Não raras as vezes em que o beneficiário de um seguro de vida se depara com a recusa da seguradora em pagar o capital contratado no seguro de vida, sob a alegação de que o segurado omitiu informações acerca do seu estado de saúde, por deixar de declarar a existência de doenças preexistentes à contratação.
Entretanto, nem sempre razão assiste à Companhia de Seguros. A Seguradora somente pode negar o pagamento da indenização do seguro de vida se exigiu exames médicos prévios à contratação ou se comprovar que, de fato, o segurado agiu com má-fé, ou seja, dolosamente mentiu com o objetivo de lesar a seguradora.
Isto porque, muitas vezes, eventuais declarações inexatas do segurado e/ou omissões, não são atribuíveis à má-fé e nem mesmo à erro/culpa do segurado, mas sim são decorrentes da influência do próprio comportamento da seguradora nesta fase pré-contratual.
Sim, de fato, o ponto de partida para a análise das razões pelas quais houve alguma inexatidão ou omissão, deve ser o comportamento da seguradora. É preciso considerar se a Companhia de Seguros cumpriu, de forma diligente, com as suas obrigações, quais sejam, fornecer as devidas e prévias informações ao proponente de seguro, solicitar-lhe o preenchimento de uma declaração de saúde, bem orientá-lo sobre o preenchimento, e, ainda, cuidar de elaborar perguntas de fácil compreensão, com a maior especificidade possível, objetivas e que não levem a respostas subjetivas.
Mas não é só. Há hipóteses em que a seguradora, para viabilizar as contratações em massa e agilidade na angariação de clientes, por política interna e baseada nos estudos atuariais e na chamada “lei dos grandes números” prefere não dar importância à obtenção de maiores informações acerca do estado de saúde do segurado.
Isto porque, o volume de contratações propiciados justamente pela agilidade nas contratações sem a devida obtenção das informações pré-contratuais, compensam dar cobertura para eventuais doenças preexistentes de alguns dos segurados contratantes. Nesta hipótese não há nenhum desequilíbrio contratual ao pagar sinistros decorrentes de doenças preexistentes, pois este fato foi calculado nos seus estudos técnicos, ou, ao menos, deveriam ter sido.
Margarida Lima Rego1 destaca que:
“.... pelo menos nos seguros de massa, seria impraticável uma rigorosa aferição do risco em cada caso concreto, pelo que os seguradores se contentam nesses riscos com a análise de um reduzido número de características de cada potencial novo caso, satisfazendo-se, em tudo o mais, com o funcionamento do princípio da mutualidade, que se basta com a equivalência global entre o valor dos prémios cobrados e o valor dos riscos homogéneos, ou até mesmo heterogéneos, assumidos na comunidade de riscos composta pelo conjunto dos seus segurados”.
O problema surge quando a seguradora age desta forma na contratação, mas na hora do sinistro tem conduta diametralmente oposta e desproporcional. Ou seja, na hora do sinistro contrata empresas especializadas (sindicâncias) para esmiuçar a vida do segurado, na busca de encontrar qualquer doença preexistente, para recusar o pagamento devido.
Neste caso, quem está agindo de má-fé não é o segurado. A diligência da seguradora na hora da contratação e da obtenção das informações acerca do estado de saúde do segurado há de ser proporcional à sua diligência na hora de regular o sinistro.
Se assim não for, ou a seguradora ágil de forma desidiosa e negligente na hora da contratação ou, por política interna, dispensou maior atenção, justamente por não ter relevância, ante as benesses propiciadas pela agilidade e volume de negócios angariados, conforme já dito.
Seja por uma razão seja pela outra, não pode atribuir ao segurado os ônus da sua própria conduta.
Para melhor compreensão do tema, importante discorrer um pouco acerca da mensuração do risco no contrato de seguro de vida, o que já tive a oportunidade de me defrontar em artigo de minha autoria, denominado “O comportamento da seguradora na coleta das informações pré-contratuais no seguro de vida e suas consequências”, publicado no livro “Antologia do Direito do Seguro”2, cujos trechos abaixo transcrevo:
“O risco, no contrato de seguro, é um elemento essencial. A companhia de seguros, com base nos seus estudos estatísticos e atuariais faz os cálculos de probabilidade da ocorrência do risco coberto pelo contrato. É através desse estudo que consegue saber o montante que deve cobrar de cada segurado para que possa constituir e gerir o fundo mútuo, de onde sairão os recursos para fazer frente ao pagamento das indenizações e dos capitais segurados garantidos.
Não é à toa que somente seguradoras legalmente constituídas e autorizadas a funcionar pelo Poder Público podem oferecer a garantia securitária. É preciso expertise e conhecimento técnico.
No seguro de vida, para elaborar seus estudos, além da estatística, das tábuas de mortalidade e outras informações que detém, a seguradora pode solicitar informações acerca do estado de saúde do segurado, bem como das suas atividades profissionais e estilo de vida.
Entretanto, justamente pelo fato do seguro se basear em experiências anteriores, em estatística, probabilidades e na chamada “Lei dos grandes números”, os estudos atuariais podem revelar que, em determinados casos, o questionamento acerca do estado de saúde dos contratantes é desnecessário ou de menor relevância, já que, levando-se em conta certas características do grupo segurado e do seu tamanho, os desvios relacionados a alguns segurados portadores de doenças preexistentes não interferem no resultado.
(...)
Judith Martins Costa, por sua vez, lembra3 que: “Se, inicialmente, diz Alberto Monti, era o segurador que sofria com a assimetria informativa, atualmente é o segurado que necessita de proteção para a sua posição. A tecnologia e a «transparência» na Sociedade da Informação ampliaram as possibilidades de o segurador mensurar o risco.”
Daí que cada seguradora, de acordo com os critérios adotados para a aceitação e mensuração dos riscos, solicita informações, por vezes mais completas e detalhadas, em outros casos, menos ou, até mesmo, dispensam tais informações, permitindo uma contratação automática, sem qualquer necessidade de informações acerca do estado de saúde do contratante.
Portanto, as declarações pré-contratuais do segurado podem ter maior ou menor relevância para uma determinada contratação. E, a seguradora não pode exigir do segurado informações completas e precisas se optou por não as solicitar, ou, ainda, se seu comportamento foi em sentido diverso.
Assim, nos casos em que a seguradora atribui pouca importância para as declarações pré-contratuais, a consequência imediata é a ilicitude de um comportamento contraditório, no sentido de se exigir do segurado que atribua importância exagerada às suas declarações. O comportamento há de ser proporcional.”
Conclui-se, portanto, que para além da verificação da conduta do proponente de seguros, é de suma importância a análise do comportamento da seguradora em questões envolvendo sinistros decorrentes de doenças preexistentes, para que se possa aferir a licitude ou ilicitude da recusa do pagamento do capital segurado.
São essas as minhas breves considerações sobre o tema, as quais, longe de pretenderem esgotar o assunto, objetivam a reflexão e o fomento do estudo e debate acerca da matéria.
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1 REGO, Margarida Lima – Contrato de Seguro e Terceiros – 1ª Edição, 2010, Coimbra, Editora Coimbra, pág 139
2 RAYMUNDO, Sandro (org.); CASSONI, César Augusto (org.). Antologia do Direito do Seguro: Estudos da Comissão de Direito Securitário da OAB/SP – Jabaquara/Saúde e de seus Convidados. São Paulo, Editora Oficina do Texto, 2021, pág 106/108;
3 MARTINS-COSTA, Judith - A boa fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação - Editora Saraiva. 2ª Edição, 2018, São Paulo, Edição do Kindle.