo suporte pelos três poderes, conforme exigência constitucional.

Sob a ótica qualitativa, vale distinguir aquilo que diz respeito à essência do produto daqueles seus aspectos que não são essenciais. A saborização artificial, por exemplo, típica de “snacks” ou quitutes industrializados, não altera sua essência, sua matéria prima primordial, tampouco seu conteúdo nutricional. O salgadinho de milho, ainda que “sabor queijo”, segue sendo de milho, disso sabemos todos. O apelo da saborização, desde que sua prática seja corretamente informada, não tem grande potencial de enganosidade, justamente porque incide sobre elemento não essencial do alimento, além de já ser bem percebida pelo leigo, consumidor comum.

Mas quando a enganosidade atinge a essência do produto o buraco é mais embaixo. O snack “sabor picanha” não pode ser comparado ao McPicanha.

A verdade é que poucos até agora tinham ousado “fakear” a própria essência de seu produto. Esse tipo de prática se mantinha na esfera restrita de modestos golpistas, criminosos comuns. Usavam-na mais os pequenos estelionatários, não os grandes fornecedores e industriais. Hoje, porém, há o salto estupefante: o velho estelionato “gato por lebre” revisto e ampliado, com dimensão industrial e numa pegada gourmetizada.

No caso, estão malandreando a proteína, a alma de um hambúrguer, a própria carne em formato de disco que dá nome à iguaria. É realmente uma espécie de ápice, uma mudança de patamar: oferecer um “hambúrguer picanha” que não contém carne de picanha! (Em se tratando de mentira em matéria de hambúrguer, aliás, é difícil escolher a maior delas: engulhar com a ideia da minhoca, lenda urbana que reconhecia o anelídeo molenga como seu ingrediente principal, ou salivar com uma picanha que “foi sem nunca ter sido”...).

O mais lamentável nisso tudo é constatar que as instituições e órgãos públicos de proteção ao consumidor se encontram deliberadamente enfraquecidos e sufocados. A atual ordem governamental se faz omissa, desregulada, capturada pelo mercado, submetendo o (sobre)vivente a toda sorte de abuso e selvajaria nas relações de consumo, com crescentes episódios de abusividade e enganosidade.

Muito ao contrário do que ocorreu em meados da primeira década deste milênio, não mais se vê reação à altura pelo governo. Não por acaso esse mecanismo de fraude – quantitativo ou qualitativo – voltou a campear desavergonhada e disseminadamente.

McPicanha e whooper costela são meros troféus, ícones do descaso. No modo diversionista, prestam-se a ofuscar a inação governamental também na esfera de proteção ao consumidor.

Não se trata de enquadrar só o hambúrguer que passou do ponto e se queimou. É muito mais que isso.

Paulo Calmon Nogueira da Gama
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Desembargador do TJMG.

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