O ano de 2022 ainda está longe de terminar, mas já é possível afirmar que ficará para sempre marcado na história das Relações Internacionais e do Direito Internacional como o ano em que a Rússia, de Vladimir Putin, atacou e invadiu a Ucrânia de Volodymyr Zelensky, causando preocupações em toda a Comunidade Internacional e trazendo lembranças muito vivas de uma nada distante Guerra Fria.
Em períodos como estes, de insegurança e incerteza, é natural nos socorrermos ao Direito Internacional, responsável por orientar as relações entre os Estados Soberanos e ao Direito Internacional Humanitário, incumbido de regulamentar os conflitos armados, para tentarmos traçar paralelos com situações vividas anteriormente e buscar maneiras variadas de resolução do conflito.
O mundo assiste diariamente e em tempo real o desenrolar do embate entre Rússia e Ucrânia, o que certamente pode ser considerado o maior conflito armado em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial e traz a sensação de que estamos presenciando o fim de uma era de relativa estabilidade global.
Porém, é importante ressaltar que essa guerra que assistimos e acompanhamos diariamente está longe de ser o primeiro confronto existente desde o final da Segunda Guerra Mundial ou o único ocorrendo no momento. Há diversos conflitos ativos ao redor do mundo, sendo possível citar as: Guerra do Iêmen; Síria; Myanmar; Sudão do Sul entre outras. Simultaneamente, ainda observamos uma escalada de tensão em diversas partes do globo, como o que ocorre entre China e Taiwan, além de diversos ataques terroristas nos mais diversos países.
O que faz com que este conflito específico ganhe notoriedade é, por óbvio, o poder bélico envolvido, principalmente pelo lado russo e sua capacidade nuclear; o espanto causado pela violação da soberania estatal por outro Estado soberano e o potencial de se tornar um conflito global, já que alianças militares podem entrar em jogo e elevar a situação para algo inimaginável até alguns anos atrás.
O temor gerado por uma possível Guerra Nuclear é totalmente compreensivo, já que o poder destrutivo desse tipo de armamento pode colocar em risco não só a segurança dos diretamente envolvidos e seus vizinhos, como de toda a população mundial. Por outro lado, é importante observar que existência de armas nucleares, por si só, é a responsável por ser um dos maiores obstáculos para seu uso, visto que, uma vez utilizada provocaria resposta imediata das demais nações possuidoras de armamentos dessa natureza, o que poderia resultar no que é conhecido na doutrina militar como “MAD” - Mutual Assured Destruction (Destruição mútua assegurada), ou seja, tanto o agressor como o defensor seriam destruídos.
A tensão entre Rússia e Ucrânia não começou de uma hora para a outra. Ambos os países possuem raízes em comum; compartilham histórias que, ocasionalmente, se confundem e se complementam, mas também dividem e individualizam cada nação. No início do século XX a Revolução Russa (1917) abriu caminho para a independência da Ucrânia em 1918.
Posteriormente, a Ucrânia que hoje conhecemos foi dominada pelos soviéticos e passou por grandes dificuldades na Primeira Guerra Mundial, ficou marcada pelo Holodomor (1932 – 1933), onde milhões de pessoas morreram de fome em razão das políticas do ditador russo Josef Stálin e durante a Segunda Guerra Mundial chegou a ser invadida pelos nazistas, sendo retomada pelos soviéticos e conseguindo sua independência novamente apenas em 1991 com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Mesmo com a Ucrânia novamente independente e o fim da União Soviética, a Rússia ainda teve o país atualmente governado por Zelensky, e grande parte do leste europeu, sob sua forte esfera de influência, o que mudou consideravelmente nos últimos anos em razão de diversos fatores.
Em 2013, movimentos e negociações que visavam aproximar a Ucrânia da União Europeia foram interrompidos pelo então presidente ucraniano pró-Rússia, Viktor Yanukovich, que optou por fortalecer os laços com Moscou. Essa estratégia não teve o desfecho esperado e resultou em uma série de protestos que ficaram conhecidos como Euromaidan, fazendo com que o então presidente fosse deposto e a Rússia perdesse parte da influência na região.
