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“MOU” não é contrato... e nem pré-contrato. O que é, afinal? - Uma abordagem no plano da natureza jurídica

O MOU seria um instrumento prévio, a ser utilizado no contexto das negociações preliminares, ao início das tratativas, quando ainda resta indefinida, pelas partes, uma decisão quanto ao efetivo desejo de celebrar o negócio.

3/5/2022

(Imagem: Arte Migalhas)
1. Introdução

No contexto dos negócios empresariais, em especial em relação ao direito societário e ao empreendedorismo inovador (âmbito das chamadas startups), figura que tem despertado grande interesse do setor jurídico é a do chamado "Memorando de Entendimentos", mais popularmente referido como "MOU". Mas, apesar de muito falado, é, ao mesmo tempo, um tanto incompreendido, seja pelos operadores do direito, ou mesmo pelos empreendedores. Face a isso, o propósito do presente texto é apresentar algumas ideias a respeito de tal instituto.

Inicialmente, cabe mencionar que o MOU é uma figura de vários nomes. Alguns se referem a ele como Memorando de Entendimentos, em língua portuguesa (enquanto outros usam a versão inglesa "Memorandum of Understanding", e daí decorrendo a sigla MOU); outros o denominam ¨Protocolo de Intenções¨, outros ainda como ¨Carta de Intenções¨. Independentemente da nomenclatura, sabe-se que, conforme o art. 112 do Código Civil, nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem. Portanto, mais importante é o conteúdo do documento e, nesse sentido, cabe identificar a que se destina tal figura, e contextualizá-la dentro do direito contratual brasileiro.

2. O contrato na visão da teoria geral

A busca da verdade neste caso implica numa breve investigação sobre a teoria geral do contrato e consequente aplicação ao MOU.

Inexistindo definição do instituto do contrato no direito positivo brasileiro, a doutrina reconheceu que esse instituto corresponde em sua inteireza àquele objeto do art. 1.321 do Código Civil Italiano, segundo o qual o contrato é (i) todo acordo de vontades (ii) entre duas ou mais partes (iii) destinado a constituir, regular ou extinguir (iv) uma relação jurídica (v) de natureza patrimonial.

Constata-se, entretanto, que tal conceito não é plenamente aplicável à figura do MOU, dado que neste é instituído entre as partes um acordo, tendo por objeto bens patrimoniais a elas disponíveis. Mas faltam outros elementos para que a figura se complete. Isto porque esse acordo não tem a natureza nem a força de uma relação jurídica em seu sentido estrito. Considere-se para tanto que, no plano da vontade, ao tempo das tratativas que redundam em um MOU, as partes ainda não se sentem juridicamente vinculadas uma à outra.  Ainda não há vínculo. É como se cada uma delas estivesse estudando o campo do adversário, digamos assim, sem ainda ter efetivamente começado o jogo. Uma imagem apropriada é a do simples namoro, que pode dar lugar a um noivado às antigas, e depois ao casamento, este, efetivamente situado no campo do contrato, correspondendo o segundo ao pré-contrato.

Logo, o MOU seria um instrumento prévio, a ser utilizado no contexto das negociações preliminares1, ao início das tratativas2, quando ainda resta indefinida, pelas partes, uma decisão quanto ao efetivo desejo de celebrar o negócio.

Assim, seu conteúdo busca estabelecer as regras da negociação, estipulando elementos como o rol de pessoas envolvidas, a previsão de um calendário de atividades e etapas, definição de premissas iniciais de consenso, responsabilidades por despesas, questões de sigilo e exclusividade, entre outros aspectos relevantes ao negócio3. Portanto, ele representa documento dedicado a orientar o trâmite das negociações, que permitirá às partes avaliar a conveniência de celebração futura do contrato.

É nesse sentido que a doutrina o explica. Por ter tais feições é que o jurista português José Engrácia Antunes o define como um acordo não contratual, integrante de um grupo de ¨instrumentos jurídicos, destituídos de natureza contratual, auxiliares da negociação de um dado contrato mercantil, que servem especialmente para determinar a forma como as negociações entre as partes contratantes se processarão (...)¨4. Engrácia Antunes destaca ainda que tratam-se de ¨puros acordos de negociação (agreement to negociate)¨, em que as partes se comprometem a exercer melhores esforços quanto às negociações, mas conservando a liberdade de celebrar ou não o contrato5.

