Apesar da NLL 14.133/21 em seu primeiro artigo definir que a lei em comento estabelece normas gerais de licitação e contratos nos mesmos moldes da “revogada” lei 8.666/93, com sucedâneo no art. 22, XXVII da CRFB/88, o qual disciplina que é de competência privativa da União legislar sobre:
Art. 22 (...), XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III. (grifos nossos)
Boa parte da doutrina tem discutido, desde a publicação da NLL, se a norma insculpida no art. 8º trata-se de norma geral ou específica. Isto porque, o texto estabelece que a licitação seja conduzida por agente de contratação, servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes aos quadros permanentes da administração.
Por outro lado, o art. 7º da mesma lei estabelece uma ordem de preferência, qual seja: que os agentes públicos que irão desempenhar as funções essenciais à execução da NLL sejam, preferencialmente, “servidores efetivos” ou empregados públicos dos quadros permanentes.
Pois bem, para uma melhor compreensão é muito importante analisarmos os conceitos estabelecidos no art. 6º da NLL, haja vista que são fundamentais para demonstrar a contradição do artigo 8º em relação a vários dispositivos constantes no texto da lei.
Antes, porém, é preciso ressaltar que, à União compete dispor sobre normais gerais e Estados e Municípios, por seu turno, podem suplementar tais normas a fim de atender suas necessidades/objetivos regionais e locais, sem que isso venha ferir os princípios constitucionais, conforme, destaca o art. 24, § 2º da CF/88 que dispõe: “A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados (...)”.
É de conhecimento de muitos, as grandes dificuldades de vários Municípios, com déficit enorme de recursos financeiros e humanos, logo considerar a norma insculpida no art. 8º é trazer ainda mais dificuldades aos referidos Entes.
Não é demais mencionar, ainda, casos como o do Estado do Rio de Janeiro, que devido às dificuldades financeiras aderiu ao regime de recuperação fiscal que veda a realização de concursos, criação de cargos, empregos ou funções que impliquem aumento de despesas nos termos do art. 8°, II da lei complementar 159/17.
Vale registrar que, historicamente, como já mencionado que o artifício de querer classificar toda a NLL, como norma geral, não diferente, também ocorreu com a lei 8.666/93, entretanto, devido às necessidades regionais e locais a doutrina e jurisprudência foram ao longo do tempo desmitificando tal generalidade.
Desse modo, no intuito de atender necessidades, como exemplos, citam-se a lei 9.433/05 da Bahia e lei 9.090/08 do Espírito Santo, que tratam de inversão de fases, julgamento x habilitação, haja vista que, os aludidos Estados consideram e, com muita razão, que os artigos da lei 8.666/93 que versam sobre esta matéria, habilitação x julgamento, são normas específicas e não gerais.
A jurisprudência do egrégio STF, não foi diferente ao analisar a constitucionalidade da competência suplementar dos Municípios em norma editada por Município e questionada em sede de recurso extraordinário, assim ementado:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO E CONTRATAÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MUNICIPAL. LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE BRUMADINHO-MG. VEDAÇÃO DE CONTRATAÇÃO COM O MUNICÍPIO DE PARENTES DO PREFEITO, VICE-PREFEITO, VEREADORES E OCUPANTES DE CARGOS EM COMISSÃO. CONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA SUPLEMENTAR DOS MUNICÍPIOS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. [...] A proibição de contratação com o Município dos parentes, afins ou consanguíneos, do prefeito, do vice-prefeito, dos vereadores e dos ocupantes de cargo em comissão ou função de confiança, bem como dos servidores e empregados públicos municipais, até seis meses após o fim do exercício das respectivas funções, é norma que evidentemente homenageia os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa, prevenindo eventuais lesões ao interesse público e ao patrimônio do Município, sem restringir a competição entre os licitantes. Inexistência de ofensa ao princípio da legalidade ou de invasão da competência da União para legislar sobre normas gerais de licitação. Recurso extraordinário provido”. RE 423560/MG, rel. Min.Joaquim Barbosa, 29.5.2012. (RE-423560) (grifos nossos)
Não diferente, do ocorrido no passado, à doutrina em tão pouco tempo de publicação já começou firmar entendimento quanto a não generalidade da NLL em muitos casos, principalmente no que se refere ao art. 8º caput.
Nesse sentido, Amorim, 2021, p.102, argumenta:
Por se tratar de matéria correlata à organização interna de pessoal e gestão administrativa dos entes federados e que não integram, substancialmente, o processo licitatório propriamente dito, em nossa opinião, o requisito quanto ao caráter efetivo de provimento do servidor tratar-se-ia de norma específica, sendo aplicável, de antemão, apenas no âmbito da União, admitindo-se, por conseguinte, previsão distinta na legislação de Estados e Municípios.
Corrobora com o entendimento Torres, 2021, p. 105, ao aduzir:
Em primeiro, parece-nos que, ao ultrapassar a condição de diretriz, orientando pela preferencia, o art. 8º define uma regra cogente, que impõe submissão. Com essa característica, tal disciplinamento claramente se reverte da condição de norma materialmente especifica, não vinculando Estados, municípios e Distrito Federal, mas apenas órgão e entidades federais.
Louvável os argumentos dos festejados doutrinadores, aos quais concordamos, porém, acreditamos que se analisarmos cuidadosamente alguns artigos específicos da NLL, iremos observar fragrantes contradições. Assim sendo, consideramos que o caput do art. 8º, não se aplicaria nem mesmo no âmbito da União.