No ano seguinte, o país de Vladimir Putin invadiu e anexou a região ucraniana da Criméia, importante território com acesso ao Mar Negro e que é crucial para entender o conflito atual. Pode-se dizer que a atitude russa já serviu como uma espécie de “recado” mostrando que o Kremlin não abriria mão de sua esfera de influência facilmente.
Na época em que a Criméia foi anexada, a Comunidade Internacional foi pega de surpresa, tendo em vista que não houve qualquer embasamento legal que legitimasse a ação. Basicamente, o uso da força por um Estado Soberano é autorizado pelas regras de Direito Internacional em casos de autodefesa ou com autorização expressa do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU), salvo específicas e limitadas exceções.
Inexistindo justificativas e violando expressamente o Artigo 2 da Carta da ONU, que prevê que todas as controvérsias internacionais serão resolvidas através de meios pacíficos e evitando qualquer tipo de ameaças ou o uso da força, a Rússia já veio a sofrer sanções internacionais ainda no ano de 2014.
“Artigo 2
3. Todos os membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais.
4. Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou
qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.”1
Neste contexto entra em cena a região de Donbass, também de suma importância para compreender a guerra atual. Cerca de um mês após da anexação da Criméia, grupos separatistas pró Rússia tomaram o controle de áreas no território ucraniano, o que levou a suspeitas de que esses grupos contaram com o apoio militar russo, hipótese veementemente negada por Moscou
Originou-se uma série de confrontos envolvendo ucranianos e forças separatistas pró Rússia na região que se estendeu entre os anos de 2014 e 2015 e foi aliviado por um conjunto de medidas que ficaram conhecidas como Acordo de Paz de Minsk (2015), intermediado por França e Alemanha.
Posto isso, chegamos em 2021. Apesar dos conflitos na região nunca cessarem, houve nova escalada de tensão entre Rússia e Ucrânia, em razão do crescimento da presença militar russa na região da Criméia, juntamente com outras localidades do país liderado por Vladimir Putin que dariam rápido e fácil acesso à fronteira ucraniana. Em seguida, verificou-se também movimentações militares em Belarus, país aliado de Putin. Todas justificadas como exercícios militares.
No início de 2022, efetivando o temor da Comunidade Internacional, o Kremlin adentrou o território Ucraniano em 24 de fevereiro. Diferentemente do que foi feito em 2014, Moscou utilizou como justificativa para sua incursão militar a aproximação entre Ucrânia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a presença de grupos neonazistas no país, que colocariam em risco a integridade territorial russa; bem como a existência de pessoas na região de Donbass que se identificavam como russos, o que geraria a necessidade de protegê-los.
Observa-se que a Ucrânia realmente possui essa dualidade, com a população mais a Oeste do país tendo uma proximidade com os vizinhos europeus e possuindo um sentimento nacionalista mais forte, enquanto parte de seus compatriotas do leste realmente se identificam com a Rússia.
Assim, a justificativa do governo russo procura utilizar a Autodeterminação dos Povos, prevista na Carta da ONU como um dos propósitos da organização intergovernamental, em conjunto com a possibilidade do uso da força com base na autodefesa para fundamentar uma operação militar na região.
Ocorre que, não há de se confundir autodeterminação dos povos com o direito de secessão, ainda mais quando realizado por um país estrangeiro embasado no uso da força. Verifica-se ainda que, em desacordo com a justificativa de Moscou, a invasão à Ucrânia já ultrapassou a região de Donbass e onde estariam localizadas as pessoas que fariam parte da “população russa”.
Deste modo, fica claro que a intenção russa com a invasão não se resume àquela externada inicialmente e busca também manter a histórica influência do Kremlin no leste europeu, ameaçada pela proximidade com a União Europeia e OTAN.
Nota-se ainda que o timing escolhido para dar início à invasão também aparenta ter sido cuidadosamente planejado. A Ucrânia, que há tempos se aproxima do bloco econômico e da aliança militar, foi atacada em um momento em que efetivamente não faz parte de nenhum deles e, logo, não pode contar com a proteção dos países signatários do Tratado.
