Sempre defendi que o roubo de carga não exclui a responsabilidade civil do transportador rodoviário.
Devedor que é de obrigação de resultado e protagonista de atividade de risco, ao transportador não aproveita a alegação de roubo como causa legal excludente de responsabilidade (força maior).
Ao menos não em um país como o Brasil, onde roubos de cargas em transportes rodoviários são fatos comuns.
Quem transporta mercadorias sabe que pode ser vítima de roubo a qualquer momento. Trata-se, portanto, de risco conhecido, previsível e esperado em grandes medidas.
O roubo é algo tão comum que há até mapeamento de sua ocorrência. Rodovias e estradas mais suscetíveis, por exemplo.
Há ainda coberturas e seguros específicos para tanto.
Postulando em defesa dos interesses dos seguradores sub-rogados nos direitos e ações dos segurados (donos de cargas) consegui, cerca de duas décadas atrás, muitas vitórias judiciais contra transportadores rodoviários.
Naquele tempo, a Justiça entendia que o roubo não tipificava força maior e, então, impunha aos transportadores o dever de ressarcirem em regresso os prejuízos suportados pelos seguradores.
Fiquei muito feliz e envaidecido com as vitórias.
O bom momento, porém, não durou muito. Depois de algum tempo de ventos favoráveis, meu barco ficou a deriva e passou a navegar contra ventania de decisões desfavoráveis.
A situação mudou radicalmente e a justiça passou a considerar o roubo, em que pesem a previsibilidade (e, até esperabilidade) e a existência de cobertura securitária, como fenômeno alinhado ao conceito de força maior.
Rapidamente, as vitórias foram substituídas por derrotas. O tiro de misericórdia foi um caso julgado em recurso especial, com até então vitórias em dois graus de jurisdição, com agravamento do risco pelo transportador rodoviário, em que o STJ prestigiou a tese da força maior.
Então, ainda que a contragosto, passei a não mais opinar favoravelmente ao ajuizamento das ações, embora muito a contragosto.
Uma coisa é acreditar em uma tese e a considerar boa. Outra, bem diferente, é nela insistir em momento histórico em que praticamente todos os órgãos do Poder Judiciário têm posição contrária.
Confiança não se confunde com vaidade e a coragem (aquela veraz) não renuncia à prudência.
Sem desistir da tese, coloquei-a para descansar e aproveitei para estudar dados, fatos, a fim de melhorar os argumentos jurídicos.
Como não abandonei a tese, passei a opinar pela busca do ressarcimento em regresso somente em casos com algum tipo de falha operacional do transportador rodoviário.
E não uma falha qualquer, mas aquela capaz de verdadeiramente agravar o risco ou romper o conceito de força maior.
Em termos práticos e concretos: mesmo em se tratando de situação informada pela responsabilidade objetiva, adotei elementos próprios da subjetiva, uma espécie de reversão da carga dinâmica da prova.
Funcionou em não poucos casos. Em outros, não.
Essa forma de encarar ao assunto pode ser explicada da seguinte forma: ao transportador compete o dever geral de cautela (art. 749 do Código Civil). Se ele o respeitou em um caso de roubo, o selo da força maior se lhe é garantido.
Em outras palavras, para que o transportador possa ou não ser exonerado de responsabilidade por roubo, faz-se imprescindível notar se ele não se desviou dos protocolos de segurança, dos cuidados inerentes à sua atividade (lex artis), das normas de gerenciamento de riscos.
A depender das circunstâncias, o transportador poderá ou não ser beneficiado pela força maior, sendo que o ônus da prova competirá ao interessado, a despeito da incidência da responsabilidade objetiva.
Recente decisão colegiada reconhece isso de forma muito clara:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE REGRESSO - INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA - TRANSPORTE DE CARGA - ROUBO - RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR - CASO FORTUITO / FORÇA MAIOR - OMISSÃO DE CAUTELA - AFASTAMENTO DA EXCLUDENTE - CULPA CONCORRENTE - EMPRESA GERENCIADORA DE RISCOS - OCORRÊNCIA. Em regra, o crime de roubo exclui a responsabilidade (caso fortuito / força maior) da transportadora pela perda da carga, exceto quando demonstrado que ela não adotou as medidas cabíveis e exigíveis para diminuir o risco do sinistro. Há culpa concorrente quando a empresa gerenciadora de riscos também descumpre suas obrigações contratuais e, com isso, agrava a vulnerabilidade do bem segurado.
(TJ-MG - AC: 10702150306554001 Uberlândia, Relator: Franklin Higino Caldeira Filho, Data de Julgamento: 31/03/2022, Câmaras Cíveis / 15ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 06/04/2022)
Note-se que na decisão, parte-se do pressuposto de que o roubo exclui a responsabilidade, descaracteriza o nexo de causalidade, e a eventual imputação do dever de indenizar ao transportador dependerá da demonstração de não adoção das “medidas cabíveis e exigíveis para diminuir o risco do sinistro”.
Essa forma de encarar o tema, um dos mais complexos de Direito dos Transportes, é muito interessante e trouxe ao cenário dos debates jurídicos algum equilíbrio.