Percebemos que o legislador ao buscar atribuir que somente podem conduzir licitação os agentes de contratação, servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes aos quadros permanentes da administração, o mesmo não observou alguns detalhes ao conceituar alguns institutos no art. 6º que tem aplicação direta no art. 8º. Assim vejamos:
Art. 6º Para os fins desta lei consideram-se: (...).
V - agente público: indivíduoque, em virtude de eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, exerce mandato, cargo, emprego ou função em pessoa jurídica integrante da Administração Pública.
VI - autoridade: agente público dotado de poder de decisão;
LX - agente de contratação: pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, (...) até a homologação.
L - comissão de contratação: conjunto de agentes públicos indicados pela Administração, em caráter permanente ou especial, com a função de receber, examinar e julgar documentos relativos às licitações e aos procedimentos auxiliares. (grifos nossos)
Observem que os agentes públicos poderão ser nomeados, designados, contratados e etc, encontram-se nos incisos V e L, diferentemente, dos agentes de contratação que deverão ser sempre servidores ou empregados dos quadros permanentes.
Com efeito, para que possamos entender o raciocínio que é claro, no entanto, ainda não vislumbramos manifestações nesse sentido, é preciso entender que o legislador ao redigir o caput do art. 8º não fez nenhuma ressalva, ou seja, não dispôs sobre exceções, vejamos a norma:
Art. 8º. A licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação. (grifos nossos)
Contudo, no mesmo artigo, precisamente, no § 2º o legislador começa a dissolver o caput do art. 8º ao estabelecer que em licitação que envolver bens ou serviços especiais o agente de contratação poderá ser substituído por comissão de contratação.
Nesse ponto, indaga-se, quem são os componentes da comissão de contratação? A resposta se encontra no art. 6º inciso L: conjunto de agentes públicos!
Igualmente, quem são os agentes públicos? A resposta se encontra no art. 6º inciso V: indivíduos nomeados, designados, contratados e etc!
Vale frisar que, a licitação que envolve bens ou serviços especiais se trata da modalidade concorrência, nos precisos termos do art. 6º, inciso XXXVIII, já que não são bens comuns, pregão.
Oportuno, ainda mencionar, que no caso da concorrência para bens e serviços especiais se trata mesmo de agentes públicos conceituados no art. 6º inciso L, que no caso, poderão ser “preferencialmente” dos quadros permanentes da administração pública ou não, nos moldes do art. 7º, I.
A presente constatação é de fácil percepção ao analisarmos o art. 32, quando trata do diálogo competitivo, uma vez que, somente nesta ocasião o legislador fez questão de enfatizar que a comissão de contratação será composta por servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes. Vejamos a norma:
Art. 32. A modalidade diálogo competitivo (...): XI - o diálogo competitivo será conduzido por comissão de contratação composta de pelo menos 3 (três) servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes aos quadros permanentes da Administração (...)(grifos nossos)
Cabe outra indagação, se a lei possibilita a condução da concorrência, bens ou serviços especiais, por comissão de contratação, com formação diversa daquela que irá conduzir o diálogo competitivo, servidores ou empregados dos quadros permanentes, por qual motivo a regra não seria aplicável ao pregão que se trata de modalidade específica para bens comuns? Isto é, bens e serviços com menor expressão!
Igualmente, a autoridade nos termos do artigo 6º, VI é um agente público, lato sensu, que possui poder de decisão, inclusive de designar, pregoeiro, leiloeiro administrativo e agente de contratação, que tratam-se de espécies de agentes, stricto sensu, ou seja, se a autoridade competente pode ser um comissionado com amplos poderes como, por exemplo, o de homologação, como não aceitar que um agente comissionado seja capaz de conduzir uma licitação. Ora, aqui vale trazer o conhecido jargão jurídico “quem pode o mais, pode o menos”.
Da mesma forma o leilão, que também poderá ser conduzido por um terceiro contratado, leiloeiro oficial, na forma do artigo 31 da NLL.
Objetivando demonstrar a "atecnia legislativa" traremos outro esclarecimento do professor Amorim (2021, p.101):
(...) o atributo da “efetividade” está relacionada à forma de provimento do cargo público e não ao servidor propriamente dito. Todo cargo público, seja efetivo ou comissionado compõe o quadro funcional dos órgãos e entidades, conforme lei que os instituiu. Por ser criado por lei (ato normativo primário), em realidade, o cargo em si – e não o servidor – integra o quadro permanente do órgão ou da entidade (...).
Portanto, diante das razões expostas, ainda que alguns se apeguem, ao disposto no inciso I do art. 176 da NLL, para sustentar que o art. 8º se trata sim, de norma geral, acreditamos piamente, ser perfeitamente possível, a designação de ocupante de cargo comissionado para conduzir os procedimentos licitatórios. Por fim, vale mencionar que o parágrafo único do art. 176 padece de inconstitucionalidade, pois nas palavras do professor Justem Filho (2021, p. 1720): “o parágrafo único infringe a autonomia Municipal, ao estabelecer que os Municípios estariam obrigados compulsoriamente a adotar o PNCP como órgão oficial de divulgação de seus atos”. Assim sendo, há que considerar sim, que a redação do caput do art. 8º se trata de norma específica, cabendo aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal, complementá-la naquilo que for necessário para atender suas demandas regionais e locais.
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AMORIM. Victor Aguiar Jardim de. Modalidades e Ritos Procedimentais da Licitação. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Org.) et al. Licitações e Contratos Administrativos: Inovações da Lei 14.133/21 - 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à legislação de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021 / Marçal Justen Filho. – São Paulo: Thomson Reiters. Brasil, 2021.
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas/Ronny Charles Lopes de Torres – 12. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Ed. Juspodvm, 2021.