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A regulação pelo Cade e a ponderação de interesses

A imprensa noticiou amplamente que um dia após ter sido voto vencido na decisão colegiada do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que determinou a desconstituição da compra da totalidade do capital social da Garoto pela Nestlé, o Presidente daquela entidade, João Grandino Rodas, teria declarado que a decisão foi “radical e inconstitucional”, pois teria ultrapassado os limites da intervenção que o governo deve fazer no mercado para evitar atos que afetem a concorrência.

12/2/2004

A regulação pelo Cade e a ponderação de interesses

 

Sérgio Guerra*

 

A imprensa noticiou amplamente que um dia após ter sido voto vencido na decisão colegiada do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que determinou a desconstituição da compra da totalidade do capital social da Garoto pela Nestlé, o Presidente daquela entidade, João Grandino Rodas, teria declarado que a decisão foi “radical e inconstitucional”, pois teria ultrapassado os limites da intervenção que o governo deve fazer no mercado para evitar atos que afetem a concorrência. Independentemente de uma avaliação acerca da correção ou equívoco técnico da decisão da maioria dos Conselheiros do CADE, que decidiram no sentido de que não há “eficiências suficientes para compensar dano à concorrência e garantir a não redução do bem estar do consumidor”, a questão suscita um aspecto de superlativa importância no campo da regulação econômica por entidades regulatórias: a ponderação de interesses.

 

É certo afirmar que a regulação estatal das atividades econômicas é um ato legítimo do poder público, com vistas à conciliação de princípios constitucionais, dentre outros, o da livre iniciativa (art. 1o, IV, e 170, CF) e da livre concorrência (art. 170, IV, CF), com os princípios da dignidade humana (art. 1o, III, CF) função social da propriedade (art. 170, III, CF) e os direitos dos consumidores (art. 170, V, CF), tudo com vistas à redução das desigualdades sociais e bem estar geral.

 

Nos termos da nossa Carta Magna, ao Estado só é permitida a exploração direta de atividade econômica propriamente dita quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo (art. 173, CF), bem como nos casos de monopólios constitucionais (art. 176 e 177). Na esteira desse raciocínio, vigora entre nós o princípio da liberdade de iniciativa, tudo, repita-se, visando assegurar a dignidade da pessoa humana conforme os ditames da justiça social.

 

Por isso, desponta a importância dos freios e contrapesos legitimadores da constitucionalidade das restrições regulatórias à livre iniciativa privada. A bem da verdade, a Constituição declara que a ordem econômica deve assentar-se, conjuntamente, na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano. Ou seja, seu objetivo consiste em assegurar a todos uma existência digna, de modo que, em função desse objetivo, devem ser ponderados e harmonizados os demais princípios expressos no art. 170 da CF.

 

Nesse sentido, e partindo da premissa de que a regra é a liberdade, em que o empresário deve ser o senhor absoluto na determinação do que, como e quanto produzir, e por que preço vender, essa liberdade, como todas as outras, não pode ser exercida de forma absoluta, devendo observar alguns temperamentos. Com efeito, de acordo com os princípios e valores previstos em nossa Carta Constitucional, o Estado tem o poder-dever de intervir no mercado, regulando as atividades econômicas com vistas a combater a concorrência predatória e as falhas de mercado, de modo a evitar que o abuso do poder econômico ponha em risco a realização de outras garantias e valores constitucionalmente protegidos. Desse modo, resta evidenciado ser perfeitamente legítima a intervenção regulatória concorrencial, não podendo os agentes exploradores das atividades econômicas, sob o manto do princípio da liberdade de iniciativa, contestar esses atos quando razoáveis, proporcionais e que realizem a ponderação dos interesses pluralistas em jogo.

 

Malgrado essas premissas, no que tange à regulação de atividades econômicas lato sensu, exercida atualmente em múltiplos subsistemas pelas entidades regulatórias, a conciliação e convivência harmônica entre normas (princípios e regras) se traduz na ponderação de valores e interesses envolvidos. No estágio em que se encontra o pluralismo social há um conjunto de valores conflituosos, com numerosas dependências recíprocas, de modo que a intervenção regulatória, em um determinado aspecto do conjunto social (como no caso, o direito dos consumidores), acaba por refletir em outro seguimento (a valorização do trabalho humano).

 

Isso faz com que, em determinadas situações, os benefícios advindos da intervenção para um subsistema sejam irrazoáveis ou desproporcionais aos problemas e desvantagens que acarretarão para outros. Por isso, pode-se inferir que hodiernamente se demonstra inviável a busca de exaustiva regulação apenas à luz de determinado princípio, como, no caso em exame, o princípio da livre concorrência.

 

A adequação da ação regulatória, em vista dos diversos interesses abrangidos e diante das circunstâncias ecléticas que se apresentam no cotidiano, exige uma análise ponderada dos demais princípios em jogo. Na verdade, a regulação deve ser implementada por meio de uma interpretação prospectiva, que deve orientar o agente regulador, ponderando custos e benefícios da ação regulatória, não só à luz dos fatos passados, mas, em especial, voltada para o impacto futuro.

 

Nessa ordem de idéias, entende-se que deve haver uma releitura da concepção clássica da noção de interesse público, adotado como fundamento para a legitimação dos atos e medidas no âmbito da Administração Pública. No atual período pós-moderno, há, de maneira muito mais clara, necessidade de se perseguir uma verdade objetiva – e não absoluta – dando-se mais importância aos indivíduos. Vale dizer, dar maior relevo aos direitos individuais fundamentais.

 

Com efeito, impõe-se em nosso tempo a observância de uma atitude ponderada, diante do plexo de valores e interesses assegurados pela nossa Carta Magna, ou seja, é na ponderação de interesses em presença que se sustenta a legitimidade das normas constitucionais.

 

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* Advogado do Escritório Siqueira Castro - Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

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