Migalhas de Peso

A MP 1.085/21 e o suposto Lobby dos cartórios

Este artigo pretende analisar se a MP moderniza e simplifica os procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos.

3/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Joel Pinheiro da Fonseca, em artigo publicado na Folha de São Paulo em 4/4, afirma existir um “lobby de cartórios e tabelionatos” que se articula contra a MP 1.085/21. Diz que há uma proposta em curso no Congresso Nacional para viabilizar o avanço tecnológico nas notas e registros públicos: “é a MP 1.085/21, ou MP dos cartórios digitais”. Segundo o articulista,  “graças ao poder de pressão dos cartórios, contudo, ela corre o risco de caducar”. Há um lobby, mas pela aprovação da Medida Provisória, haja vista farta publicação de matérias em mídias e páginas inteiras de jornais de circulação nacional.

Outros se perguntam: quem seria contra a modernização tecnológica do sistema notarial e registral? Por quê? Afirmam que as críticas lançadas à iniciativa do Executivo seriam apenas expressão de inconformismo personalista manifestada por alguns poucos recalcitrantes.

É possível responder singelamente a todas estas questões: Primeiro, porque não há ninguém que seja contra o Registro Eletrônico que já é realidade nos cartórios brasileiros, desde 2005, com pesquisas eletrônicas para localização de imóveis e certidões eletrônicas, na marca de 1,2 bilhão de pesquisas. O processo de modernização dos cartórios está em curso desde então, com a implantação da penhora eletrônica de imóveis, do encaminhamento eletrônico de documentos e vários outros serviços. Em suma, não há um só serviço do registro de imóveis que não possa ser encaminhado eletronicamente. O que se propõe já é realidade há muito nos cartórios, como se verá. O que tem causado perplexidade, na verdade, é a imensa cortina de fumaça que busca impedir o debate e a discussão do que seja oportuno e relevante para avançar nas conquistas já consolidadas. É preciso prudência e critério, afinal estamos reformando um marco legal centenário!

O chamado “registro eletrônico” teve o seu clímax em 2009, com o advento da MP 459/2009, na gestão do então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Era intenção do governo federal dotar o país de infraestrutura eficiente para modernização dos registros públicos, consentânea com os anseios da sociedade brasileira. Era preciso responder aos desafios da regularização fundiária, dando suporte ao Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV.

Mais tarde, a MP 759/09 se converteria na lei 11.977, de 7/7/09, e o “registro público eletrônico” acabaria consagrado definitivamente nos artigos 37 e seguintes do referido diploma.

A lei de 2009 é um marco legal cujo advento foi festejado pela sociedade, Estado, mercado e pelos próprios registradores brasileiros. A previsão de lapso temporal para implantação do registro público eletrônico desafiava os registradores públicos a completar o ciclo de reformas infraestruturais ao cabo de cinco anos (art. 39).

Em face da percepção de que o desafio era hercúleo, a administração pública veio em socorro. Ainda em 2010, ainda na gestão do presidente Lula, seria firmado no dia 26 de janeiro daquele ano um Acordo de Cooperação Técnica celebrado entre a UNIÃO (Ministério do Desenvolvimento Agrário), CNJ, Advocacia-Geral da União, INCRA, Estado do Pará, TJ/PR, Instituto de Terras do Pará e entidades de registradores imobiliários. Objetivava-se  a adoção de ações coordenadas relacionadas ao processo de regularização fundiária e à modernização dos cartórios no Estado do Pará. O convênio nos ofereceria o projeto-piloto que deveria servir de base para modernizar o sistema registral brasileiro como um todo.

Com o tempo o projeto ganharia robustez e abrangência. De fato, nos termos da lei, não se tratava de modernizar tão somente os cartórios da Amazônia Legal, mas de reformar todo o sistema de registro público brasileiro, primeiramente com o desenvolvimento do SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis. O modelo seria especificado pelo LSITEC - Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico, Instituição de Ciência e Tecnologia (ICT) que atua no desenvolvimento de tecnologia avançada para desenvolver soluções inovadoras à sociedade. Logo depois seriam envolvidas as demais especialidades, cujas inovações tecnológicas seriam regulamentadas por atos normativos baixados progressivamente pela Corregedoria Nacional de Justiça.

