Migalhas de Peso

Da propriedade vocabular nos textos jurídicos

No meio jurídico – no qual o vocabulário rebuscado seja a regra –, pode haver um intermédio entre o tecnicismo rigoroso e a norma culta genérica sem que se perca o apreço pela gramática tradicional.

4/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

É evidente que todo autor seja de peças jurídicas, seja de contos literários, seja de livros didáticos sempre estará interessado no bem escrever. Porém, sabemos que o maior aliado nessa procura será a prática, mais que a teoria: a leitura e a escrita são as sementes que fazem florescer mais rapidamente o texto ideal (e não o inexistente “texto perfeito”). É importante, decerto, conhecer regras gramaticais e palavras rebuscadas, mas esse é apenas o “esqueleto” do texto; é a sua base, é a sua estrutura, primordial, porém um texto não sobrevive sem o conhecimento efetivo sobre a língua.

De todos os conhecimentos que um autor pode portar, foco neste momento a propriedade vocabular. O vocabulário a ser empregado em qualquer contexto funciona como uma espécie de “contrato”: a partir do momento em que um texto é produzido, o autor obrigatoriamente pressupõe que o público-alvo compreenderá todas as palavras que nele estejam dispostas. Se o leitor se depara com uma palavra cujo significado lhe seja desconhecido, haverá uma quebra na leitura, porque ele deverá ou ler o período novamente, a fim de interpretar aquela palavra com base no contexto, ou procurar o significado dela em um dicionário. Em qualquer uma das duas possibilidades, o leitor interromperá a leitura do texto. Se o texto for de fato adequado ao público-alvo, a leitura jamais será interrompida.

É sabido que os textos jurídicos interessam àqueles que pertencem ao meio jurídico, ou seja, em sua maioria pessoas formadas em Direito – consequentemente, com ensino superior completo. A partir disso, sabemos tratar-se de um contexto em que é possível valer-se de vocabulário mais rebuscado. Aliás, os textos jurídicos já são compostos em maioria de vocabulário específico, como alguns verbos de ligação peculiares e expressões latinas. Mas até que ponto a distância entre esse tipo de escrita e a norma culta genérica poderá prejudicar a leitura e a interpretação de um texto?

Bem, vamos imaginar que existam, para nós, dois tipos de norma culta: a genérica e a específica do Direito. A norma culta genérica é aquela a que todo estudante com ensino superior completo tem acesso, enquanto a específica do Direito é aquela que envolve expressões que provavelmente apenas pessoas envolvidas no meio jurídico conseguirão compreender plenamente.

É possível que, em algum momento de nossas vidas, todos nós precisemos ler ao menos um texto de uma área distinta da habitual. Talvez urja ler um artigo, ou um livro de uma área com a qual não sejamos tão afins. Nós esperamos, naturalmente, que a maior parte do material esteja escrita de acordo com a norma culta genérica; assim, o significado dos poucos vocábulos que desconheçamos poderemos consultar num dicionário quando for necessário. É isso que eu imagino que deva acontecer com todo e qualquer texto que queira atingir um público grande.

Especificamente em relação aos textos jurídicos, sabemos que existe um interesse popular, porque petições, sentenças e textos afins provavelmente serão lidos por pessoas que não estão envolvidas no meio jurídico. Dessarte, o emprego de palavras e expressões do meio jurídico devem estar abaixo do limite que tornará o texto completamente obscuro ou ininteligível para alguém que não o conhece.

Vejamos, pois, um texto que pode ser encontrado no Agência Senado¹: “O vetusto vernáculo manejado no âmbito dos excelsos pretórios, inaugurado a partir da peça ab ovo, contaminando as súplicas do petitório, não repercute na cognoscência dos frequentadores do átrio forense. Ad excepcionem o instrumento do remédio heróico e o jus laboralis, onde o jus postulandi sobeja em beneplácito do paciente (impetrante) e do obreiro. Hodiernamente, no mesmo diapasão, elencam-se os empreendimentos in judicium specialis, curiosamente primando pelo rebuscamento, ao revés do perseguido em sua prima gênese”².

