Dentre os vários conceitos de justiça, destaca-se o de Ulpiano, que vê a justiça como dar a cada um o que é seu. Mas como dar a cada um o que é seu quando o seu lesa a outrem? Eis o dilema do aborto.
O mundo, e especialmente a américa latina, tem sido palco daquilo que podemos denominar de metamorfose social, conceito que denota grandes mudanças e transformações no âmago da sociedade, mudanças estas que acontecem inicialmente no intelecto coletivo, refletindo consequentemente nas leis. Pois como racionalmente se aprende nos primeiros períodos da academia de direito, e inteligentemente observa Ítalo Miqueias da Silva Alves: “o direito se modifica na medida em que a sociedade muda, ou seja, acompanha a evolução da sociedade, o que nos leva a crer que o direito não é estático e nem absoluto, ou seja, se relaciona com o tempo e o contexto social, político ou moral da sociedade.”
Dentre tais mudanças, as mais significativas se referem aos grupos sociais minoritários, que estão cada vez mais se fazendo ouvir e galgando espaço na política, nas mídias e por conseguinte, no direito. Como por exemplo, as mulheres trans que foram recentemente beneficiadas por uma decisão emanada pelo STJ, na qual a corte decidiu por aplicar os dispositivos da Lei Maria da Penha também a esse grupo. Tais transformações evidenciam na prática o entendimento supracitado, de que o direito acompanha as mudanças sociais.
Na mesma senda, vem a interrupção da gravidez pela mulher, que desde sempre foi levantada como pauta e bandeira por pessoas, grupos e partidos políticos ligados ao campo da esquerda ideológica. Ocorre que, nos últimos anos esse clamor tem se tornado cada vez maior e mais ensurdecedor, sendo ecoado principalmente através das mulheres feministas, fazendo com que, consequentemente seja ouvido pelos governantes, estes nos quais por força do poder que lhe é conferido pela Constituição, alteram a legislação, favorecendo o anseio social, ainda que por vezes não seja esse o procedimento.
Pois bem. É sabido que a vontade do povo é soberana, devendo ser ouvida, respeitada e atendida, como obviamente deve ser em toda e qualquer sociedade dita democrática, inclusive em nosso país, no qual tal vontade soberana do povo é brilhantemente consagrada pela nossa Carta Magna de 1988. Mas apesar disso, o ponto nodal quando se trata da discussão acerca da interrupção da gravidez e da morte do feto no ventre da mulher, encontra-se presente na problemática colisão entre direitos fundamentais. Digo problemática pois quando há o choque entre dois direitos garantidos, no caso, o direito à liberdade e o direito à vida, há também a relativização de um deles pelo outro, e na maioria esmagadora das vezes, tal relativização se faz de maneira errônea por aquele que legisla, pois não a faz com base no que realmente deve imperar, a justiça, mas com base em suas convicções e interesses políticos.
Ao se tratar de casos onde dois direitos se colidem e onde vidas e liberdades estão em jogo devemos nos perguntar: qual a coisa certa a fazer? Afinal, agir com justiça é agir de forma correta, mas como agir de forma correta em situações como essa? Para elaborar a minha resposta pretendo fracioná-la em duas partes, a primeira diz respeito a máxima da proporcionalidade, já a segunda deriva da própria distinção entre o feto e o corpo da mãe.
I. Princípio ou máxima da proporcionalidade
A resposta mais óbvia encontra-se na adoção da máxima da proporcionalidade ou ponderação. Por esta máxima entende-se que o direito fundamental que possuir “maior peso” diante das circunstâncias do caso concreto deverá prevalecer sobre o outro, o que necessariamente não invalida o outro direito que for tido como de menor peso.
Pois conforme define Robert Alexy, em sua obra sobre Teoria dos Direitos Fundamentais (2008, p. 93):
As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem, o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido, um dos princípios terá que ceder.
Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições.
Ainda da leitura da Ilustre obra de Alexy, percebe-se que o autor infere caráter principiológico às normas de direitos fundamentais. Portanto, pela máxima da proporcionalidade, adota-se a ponderação para solução da colisão entre os direitos fundamentais.
Aplicando tal entendimento ao caso em tela, não é difícil observar que deve sobrepesar o direito à vida em relação ao direito à liberdade, uma vez que aquele ao ser perdido jamais voltará ao plano da existência.
Essa relativização de um direito fundamental em prol da adoção de outro de maior peso no caso concreto, demonstra que não há direitos ilimitados e nem absolutos.
Sobre isso, aduz Alexandre de Moraes (2018, p. 70):
Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites, nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna, princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas.
II.Corpos distintos. A invocação de um direito para o cometimento de um ilícito.
Há de se destacar ainda a controvérsia que se apresenta quando do uso do direito fundamental à liberdade para fins de interrupção da gravidez, isto porque, aqueles que o invocam para tal fim, por vezes não raciocinam sobre a distinção entre corpos distintos coabitando no mesmo espaço, no caso o feto e a mãe. Ora, não são ambos uma só pessoa, mas duas, vivendo e existindo de forma interligadas. De maneira que, invocar o direito à liberdade no caso de aborto, denota a ideia de que o agente deseja cometer um ilícito, tirar a vida de outrem, sem ser por isso responsabilizado.
Portanto, os que fizeram, fazem ou pretendem fazer uso do direito fundamental à liberdade, para protestar em favor da liberdade da mulher decidir o que fazer com a gravidez, assim procedem de maneira equivocada, pois “os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.” (MORAES, Alexandre de. 2018, p. 70)
Não foi por mero capricho que o legislador infraconstitucional resolveu inserir o aborto no capítulo dos crimes contra a vida e tipificá-lo nos arts. 124 ao 127, mas pela gravidade da conduta que se demonstra ao negar a vida a outrem, ainda que esse outro se encontre na condição de feto, o que não o desqualifica ou descaracteriza como ser vivente, a vida não lhe pode ser tirada de maneira arbitrária, e neste sentido brilhantemente prevê o art. 4º do Pacto de San José da Costa Rica, no qual o Brasil é signatário:
Art. 4º. Direito à vida
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei, e em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
Assim sendo, um direito fundamental jamais pode ser usado como arma para o cometimento de práticas e/ou condutas ilícitas.
Concluo aqui minha breve exposição afirmando que a flexibilização do aborto pela lei e seus operadores no mundo e na américa latina se mostra portanto preocupante, pois quando o poder legislador não adota os critérios corretos para deliberar sobre o assunto, acaba legitimando uma conduta gravosa e diretamente atentatória à vida, negando ao outro um direito fundamental, que no choque com o da liberdade deve prevalecer.
“Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laede, suum cuique tribuere” – “Os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu.” (ULPIANO, Domicio).
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ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 1. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 34. Ed. São Paulo: Atlas, 2018.
ALVES, Ítalo Miqueias da Silva. A história do Direito e seus aspectos sociais tendo em vista a formação do Direito contemporâneo. Jus.com. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61138/a-historia-do-direito-e-seus-aspectos-sociais-tendo-em-vista-a-formacao-do-direito-contemporaneo#:~:text=O%20direito%20se%20modifica%20na,pol%C3%ADtico%20ou%20moral%20da%20sociedade. Acesso em: 14 abr. 2022
Convenção americana sobre direitos humanos. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm Acesso em: 15 abr. 2022