Depois de especificado, a implementação do SREI seria recomendada pelo CNJ, por meio da recomendação 14/14, de 2/7/14. Recomendava-se às Corregedorias Gerais da Justiça que “na regulamentação ou na autorização de adoção de sistema de registro eletrônico por responsável por delegação de Registro de Imóveis, inclusive quando prestados com uso de centrais eletrônicas, sejam adotados os parâmetros e requisitos constantes do modelo de sistema digital para implantação de Sistemas de Registro de Imóveis Eletrônico - S-REI elaborado pela Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológicos - LSI-TEC”. Parte da infraestrutura, então especificada, seria implementada, ainda em 2015, peno CNJ de acordo com o Provimento 57/15 da mesma Corregedoria Nacional de Justiça de lavra da então ministra-corregedora, Nancy Andrighi.

As etapas antecedentes, que serviriam de base para as iniciativas do CNJ, já haviam sido implementadas em São Paulo, decalcadas de ideias debatidas e defendidas no âmbito do Grupo de Trabalho que envolveu o IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, sob a presidência de Sérgio Jacomino, e ABECIP – Associação Brasileira das Empresas de Crédito Imobiliário e Poupança. Na série de reuniões, iniciadas a 28/2/05, seriam lançadas as bases conceituais para as reformas infraestruturais, consoante se vê no documento subscrito pelas entidades – “GT Irib/Abecip – informática no registro”, de 9/3/05 .

Estas ideias logo seriam aproveitadas e melhoradas pela ARISP – Associação de Registradores Imobiliários de São Paulo. Capitaneada por Flauzilino Araújo dos Santos, acompanhado de George Takeda, Joelcio Escobar, Sérgio Jacomino, entre outros, o Registro Eletrônico sairia finalmente do papel e logo se converteria em uma realidade concreta. A partir daí seguiram-se várias iniciativas que merecem ser relembradas por uma questão de justiça e de reconhecimento público:

1. Integração digital dos cartórios de São Paulo. Provimento CGJSP 25/97, de 1/12/97, baixado pelo des. Márcio Martins Bonilha, regulamentando a requisição de certidões, “via telemática”, a uma ou diversas serventias imobiliárias da Capital.

2. Assinador Digital Registral - 2005. Aplicação pioneira desenvolvida pelos registradores paulistas. O próprio ITI – Instituto da Tecnologia e Informação a recomendaria para os ministérios e empresas estatais, recomendada pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Mais tarde, a aplicação seria autorizada pela Corregedoria de São Paulo (Processo 888/2006, decisão de 31/7/07 (DJ 9/8/07), des. Gilberto Passos de Freitas).

3. Provimento Conjunto 1/07, de 29/8/07, de Marcelo Martins Berthe e Márcio Martins Bonilha Filho. Autorizou-se a “implantação do sistema de emissão de traslados e certidões notariais e de registros, em formato eletrônico, assinadas digitalmente, por meio de certificados digitais” - ICP Brasil.

4. Provimento CGJSP 29/2007, de 4/10/07, baixado pelo desembargador Gilberto Passos de Freitas determinando que tabeliães e registradores imobiliários do Estado de São Paulo recepcionem por meios eletrônicos requisições oriundas do Poder Judiciário.

5. Provimento 1, de 16/3/09, da Primeira Vara de Registros Públicos da Capital inaugurando a Pesquisa Eletrônica (Ofício Eletrônico). O sistema já foi atendeu a mais de 1.2 bilhão de requisições. Vale a pena conferir esta cifra gigantesca: https://oficioeletronico.com.br/).

6. Penhora online, Provimento 6/2009, de 13/4/09, baixado pelo desembargador Ruy Pereira Camilo, regulamentando Sistema Eletrônico de Penhora Online, com milhares de atos encaminhados e consumados em meios inteiramente eletrônicos.

7. Visualização de matrículas. A modalidade já era utilizada em 2009 – provimento 1/09, de 16/3/09 (DJ 27/4/09), do juiz da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, Dr. Gustavo Henrique Bretas Marzagão.

Muitas outras ferramentas foram implantadas. CNIB (indisponibilidade de bens); Acompanhamento Registral Online; E-Protocolo (milhares de títulos foram e são encaminhados diariamente aos cartórios por meios eletrônicos); RCDE (Repositório Confiável de Documentos Eletrônicos); Monitor Registral; Correição Online; Cadastro de Reurb; Extrato Eletrônico e títulos digitais; SEIC (milhares de intimações/consolidação AF); ACT - Autoridade de Carimbo do Tempo; EEA - Entidade Emissora de Atributos; Editais Online etc. etc. etc.