3. O pré-contrato e o MOU

Como se percebe na utilização das partes quanto ao MOU, ainda que esteja presente uma perspectiva, não chegaram elas a estabelecer o nascimento, a tutela ou a extinção da aludida relação jurídica, ainda não formada.

Portanto, também não se configura, no caso, a figura do pré-contrato, dado que ele se destina a gerar um vínculo entre as partes, no sentido de compromisso de celebração futura de um contrato principal, em regra formal ou real, e dele já constando todos os elementos deste, deixando de ficar no plano das intenções, para localizar-se no da promessa.  Diversamente, portanto, ao MOU, que ainda não encerra tal promessa vinculante de celebração do contrato principal.

Inclusive, por ser o MOU figura que antecede a um eventual pré-contrato, suas disposições podem ser revistas no curso da negociação, podendo se ajustar até a definição do negócio. Tendo em vista essas circunstâncias, as partes criam um problema potencial para si mesmas quando inserem o conteúdo do MOU no conjunto literal do contrato efetivamente celebrado, como se fosse uma introdução a esse, ao qual se agregam eventualmente o pré-contrato que tenha sido celebrado, as definições nele adotadas, além de outros eventuais elementos. Isto porque, surgindo eventual e aparente discrepância entre o MOU e as demais partes do contrato, uma delas, não desejando cumpri-lo por qualquer razão, poderá se valer de má-fé e buscar guarida para as suas pretensões em um fato como esse. E a discrepância será verdadeiramente aparente na medida em que certos caminhos do negócio entre as partes, que haviam sido cogitados em suas tratativas, foram deixados de lado e substituídos por aqueles sobre os quais efetivamente deu-se o acordo.

4. Conclusão

Fica evidenciada assim a utilidade do instrumento denominado como MOU, destinado a nortear as negociações, anteriormente à decisão das partes em se vincular efetivamente.

Por fim, cabe relembrar que o conteúdo do documento é mais importante que o seu título. Ou seja, somente será efetivamente um MOU/protocolo de intenções quando seu conteúdo corresponde às funções acima destacadas. Porém, se o documento adota o nome de MOU ou protocolo de intenções, mas estipula vínculos contratuais, na prática estar-se-á falando de figura de outra natureza, ainda que adotando nomenclatura imprecisa. Assim, o autêntico MOU/protocolo de intenções é, conforme as lições de Luiz Olavo Baptista, um ¨acordo para negociar¨6.

_____

1 "Na formação do contrato, os interessados (ainda não na condição de partes) podem se valer de uma fase preliminar de tratativas, na qual o acordo ainda não está consagrado, mas já suscetível de gerar direitos e obrigações. Tal período de negociações é muito comum quanto a contratos mais complexos do ponto de vista de sua estrutura e do âmbito dos direitos e obrigações que as partes assumirão no futuro, uma vez que eles venham a ser efetivamente concluídos¨; conforme VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Direito comercial 4: Teoria geral do contrato. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 339.

2 Como observa Luiz Olavo Baptista: ¨Ao se limitarem a registrar o início das negociações, essas cartas de intenção visam também a impor às partes a obrigação de boa-fé no curso das tratativas, o que lhes permite, se assim o desejarem, em boa forma interromper o curso das conversações em chegar ao negócio¨. Conforme BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos internacionais. São Paulo: Lex editora, 2010, p. 157.

3 Nesse sentido: GAGGINI, Fernando Schwarz. Manual dos contratos empresariais. Indaiatuba, SP: Ed.Foco, 2022, p. 64.

4 ANTUNES, José A. Engrácia. Direito dos contratos comerciais. Coimbra: Almedina, 2009, p. 97.

5 Obra citada, p. 99.

6 BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos internacionais. São Paulo: Lex editora, 2010, p. 156.

Fernando Schwarz Gaggini
Advogado e professor universitário. Pós-graduado em Direito Mobiliário (Mercado de Capitais) e Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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