O texto em questão foi, felizmente, uma ironia do ex-presidente da AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros, Rodigo Collaço. Mas ele evidentemente nos serve de exemplo para mostrar como um texto pode parecer de todo distante da realidade. Uma pessoa que não está inserta no meio jurídico possivelmente não entenderia as expressões latinas e os elementos “venusto”, “manejado”, “excelsos”, “pretórios”, “cognoscência”, “átrio”, “beneplácio”, “diapasão”, “ao revés do” e “prima gênese”. Em poucas linhas, um leitor leigo teria cerca de 15 interrupções, e para algumas leituras ele nem sequer conseguiria depreender o significado dessas palavras pelo contexto, porquanto há uma densidade muito alta de vocábulos que lhe são estranhos.

Há palavras importantíssimas sobre esse assunto que merecem citação aqui: “Diante da página do dicionário, deparamo-nos com enormes listas de sinônimos em que todos correspondem a uma só palavra, mas que trazem, cada um, uma comunicação diversa” (LUFT, 1996, 433-434). Além disso, “Uma seleção lexical adequada à situação comunicativa, ao conhecimento de mundo que pressupomos do nosso destinatário constitui um fator essencial de incremento ao poder persuasivo de nossos textos” (KOCH, 2017, 33).

Acredito que as citações acima se refiram mais assertivamente à argumentação, cujo domínio creio ser já intrínseca ao meio jurídico. Outrossim, é evidente que algumas expressões, como “trânsito em julgado”, “agravo de instrumento”, “embargo de divergência” e “jurisprudência” encontram substituição popular difícil ou impossível, portanto elas claramente devem ser mantidas, e não cambiadas. O foco deste texto é a acessibilidade dos textos para os leigos. Qual é a real necessidade de trocar “arcaico” por “vetusto”?

Ainda, é necessário entendermos que a ilusão da noção de “sinônimo” é tão cristalina quanto as águas da Península de Maraú: “Sinonímia perfeita assim como essas é muito raro, e aquele antigo conselho do professor de que ‘quando não se quer repetir uma palavra, coloca-se um sinônimo’ é quase sempre muito forçado, pois dificilmente encontramos um sinônimo perfeito” (HENRIQUES, 2018, 81). Você pode encontrar, nos dicionários, que “erro” é sinônimo de “equívoco”. Não obstante, eu preferiria dizer, diante de um juiz, que “houve um equívoco” a “houve um erro”, ainda que a primeira palavra não me seja comum no cotidiano. Acontece que “equívoco” soa mais brando que “erro”; além disso, a primeira parece mais culta que a segunda. Vale ressaltar que existem “quase sinônimos”, mas, para toda troca, há um porquê.

Não digo, de maneira alguma, que devemos livrar-nos completamente da norma-padrão e do vocabulário técnico. Entretanto, é um exercício quase que diário tentar aproximar a linguagem técnica do meio jurídico à culta mais neutra, isto é, à que não está vinculada a área alguma. Lembremo-nos de que os textos jurídicos em sua maioria interessam também àqueles que não pertencem a esse meio³.

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1 https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/termos-rebuscados-atrapalham-a-compreensao-de-sentencas-judiciais-e-textos-do-direito

2 A palavra “heroico” não recebe mais o acento gráfico. Como o texto foi escrito em 2005, ele não está adequado à nova ortografia.

3 Recomendo a qualquer autor, de qualquer área, os livros que aparecem nas referências abaixo. Pu-las pensando justamente naquele que gostaria de conhecer mais as técnicas de boa escrita – e, quem sabe, de boa argumentação –; pois que façam dela bom proveito!

5 BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 39.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.

6 COSTA, José Maria da. Manual de redação jurídica. 6.ª ed. Ribeirão Preto: Migalhas, 2017.

7 CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 16.ª ed. Rio de Janeiro: Lexicon, 2016.

8 HAUY, Amini Boainain. Gramática da Língua Portuguesa Padrão: Com Comentários e Exemplários: Redigida Conforme o Novo Acordo Ortográfico. 1.ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.

9 HENRIQUES, Claudio Cezar. Léxico e semântica: estudos produtivos sobre palavra e significação. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.

10 KOCH, Ingedore Villaça. Escrever e argumentar. 1.ª ed. São Paulo: Contexto, 2017.

11 LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. 55.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2019.

12 LUFT, Celso Pedro. Novo manual de português, gramática, ortografia oficial, literatura, redação, textos e testes. 3.ª ed. São Paulo: Globo, 1996.

Roberto Gandulfo
Professor de Língua Portuguesa, revisor de textos e pesquisador em Linguística.

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