Todas estas iniciativas de modernização e informatização do sistema registral brasileiro consagraram-se progressivamente desde 1997. Passadas duas décadas, elas seriam reunidas, ampliadas e consolidadas na regulamentação da Corregedoria de Justiça paulista – Provimento CGJSP 42/12, de 17/12/12 (Dje 19/12/12), baixado pelo desembargador José Renato Nalini, a partir de extraordinário trabalho feito pelo desembargador Antônio Carlos Alves Braga Jr. e pelos registradores Flauzilino Araújo dos Santos e Sérgio Jacomino, verdadeiros artífices do SREI.

Mais recentemente, com o advento da lei 13.465/17, a Corregedoria Nacional de Justiça, chamando a si a responsabilidade de regulamentar o SREI e com base no comando legal que a erigiu à função de “agente regulador” (§ 4º do art. 76), baixou o Provimento 89/2019, de 18/12/19 (Dje 19/12/19), em ato firmado pelo Ministro Humberto Martins, logo confirmado pelo Plenário em célebre sessão. O registro eletrônico a partir daí se tornaria uma obrigação dirigida ao microssistema de registros públicos e realidade para todo o país. Sob a direção da CNJ, na gestão da ministra Maria Thereza de Assis Moura, criou-se a Coordenadoria de Gestão dos Serviços Notariais e de Registro (Portaria 53/20) que, sob a direção do desembargador paulista Marcelo Martins Berthe, motivaria a edição de dezenas de atos normativos que dão concretude e eficácia ao registro eletrônico brasileiro, em processo de discussões e debates promovidos pelo órgão com os representantes de registradores imobiliários.

É preciso reconhecer que nada se fez ou inovou substancialmente desde então – nada que pudesse justificar a criação de um novo arcabouço tecnológico em substituição ao modelo em operação. Não seria necessário reformar a legislação pátria. Afinal, o que poderia ser feito, para dar seguimento à linha evolutiva iniciada há muito, não dependia de uma medida provisória como a baixada no final do ano passado. Ela representa uma disrupção do processo de desenvolvimento sem nos apresentar qualquer alternativa razoável.

De fato, não será a simples publicação de belos sites na internet que haverá de promover a mudança de paradigma que o SREI reclama para o sistema registral brasileiro. Pergunta-se: afinal, que “registro eletrônico” é esse que se vende “moderno” e que se realiza nos interior dos cartórios brasileiros como se realizava na década de 70 do século passado? Nada mudou com esta MP 1.085/2021! Malgrado o nome pomposo, os registros ainda serão consumados em fólios de cartolinas amareladas, não passando, esta medida, no fundo, de mero slogan esvaziado de conteúdo concreto.

Neste diapasão, poder-se-ia devolver as perguntas: afinal, por que não se implementou o SREI, especificado em 2010 e regulamentado em 2014? Quem, e porque, se impediu o desenvolvimento do projeto de “eletronificação” dos registros públicos brasileiros, retardando-o por mais de uma década? Que interesses impediram o seu pleno desenvolvimento e que agora o embaraça, distorce e complexifica? Por que a MP 1.085/2021 simplesmente subverteu as diretrizes constitutivas do SREI e das centrais de outras especialidades, todos eles já implementados e em pleno funcionamento? Por que se descartou o esforço e o trabalho empreendidos ao cabo da última década na especificação e na prova de conceito do SREI?

Com esta medida provisória, “passamos do estágio inicial de desenvolvimento tecnológico do SREI à sua decadência; pulamos do viço à decrepitude, sem parar na maturidade”, como assinalou Sérgio Jacomino.

Causa espécie a criação de uma infraestrutura redundante (SERP) que representa, na prática, uma subdelegação de atividades próprias e indelegáveis de registradores e notários, subvertendo a regra de singularização das especialidades. Por que se limitou o direito potestativo do consumidor, diminuindo-lhe o prazo de saneamento de eventual imperfeição no título? Cancelada a prenotação, novas taxas serão cobradas dos usuários? É justo? Isto representa a “modernidade” do sistema? Que vantagens obterão o crédito imobiliário, o próprio mercado e, principalmente, o consumidor, com a substituição do critério de contagem de tempo (dias úteis X corridos), se no final e na prática os prazos se manterão sem ganhos significativos? A quem interessa a confusão que a contagem dos prazos em dias úteis vai representar na aplicação prática em cada comarca deste imenso país? Por que se instituiu uma instância redundante e onerosa (SERP) que calha entre os usuários e o sistema registral ONR-SREI), aumentando a burocracia e os custos transacionais, se a interoperabilidade entre as especialidades é matéria de feição nitidamente regulamentar e que já se achava em vias de implementação pelo CNJ?

