No rol dos argumentos pela premente reforma da Lei de Direitos Autorais, podemos destacar a falta de harmonia da nossa legislação com o entorno digital. Outra razão que remete à reforma é a Diretiva (UE) 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, e que lá entrou em vigor em junho de 2021 sobre direitos autorais e direitos conexos no Mercado Único Digital.
Decisivamente, é a ênfase mais atual na Europa e, por que não dizer, no mundo, no assunto objeto de tais abordagens. O dispositivo mais polêmico é o artigo 17, que, em breve resumo, impõe que todas as plataformas online de compartilhamento ou de distribuição de conteúdo justaponham filtros para averiguação de eventuais violações de Direitos Autorais. Visivelmente, o que for decidido para a Europa terá reflexos no Brasil.
Na primeira década dos anos dois mil foi significativa a marcha para se modificar a Lei de Direitos Autorais brasileira, amoldando-a aos novos escalões constitucionais e tecnológicos. O Ministério da Cultura patrocinou a possibilidade realizando vários diálogos com especialistas e demais atores envolvidos a respeito. Quanto às limitações dos/aos Direitos Autorais, previu em uma primeira glosa da reforma a inclusão de um parágrafo único no artigo 46 da Lei de Direitos Autorais, viabilizador da utilização lícita da obra autoral para objetivos educacionais, didáticos, informativos, de pesquisa ou para uso como recurso criativo, feita na medida justificada para o fim a se atingir, sem prejudicar a exploração normal da obra utilizada e nem causar prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.
Esta escrita foi alterada em glosas posteriores da proposta 1. Não logrando progresso a probabilidade de melhoramentos da Lei de Direitos Autorais no final do primeiro e início do segundo decênio deste século, retornou o governo federal à iniciativa em 28 de junho de 2019, convocando outra consulta pública pelo prazo de 60 dias sobre a necessidade e possibilidade da reforma da Lei de Direitos Autorais, desta vez por intermédio da Secretaria Especial da Cultura, setor então do Ministério da Cidadania. As propostas, todas em sigilo de autoria, foram consolidadas em relevante documento oficial disponibilizado em abril de 2020. 2. Dispõe-se, na totalidade, o primeiro 3 dos diversos gráficos publicados na segunda parte do documento, este atinente às origens/fontes das inúmeras proposições apresentadas 4. E o segundo 5, de igual sorte bastante abundante em informações 6.
Em 20 de janeiro de 2021, obtive audiência com a então Secretária Nacional de Direito Autoral e Propriedade Intelectual, professora Gláucia Tamayo Hassler Sugai. Na agenda, um colóquio muito propositivo de aproximadamente uma hora a respeito da situação da consulta pública sobre as reformas da Lei de Direitos Autorais. A então competente pela área no âmbito federal garantiu que naquele ano de 2021 prosseguiria o processamento das reformas.
Também obtive da respectiva Secretária todas as contribuições que foram ofertadas para a reforma dos Direitos Autorais no Brasil; está analisando detidamente uma por uma, todas com tarjas nas partes identificadoras da origem das proposições. Algumas são de redação curta, com uma ou duas páginas, outras são mais extensas e fundamentadas, com 30, 40 e até com 50 páginas. Há também instituições estrangeiras que se apresentaram ao debate. Quatro destas propostas foram construídas em língua inglesa e uma foi apresentada em língua espanhola 7.
Bom número de sugestões está ligado às obras musicais. Mesmo com a viabilidade de pesquisa mais ampla na publicação oficial já referida, destaco em ordem alfabética os principais assuntos apurados e que foram objeto de sugestões:
Adoção de modelos alternativos como o de “notificação e notificação” (notice and notice); auditorias das instituições de gestão coletiva e do ECAD; autoria e titularidade; atuação do ECAD; boa-fé nos contratos de cessão e de licença de direitos autorais; cessão dos direitos autorais; cláusula geral de limitações aos direitos autorais; camadas adicionais para as obras em domínio público; combate à pirataria; combate às violações de direitos autorais; cópia de obra para preservação, obras esgotadas, obras órfãs e limitação de responsabilidade para bibliotecários, arquivistas, museólogos e profissionais de instituições preservacionistas; cópia privada; critérios de indenização; critérios de reconhecimento de coautoria; direitos morais de obras caídas em domínio público; função social dos Direitos Autorais; direitos autorais e internet; direito de sequência; direitos morais de autor; direitos patrimoniais de autor; distribuição digital; duração dos direitos autorais; jogos eletrônicos, histórias em quadrinhos, roteiros, argumentos, performance, e personagens; letras de músicas; limitações aos direitos autorais; limitações para instituições de memória; museus, bibliotecas e instituições culturais sem fins criativos; música no mundo digital; objeto dos Direitos Autorais; obras órfãs; obra por encomenda e contrato de trabalho; parcerias com detentores de direitos; pessoa jurídica e inteligência artificial; produção audiovisual; registro de obras intelectuais; responsabilidade dos intermediários e provedores de internet; setor do livro; streaming; titularidade; uso de pequenos trechos de obras; videogames.
Enquanto isso, em 9 de fevereiro de 2022, o ministro da Casa Civil editou a Portaria 667 que explicitou as matérias em tramitação no Poder Legislativo tidas como prioritárias ao Poder Executivo, a assim titulada “Agenda Legislativa Prioritária do Governo Federal para o ano de 2022”. Organizada em nove temas básicos e em 42 questões prioritárias, não há em seu texto qualquer citação aos Direitos Intelectuais, muito menos aos Direitos Autorais 8.