A caracterização da força maior em todos os casos de roubo não era algo justo, nem recomendável, porque colocava, como coloca, o transportador em posição indevidamente confortável, permitindo, em não poucos casos, acentuadas injustiças.
Nunca é demais lembrar que o segurador sub-rogado que busca o ressarcimento em regresso exerce um dever de lealdade ao colégio de segurados, protege o princípio do mutualismo e defende o interesse social na saúde do contrato de seguro.
Transportadores eram beneficiados e os segurados todos, donos de cargas, prejudicados.
A forma intermediária de imputação de responsabilidade que a justiça adotou de um tempo para cá trouxe ao tema algum alívio e permitiu, como permite, que situações abertamente injustas, de escancarados agravamentos dos ricos, não fiquem sem as devidas e integrais reparações.
Isso, porém, não basta. Continuava a entender que a imputação de responsabilidade do transportador deveria ser mais ampla e quase plena. O que queria e quero dizer com isso? Que mesmo que ele adote as devidas cautelas, o dever de ressarcimento há de ser mantido porque o roubo não pode mais ser considerado evento típico de força maior.
A antiga tese nunca foi abandonada.
O transportador há de responder pelos danos e prejuízos decorrentes do roubo, tenha ou não tomado todas as cautelas que lhe competiam tomar.
Dizia isso ontem. Digo hoje. Direi amanhã.
Somente em casos muito extraordinários, daqueles de causam inveja aos diretores de filmes de ação de Hollywood é que o transportador poderá eventualmente ser exonerado do dever de ressarcimento, competindo-lhe a prova de tanto.
Meus argumentos são os mesmos de sempre. O roubo de carga no Brasil é: 1) algo previsível; 2) risco do negócio; 3) fortuito interno e 4) objeto de cobertura e de seguros específicos.
Em uma sociedade envolta em riscos, que a cada dia fortalece mais o conceito de responsabilidade civil e o direito que todos têm de não serem danados, é muito importante estabelecer deveres objetivos e responsabilidades, bem como garantir riscos e reparações.
Querendo, poderá o transportador buscar o ressarcimento em regresso contra o Estado (diretamente ou por meio da empresa concessionária que administra a rodovia ou estrada onde foi roubado) por descumprimento do dever de segurança.
Sei se tratar de tema polêmico e não irei me alongar nele, aqui, mas para muito além do debate sobre a natureza programática da norma constitucional que trata do dever de segurança ou da ideia de que não há como Estado garantir a proteção de todos, a qualquer momento e nos diferentes lugares, a verdade é que o roubo de carga acontece no contexto de transporte, em estradas, rodovias, sendo passíveis de mapeamento e possíveis de serem especialmente combatidos.
Pois bem, questão do ressarcimento do transportador responsabilizado contra quem de direito, é importante um repensar sobre o assunto e a adoção de visão jurídica mais forte sobre a imputação de responsabilidade do transportador em caso de roubo. A tese que nunca abandonei, mas que deixei amornada, ganhou novo fôlego, mais tônus muscular com recentíssimas decisões judiciais:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE COBRANÇA - CONTRATO DE TRANSPORTE - ROUBO DE CARGA - USO DE ARMA - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA TRANSPORTADORA - CARACTERIZAÇÃO - PREJUÍZO MATERIAL SUPORTADO PELA AUTORA/CONTRATANTE - REPARAÇÃO DEVIDA. - À luz das disposições dos arts. 14, do CDC, 749, do Código Civil, 12 e 13, da Lei nº 11.442/1997, a responsabilidade da Demandada/Transportadora é de ordem objetiva - A ocorrência de assalto à mão armada em Rodovias é, lamentavelmente, algo esperado e evitável, competindo à Ré a adoção de medidas preventivas aptas à concessão de segurança do serviço por ela prestado. Nesse contexto, o roubo não configura fortuito externo, pois integra o risco da atividade de transporte, sendo manifesto o direito da Demandante/Contratante à recomposição do prejuízo material que sofreu em decorrência do delito. (TJ-MG - AC: 10079130840972001 Contagem, Relator: Roberto Vasconcellos, Data de Julgamento: 02/02/2022, Câmaras Cíveis / 17ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 03/02/2022)
RESPONSABILIDADE CIVIL - ROUBO DE CAMINHÃO - ROUBO DE CARGA - SEGURADORA - FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO - CLÁSULAS CONTRATUAIS QUE EXCLUEM OU LIMITAM RESPONSABILIDADE CIVIL - NULIDADE RECONHECIDA - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA - PRIMEIRO RECURSO DO RÉU CONHECIDO E DESPROVIDO - SEGUNDO RECURSO DA DENUNCIADA NÃO CONHECIDO EM RAZÃO DE INTEMPESTIVIDADE. (TJ-RJ - APL: 00082066820078190061, Relator: Des(a). CAETANO ERNESTO DA FONSECA COSTA, Data de Julgamento: 18/08/2021, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 31/08/2021) [Quanto à alegação de que se trata de caso de força maior, não merece acolhimento, pois o roubo consiste em fortuito interno – evento imprevisível e inevitável que está inserido nos riscos inerentes à atividade exercida pela parte ré – de forma que não cabe a excludente de nexo causal como alegado pela parte ré.]