Apesar de sabermos todas as respostas, é preciso restaurar a verdade e afastar as narrativas e tergiversações, verdadeiras fake news, que pululam em artigos veiculados na imprensa de modo aparentemente coordenado. A sociedade merece saber que nenhum registrador, em sã consciência, será contra a implantação do registro eletrônico, aliás uma realidade concreta em nosso país e em fase de pleno e racional desenvolvimento. E mais: a recalcitrância não será mais do que legítima resistência oposta à desfiguração do sistema registral em meios eletrônicos em prol de uma modernização que não se justifica nem se sustenta. Não há um “mapa do caminho” para consumar a mudança dos meios de registração; há apenas slogans para encantamento de desavisados – “macumba para turista”, na deliciosa expressão de Oswald de Andrade.

As linhas de desenvolvimento do registro público eletrônico se estabeleceram ao longo dos últimos 25 anos no curso de importantes atos normativos baixados pelos tribunais brasileiros. Compete ao Poder Judiciário, no âmbito de suas atribuições, regulamentar a atividade registral e notarial (art. 76 da lei 13.465/17 c.c. § 5° do art. 103-B da EC 45/04 combinado com o inciso X do art. 8º do Regimento Interno do CNJ, que tem força de ato normativo próprio (art. 5º, § 2º, da EC 45/04; STF MS 35.151, j. 19/9/17, ministra Rosa Weber).

O patrimônio constituído ao longo dos anos se vê malbaratado por iniciativa reconhecidamente imperfeita e que tem merecido críticas acérrimas por parte de juristas de escol e por autoridades brasileiras na matéria.

Por fim, é preciso reconhecer que a MP 1.085/21 é um claro índice de uma aspiração da sociedade brasileira que clama por serviços registrais e notariais céleres, eficientes e que sejam prestados pela internet. Todavia, o seu texto não foi suficientemente debatido e discutido por juristas e por profissionais da área e não angariou o apoio das entidades nacionais que representam notários e registradores. Basta assinalar que nem a Anoreg-BR – Associação de Notários e Registradores do Brasil, nem a CNR – Confederação Nacional de Notários e Registradores e nem mesmo próprio ONR – Operador Nacional do SREI, foram ouvidos em audiências públicas.

Os presidentes destas importantes entidades nacionais, participantes da sessão realizada na Câmara dos Deputados no dia 16/3/22, no âmbito do GT Serventias Notariais, Registro e Custas Forenses, foram enfáticos em reconhecer a importância da iniciativa, mas lamentando o fato de não terem sido ouvidos – nem o foram os seus dirigentes, nem os membros associados, registradores e notários brasileiros. Segundo eles, a reforma reveste-se de tamanha magnitude e importância que deveria ser mais bem discutida e debatida com a sociedade. Não se reforma no afogadilho um marco legal que deita profundas raízes na história do direito brasileiro e que serviu à sociedade brasileira de modo excelente, sem graves disrupções e sobressaltos.

O próprio desembargador Marcelo Berthe, na dita audiência, diria que o CNJ não participou da elaboração da MP. “Nós fomos chamados no final” disse ele, “já com o trabalho pronto [...]. Fizemos algumas sugestões, dentro daqueles limites que nos foram permitidos [...]. Entretanto, é preciso deixar bem claro: a Corregedoria Nacional de Justiça não é a autora da Medida Provisória”.

Afinal, de onde saiu a proposta original que não foi discutida e debatida com a comunidade jurídica? Por que não foram convidados interlocutores qualificados da advocacia e da academia? Por que o trabalho consolidado não foi sequer apreciado? Os desvios sistemáticos, perpetrados pela inesperada medida provisória, pode revelar-se uma iniciativa aziaga, quiçá contraproducente e afinal frustrante, dando azo a milhares de ações judiciais, em vista da obrigatoriedade de registros em cartório de negócios jurídicos...

A MP 1.085/21 nasceu acoimada de defeito congênito e incurável que é o de não ter sido ampla e suficientemente discutida e debatida com a sociedade brasileira, não restando alternativa ao Congresso Nacional, senão votar sua rejeição.

Marco Aurélio de Carvalho
Bacharel em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Público. Associado fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Sócio e fundador do escritório Celso Cordeiro & Marco Aurélio de Carvalho Advogados.

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