Em 8 de março de 2022, mantive novamente diálogo propositivo com Felipe Carmona Canteira, Secretário Nacional de Direitos Autorais, que detalhou bastante motivado a sua interpretação e do governo federal sobre os Direitos Autorais em sentido amplo e de vários institutos autoralistas em destaque. Também aludiu que sua pasta organizou um anteprojeto de reforma da Lei de Direitos Autorais que foi remetido à Casa Civil da Presidência da República.
Repisa-se, desta feita, que as políticas públicas são fundamentais na solução do problema. E é imprescindível o diálogo com a comunidade artística e jurídica para logo, a respeito da reforma da Lei de Direitos Autorais. Antes e simultaneamente a essa diligência, no âmbito interpretativo 9. Em tal intensidade dos Direitos Autorais não como um fim por si só, como também da própria ideia da figura do autor neste turbilhão 10.
Em resumo, os Direitos Autorais não podem estar submissos à simples ideia de “propriedade” esteiada na vertente liberal, mas devem ser visualizados de modo mais extenso possível, submetidos à sua função social que se realiza indubitavelmente no intuito de levar informação, conhecimento e cultura ao maior número exequível de pessoas 11.
Persistir na interpretação estreita do patrimonialismo seria retrocesso social e jurídico, que afortunadamente encontra vedação principiológica em nosso complexo jurídico para a concretização eficaz de um Direito inclusivo, solidário e altruísta 12.
Como já teve ensejo em outro momento, é preciso enfatizar-se que devemos buscar qual é o fim dos Direitos Autorais como objetivo 13, ainda que no “caos criativo” da sociedade da informação 14. Seria agora, e com a apropriação de título de excelente obra do Professor Cândido Rangel Dinamarco 15, a “reforma da reforma” do Estatuto Autoral brasileiro? Ficam as contribuições e o questionamento.
Este artigo é uma singela homenagem a José de Oliveira Ascensão, o ser humano mais generoso que conheci no mundo acadêmico.
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1. MONCAU, Luiz Fernando Marrey. Liberdade de expressão e Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015, p. 100.
2. BRASIL. Ministério do Turismo. Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual – SDAPI. Departamento de Política Regulatória – DEPRG. Dados consolidados da consulta pública sobre a reforma da Lei de Direitos Autorais e as reservas do Tratado sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas da OMPI (WPPT) e o Tratado de Pequim sobre interpretações e execuções audiovisuais. Disponível em: https://www.gov.br. Acesso em: 15 fev. 2022.
3.https://drive.google.com/file/d/13YJ_xuP5rs-uqLvSiLV32zfs62CdBOTT/view
4.BRASIL. Ministério do Turismo... Op., cit., p. 295.
5. https://drive.google.com/file/d/1I18JUjQljzaMAgJo4Ux29Flko-XAPrub/view
6. Id., p. 296.
7.Uma das propostas é muito particular e descrente nas viabilidades de reforma autoralista. Afirma que não vai alvitrar modificações, já que a Diretiva de Direitos Autorais europeia vai “acabar com a internet de lá”, assim não é necessário trazer esta lei para o nosso país.
8. BRASIL. Casa Civil da Presidência da República. Portaria n. 667, de 09 de fevereiro de 2022. Define a Agenda Legislativa Prioritária do Governo Federal para o ano de 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br. Acesso em: 16 fev. 2022.
9.Como propugna em conclusão de sua excelente pesquisa, Eduardo J. Guedes Magrani (Exceções limitações no Direito Autoral: críticas à restritividade da lei brasileira, historicidade e possíveis soluções. Revista da EMARF, Rio de Janeiro, v. 30, n.1, p. 197, maio/out. 2019): “A compreensão da dupla função do direito autoral leva o aplicador do direito a ponderar os valores protegidos em sede constitucional, devendo valer-se de um regime amplo de limitações, levando em conta outros dispositivos constitucionais que não apenas aqueles diretamente ligados à tutela geral do direito autoral.” Maristela Basso (As exceções aos direitos do autor e a observância da regra dos três passos (three-step-test). Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 102, p. 503, jan./dez. 2007. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ rfdusp/issue/view/5436. Acesso em: 9 fev. 2022) é também detalhista: “Toda vez que um dos steps da regra dos três passos for infringido, não se dirigindo o uso da obra para fins de interesse público, estaremos diante de violação aos direitos fundamentais dos autores de auferirem benefícios a partir de seus trabalhos, consoante o disposto no art. 5º, incisos XVII24 e XXIX25, da Constituição Federal, de 1988.”
10. Como patrocina SASS, Liz Beatriz. Autoria na sociedade informacional: fim do gênio criador? In: WACHOWICZ, Marcos. Direito Autoral & Marco Civil da Internet. Curitiba: Gedai, 2015, p. 103.
11.Continuam evidentemente fazendo parte do Direito Privado, porém com outras entonações, mais funcionalistas. Por falar nisso, em 1950 René Savatier (Du Droit Civil au Droit Public. Paris: Librairie Génerale de Droit et de Jurisprudence, 1950, p.64) já enfatizava esta conexão entre público e privado.
12.Nas palavras de SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos Direitos Sociais num contexto de crise. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, v. 1, n. 2, p. 163, 2004.
13.ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. O fim da propriedade intelectual. In: BORTOLANZA, Guilherme; BOFF, Salete Oro (Coord.). Direitos Fundamentais e novas tecnologias. Florianópolis: Conceito, 2012, p. 128.
14. A expressão é de Manuel Castells (Ruptura: la crisis de la democracia liberal. Madrid: Alianza, 2017, p. 122) para concluir que possivelmente viver no caos não seja tão negativo como conformar-se à disciplina de uma ordem.
15.DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma. São Paulo: Malheiros, 2003.