As decisões colegiadas, uma mineira, outra fluminense, com destaque que eu fiz, tratam de modo muito adequado o assunto e reconhecem que o roubo, sem embargo de sua carga dramática em muitos casos, não derruba o nexo causal do descumprimento da obrigação de transporte nem é causa bastante para a exclusão da presunção legal de responsabilidade do transportador.
São decisões muito recentes, uma do ano passado e outro deste ano, o que animam ainda mais.
Tem-se então duas posições e ambas são boas para os donos de cargas e seus seguradores. A primeira que reconhece a possibilidade de ressarcimento quando se provar que o transportador não foi diligente no cuidado com o dever geral de cautela. A segunda, ainda melhor, que diz que mesmo que o transportador tome as devidas cautelas, o dever de indenizar em caso de roubo.
Gosto muito da primeira. Aplaudo, com entusiasmo de torcedor de futebol, a segunda.
As decisões que se fundam na segunda posição aplicam corretamente os conceitos de: 1) atividade de risco e risco da atividade; 2) fortuito interno e fortuito externo e 3) previsibilidade, evitabilidade e esperabilidade.
Para que um evento qualquer mereça o rótulo de fortuito é imprescindível que ele seja, a um só tempo, imprevisível, inevitável (ou inesperado) e irresistível.
São requisitos concorrentes e que devem figurar no suporte fático de uma dada situação jurídica. A ausência de apenas um é suficiente para afastar a fortuidade. No caso do roubo em transporte rodoviário somente um pode ser invocado (e quando muito, em verdade).
De fato, no máximo o roubo se mostra irresistível, porque previsível e esperado é, com toda certeza. E mesmo a irresistibilidade merece debate a cada ocorrência, porque existem protocolos, procedimentos e meios de segurança e proteção capazes de evitá-lo ou, na pior das hipóteses, minimizá-lo significativamente. Isso tudo sem falar, sempre é bom repetir, na existência de cobertura securitária.
Os dois acórdãos que selecionei para este ensaio tem pares na jurisprudência brasileira e apontam tendência instigante e que espero seja mantida, para o bem dos donos de cargas, seus negócios, dos seguradores dessas cargas e dos riscos de transportes e da sociedade em geral. E ao falar em sociedade em geral não o faço apenas em nome do interesse na saúde do negócio de seguro ou dos direitos legítimos dos segurados, falo ainda no incremento da logística de transporte.
O tratamento mais rigoroso aos transportadores permite, pelo menos no campo das perspectivas, imaginar redesenho da atividade, exigindo-se deles constante busca por mais eficácia, melhores protocolos de segurança e proteções econômico-financeiras. Ouso ainda imaginar que o próprio Estado será obrigado a rever suas políticas de segurança e fornecer maior proteção nas estradas e rodovias, já que o transporte de cargas é algo vital para a economia e fundamentalmente estratégico.
E por falar em perspectivas, bem sabemos que são as circunstâncias que as moldam. As minhas mudaram completamente com decisões como as que destaquei e que sei não serem únicas. Antevejo, sempre com a devida prudência, novos paradigmas e, ancorado neles, substancial crescimento do ressarcimento em regresso.
A regra não será mais a da busca do ressarcimento só em casos especiais, extraordinários, mas a de se tentar sempre o ressarcimento, excetuando-se os casos especiais, extraordinários. Novas circunstâncias, novas perspectivas, não?
Importante deixar bem claro que não estou a afirmar que todo pleito judicial de ressarcimento contra transportador rodoviário em caso de roubo de carga será exitoso. Se o fizesse seria irresponsável, aventureiro, indigno de confiança. O que afirmo é que, agora, os pleitos judiciais podem ser levados adiante, porque há embasamento jurisprudencial para tanto.
Os antigos argumentos são novamente revestido de fundamentos judiciais, como este da Justiça fluminense que acima reproduzi e agora faço questão de reproduzir: “Quanto à alegação de que se trata de caso de força maior, não merece acolhimento, pois o roubo consiste em fortuito interno – evento imprevisível e inevitável que está inserido nos riscos inerentes à atividade exercida pela parte ré – de forma que não cabe a excludente de nexo causal como alegado pela parte ré.”
A Justiça é quem me dá segurança suficiente para reviver antiga tese e não mais descartar a possibilidade de ressarcimento. O roubo pode, sim, encetar responsabilidade ao transportador e lhe impor o dever de indenizar. Evidentemente que muito debate ainda ocorrerá e que derrotas compartilharão espaços com vitórias. A diferença do antes e do agora é a perspectiva! Antes, a perspectiva de desfiguração da força maior não existia; agora, é forte e se amalgama à esperança.
Opinar pela batalha judicial, alertados os riscos (em homenagem ao princípio da transparência e ao dever de informação), não será mais algo não recomendável, envolto em dissabores. Será, antes e sobretudo, ato de calibrado otimismo, chance concreta de se retomar ao mútuo o que é seu e que foi despendido por causa do dano alheio.