Indubitavelmente, observa-se que a aprovação da lei n.13.146, de 2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência trouxe significativas alterações no ordenamento jurídico pátrio. O art. 1.767, do Código Civil, traz o rol de interditos - aqueles que estão sujeitos à curatela, incapacitados de exercerem alguns ou todos os atos da vida civil, todavia tal norma foi em parte revogada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. O inciso I do artigo em análise afirma que estarão sujeitos à curatela, os indivíduos que não puderem manifestar sua vontade, seja por causa transitória ou perpétua.
Nesse sentido, o civilista Flávio Tartuce1 (2019, p.729) utiliza o termo “revolução” para fazer menção a mudança provocada pela lei 13.146, de 2015, na teoria das incapacidades. Passou-se então a existir no ordenamento jurídico brasileiro apenas o maior relativamente incapaz, deixando de existir a figura do absolutamente incapaz, e apenas se mantendo nessa condição os menores de 16 anos.
Em primeira análise, cabe a compreensão do que vem a ser denominada incapacidade. Nesse tema ganha luz a explicação da Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Maria Helena Diniz2 (2021, p.171), que afirma que a incapacidade se trata de “uma limitação legal do exercício dos atos da vida civil.”
Isto posto, uma vez o indivíduo diagnosticado com a doença de Alzheimer e havendo laudo pericial que ateste a gravidade da demência, ele poderá ser considerado relativamente incapaz de exercer certos atos da vida civil, pois nessa fase da doença a pessoa perde a capacidade de se comunicar, de reconhecer e de se responsabilizar por seus atos. Nessa circunstância, se faz valer o instituto da curatela, que hoje se subsuma na representação dos maiores relativamente incapazes.
De acordo com o § 2°, do art. 753, do Código de Processo Civil, a necessidade de curatela e a definição dos atos para os quais existirá a indispensabilidade do instituto serão determinados por um laudo pericial, composto por uma equipe interdisciplinar (médico, psicólogo, assistente social...). E nesse contexto ganha notoriedade a menção de Washington de Barros Monteiro3 (1997, p.326) ao ensinamento de Pontes de Miranda, no sentido de afirmar que “cabe a medicina fazer o diagnóstico da alienação; à justiça apenas interessa saber se a doença mental, de que o paciente é portador, o torna incapaz de reger sua pessoa e bens.”
Segundo Flávio Tartuce4 (2019, p.711) a curatela é um predicamento assistencial para a salvaguarda dos interesses de maiores, corretamente interditados. Assim, logo se constata que a interdição precede a curatela, ou seja, essa é uma consequência lógica jurídica daquela.
Todavia a lei n. 13.146, de 2015, inebriou a ideia de interdição, mas no seu contexto trouxe a possibilidade do ajuizamento de ação judicial, que visa a nomeação de curador para os comprovadamente necessitados – interditos. Ou seja, alterou-se a forma, mas o conteúdo permaneceu tal como antes, haja vista que a permanência da palavra “interdito” no texto legal ainda traz a ideia de interdição, corolário jurídico dessa demanda.
No caso de uma pessoa diagnosticada com Alzheimer em estágio avançado será requerida a curatela sobre os atos da vida civil ligados as questões patrimoniais, cujo curador, em seu nome, realizará todos os atos de cunho pecuniário, levando-se em consideração o estágio avançado de sua doença versus a sua relativa incapacidade para gerir tais atos. O caput, do art. 85, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, traz o escopo, a abrangência quanto à curatela, disciplinando que “afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”. Reafirmando o foco da curatela, Francisco Amaral5 (2018, p. 339) afirma que tal instituto “limita-se apenas a administração dos bens” da pessoa curatelada.
Entremente, cabe aqui mencionar que um sujeito que ainda apresenta os primeiros sintomas da doença (Alzheimer) não pode ser considerado relativamente incapaz, sendo ele classificado como capaz, mas necessitado de que terceiros pratiquem certos atos da sua vida civil e em seu nome.
O caso concernente a pessoa com a patologia em fase inicial se trata de uma “interdição de pessoa capaz”, termo esse utilizado por Carlos Alberto Gonçalves6 (2021, p. 127), para fazer menção a novidade trazida pela lei n. 13.146, de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). A mencionada lei ordena no art. 84, § 1° que a pessoa com deficiência deverá, quando necessário, ser submetida à curatela. Ao comentar a respeito da norma transcrita acima, Carlos Alberto Gonçalves7 (2021, p. 127), mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, afirma que a locução “quando necessário” abarca “aqueles que, por causa permanente ou transitória, não puderem exprimir sua vontade”, ou seja, o inciso I, do art. 1.767, do Código Civil, categoria sujeita ao instituto da curatela. Em outras palavras, “curatela da pessoa capaz”, forma extraordinária e focada apenas nos atos de conteúdo patrimonial com poderes limitados do curador para tanto.
O indivíduo em fase inicial de Alzheimer, apresenta regiões do cérebro envolvidas em aprendizagem, memória, pensamento e planejamento, atingidas pela doença neurodegenerativa, porém, não apresenta tanto comprometimento cerebral como alguém que tem a doença em um nível mais avançado.
Sabe-se que não existe cura e tratamento para o Alzheimer, por conseguinte, a pessoa detectada com a patologia seja em qual grau for necessitará de apoio no presente e no futuro.
O pedido judicial relacionado ao indivíduo com a enfermidade no estágio inicial deverá se focar na causa transitória de ela não poder exprimir a sua vontade, claro, baseado no laudo médico. Destarte, a fundamentação jurídica para tal pedido terá fulcro no caput, do art. 84, da lei n. 13.146, de 2015, que no fundo terá o mesmo fim pretendido na hipótese de alguém com Alzheimer avançado, apenas, diferenciando os graus de capacidade de cada uma, a primeira considerada capaz e a segunda relativamente incapaz, isso dentro da nova realidade jurídica trazida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Deve-se ponderar que apesar do curatelado ter a sua capacidade de agir reduzida sobre certos atos da vida civil, a sua dignidade, prevista no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, permanece inviolada. Nesse sentido, ganha luz a jurisprudência do STJ, no RE n° 1.515.701, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, julgado em outubro de 2018, que enuncia a importância do caráter social da curatela, in verbis: “O curador deverá ter sempre em conta a natureza assistencial e o viés de inclusão da pessoa curatelada, permitindo que ela tenha certa autonomia e liberdade, mantendo seu direito à convivência familiar e comunitária, sem jamais deixá-la às margens da sociedade”.
Dado o exposto, deve-se mencionar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência, no art. 84, § 3°, traz à baila o fato da curatela de determinada pessoa com deficiência consistir em “uma medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso”. Conclui-se, portanto, que a pretensão quanto à curatela de alguém com Alzheimer inicial deverá ser diferente da demandada para um indivíduo com a doença em fase avançada, haja vista estarem com o sistema cerebral comprometidos em diferentes níveis.
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1 TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Direito de Família - volume 5, ed.14ª. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro - Teoria Geral do Direito Civil – volume 1, ed. 38ª. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
3 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Direito de Família – volume 2, ed. 34ª. São Paulo: Saraiva, 1997.
4 TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Direito de Família - volume 5, ed.14ª. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
5 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução, ed. 10ª. São Paulo: saraiva Educação, 2018.
6 GONÇALVES, Carlos Alberto. Direito Civil Brasileiro – Parte Geral – Volume 1, ed. 19ª. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.