A invasão da Ucrânia corrobora o que foi observado em outras investidas militares de Putin, como na Chechênia em 1999 ou na Síria recentemente: a brutalidade e suspeitas de crimes de guerra acompanham o exército de Moscou por onde ele passa. Bombardeios em escolas, hospitais, templos religiosos e táticas como os bombardeios em sequência, em que um segundo explosivo é lançado pouco tempo após o primeiro, visando atingir aqueles que estão prestando socorro e causar o maior dano possível, são frequentemente observadas nos campos de batalha.
O Estatuto de Roma, ao qual o Brasil é signatário (Decreto 4.388, de 25 de setembro de 2002) e que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), dispõe, juntamente com as Convenções de Genebra2, sobre os crimes de guerra e as regras que devem ser observadas pelos combatentes durante um conflito armado.
Nem Ucrânia, tampouco a Rússia são signatárias do Estatuto de Roma. No entanto, o país de Volodymyr Zelensky aceitou a atuação do Tribunal em seu território e eventual condenação do presidente russo, com a consequente expedição de mandado de prisão, certamente causaria constrangimento perante a Comunidade Internacional e minaria alguns compromissos em países signatários do Estatuto.
Atualmente, os investigadores do TPI já se encontram em solo ucraniano em busca de indícios e provas de algum dos quatro tipos penais que forçariam a atuação do Tribunal por afetarem a ordem jurídica internacional.
“Artigo 5º
Crimes da Competência do Tribunal
1. A competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes:
a) O crime de genocídio;
b) Crimes contra a humanidade;
c) Crimes de guerra;
d) O crime de agressão.”3
Esses institutos visam proteger a população civil tipificando ações que abrangem desde os já citados bombardeios a hospitais e escolas, até violência sexual ou outros atos desumanos intencionais que causem sofrimento e afetem gravemente a integridade física ou mental da sociedade.
Deste modo, os bombardeios realizados a hospitais das cidades de Mykolaiv4 e Mariupol5; o massacre que resultou em centenas de civis mortos nas ruas de Bucha6 e tantas outras acusações que observamos diariamente na mídia, tendem a ser classificados como “crimes de guerra”, desde comprovada a autoria russa que até o momento nega as acusações.
Apesar das investigações por parte do Tribunal Penal Internacional já terem iniciado, o resultado de eventual julgamento e condenação dos indivíduos responsáveis ainda está longe de ser vislumbrado. Até o momento, as principais consequências sofridas pelo Kremlin são de caráter econômico e buscam enfraquecer a moeda russa em um cenário internacional, causando, além de prejuízos financeiros, insatisfação por parte de sua população e repúdio à “Operação Militar” na Ucrânia.
O outro lado da moeda também há de ser observado, já que sanções econômicas em excesso podem causar impactos indesejados em outros países, afinal, uma economia enfraquecida deixar de realizar compras e pagar seus débitos existentes, o que naturalmente iria refletir em demais nações.
Por fim, no dia 07 de Abril de 2022, a Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas determinou que a Rússia deve ser suspensa do Conselho de Direitos Humanos em razão das possíveis violações de direitos verificadas na Ucrânia7. O Brasil, junto de outros 57 países, se absteve da votação.
O que fica até o momento é o questionamento acerca de quando se dará o fim desse conflito que já vitimou milhares de combatentes e civis, para tanto, nos resta aguardar o desenrolar dos próximos atos e ansiar por negociações frutíferas capazes de levar paz à região.
1 Carta da Organização das Nações Unidas: https://brasil.un.org/sites/default/files/2021-08/A-Carta-das-Nacoes-Unidas.pdf
2 http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/normativa_internacional/Sistema_ONU/DH.pdf
3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm
4 https://oglobo.globo.com/mundo/guerra-na-ucrania-tres-hospitais-de-mykolaiv-sao-bombardeados-em-dois-dias-1-25464248
5 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60683056
6 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60974457
7 https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/onu-decide-suspender-russia-do-conselho-de-direitos-humanos/