Migalhas de Peso

A importância das Guardas Municipais no sistema de segurança pública e a omissão constitucional

Mesmo realizando um papel indispensável na manutenção da ordem pública, as Guardas Civis municipais ainda lutam pelo reconhecimento como órgão de segurança.

8/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Em São Paulo, a cidade mais populosa do país, a Guarda Civil Metropolitana foi criada apenas em 1986, durante a gestão do Prefeito Jânio Quadros, por meio da lei municipal 10.115.

O primeiro efetivo era composto por apenas cento e cinquenta agentes, os quais se reuniam na rua Pedro de Toledo, visto que a corporação não tinha sede própria. Naquele local, os guardas recebiam suas ordens do dia e seguiam a seus postos, a pé ou de ônibus.

Os agentes eram divididos em grupos de cinco homens, pois o número de armas não era suficiente para atender a todo o efetivo e o armamento não era próprio, mas emprestado do Exército Brasileiro 1.

Esse apanhado histórico de uma, dentre as mais de 1.188 guardas municipais atualmente existentes, é interessante, afinal, nos faz questionar como uma corporação inicialmente sem estrutura e sem o devido reconhecimento evoluiu e passou a ser importante vetor de transformação social, desenvolvendo programas nas mais diversas esferas da sociedade, além de prestar valiosa contribuição à manutenção da ordem pública.

Atualmente, somente na capital paulista, a corporação possui centros de comando operacional em todas as zonas da cidade e cerca de 6.200 agentes2, com treinamento e armamento condizentes para com o cumprimento de suas atribuições, em especial, a proteção de escolas, do meio ambiente, do patrimônio público municipal, de outros agentes públicos, de pessoas em situação de rua e, ainda, de espaços públicos.

Além disso, a Guarda Civil paulista desenvolve projetos sociais, com destaque a dois: “Crianças sob nossa Guarda” e “Projeto Luz”. O primeiro é composto por ações desenvolvidas no Espaço Educacional GCM, no interior do Parque do Carmo, em Itaquera. Ao todo, segundo dados fornecidos no sítio da prefeitura de São Paulo, mais de setenta mil crianças, adolescentes, pais, professores e pessoas da comunidade já se beneficiaram das apresentações, que, de forma lúdica, debatem temas importantes do universo infantil.

O segundo projeto tem “o objetivo de conscientizar e capacitar agentes multiplicadores para a prevenção do uso indevido de drogas nas escolas públicas municipais, estaduais e particulares”. Os integrantes da GCM ministram palestras e proporcionam debates para educadores e alunos.

Além de atuar em diversos projetos sociais, as guardas civis metropolitanas ainda contribuem, de forma inquestionável, para a manutenção da ordem pública.

Isso porque, com o passar do tempo e diante do aumento dos índices de criminalidade, o município passou a desempenhar um papel cada vez mais relevante no combate à violência, haja vista sua proximidade com os problemas de segurança enfrentados pelos cidadãos, munícipes.

Diante desse cenário, a Guarda Civil passou a ser fundamental para a implementação de políticas públicas de segurança na esfera municipal.

Todavia, em que pese a importância da instituição, as Guardas Municipais, pela  Constituição Federal, não são reconhecidas como órgão de segurança, visto que não integram o rol taxativo do art. 144.

Essa omissão gera uma situação anacrônica, pois, afinal, na prática, a Guarda Civil atua, cada vez mais, no policiamento ostensivo e preventivo, combatendo diretamente a criminalidade.

Para acabar com esse “limbo jurídico”, tramitam no Congresso Nacional duas propostas de emenda à Constituição.

A primeira é a PEC 534/2002, de autoria do senador Romeu Tuma (PFL/SP), a qual busca alterar o art. 144 da CF, em especial, seu §8º, acrescentando “a proteção de suas populações” como mais uma atribuição das guardas municipais.

Atualmente, mesmo com tramitação especial (art. 202 c/c o 191, I, do RICD) e apesar de ser uma proposta de 2002, ou seja, de mais de vinte anos, essa PEC ainda aguarda apreciação pelo plenário da Câmara dos Deputados 3.    

A segunda é a PEC 275/16, de autoria do deputado Federal Cabo Sabino (PR/CE), que dá nova redação ao §8º do art. 144 da Constituição Federal, incluindo a guarda municipal entre os órgãos de segurança pública, além de equiparar a aposentadoria dos agentes à das forças policiais. Atualmente, também com tramitação especial, essa PEC aguarda a constituição de uma comissão temporária pela presidência da Câmara dos Deputados 4.

Essas duas propostas de emenda à Constituição atendem a uma reivindicação antiga da classe, a qual se revela plenamente legítima, pois a indefinição quanto à natureza e os limites de atuação das guardas municipais, no patamar constitucional, não traz qualquer benefício à sociedade, ao contrário, apenas cria um cenário de insegurança jurídica e de desestímulo a investimentos por parte dos municípios em políticas públicas de segurança. Assim, ao final, quem perde é o próprio cidadão.

Segundo o presidente da AGM – Associação dos Guardas Municipais do Brasil – Reinaldo Monteiro, em entrevista concedida à Gazeta do Povo, “essa alteração daria tranquilidade jurídica e constitucional para os gestores públicos municipais. Com isso, o município, dentro da sua condição financeira e de suas peculiaridades, terá total condição para implantar seu órgão municipal de segurança pública” 5.

Então, além de servir como estímulo aos investimentos municipais no setor da segurança pública, conferindo às guardas civis metropolitanas o “poder de polícia”, as alterações advindas com as mencionadas propostas de emenda à Constituição garantiriam aos agentes o direito a uma aposentadoria nos mesmos moldes das outras forças de segurança.

Seria, pois, um avanço inegável à categoria e extremamente merecido, diante da importância e do risco da atividade desenvolvida por tais profissionais.

No sistema jurídico atual, o município não detém competência para atuar na segurança pública, ficando reservado a essas autonomias apenas o policiamento administrativo, sem qualquer atribuição de polícia judiciária ou investigativa.

Exatamente neste ponto que as mencionadas propostas de emenda à constituição irão trazer relevante mudança.

É certo que o Estatuto das Guardas Municipais, lei 13.022/14, procurou suprir a omissão constitucional, ocorrente em momento em que não se esperava evolução tamanha da instituição.

Mas, esse reparo legislativo não arreda controvérsias sobre as atribuições das Guardas Municipais, inclusive de ordem jurisdicional.

Ora, num país com dimensões continentais como o Brasil e que apresenta intensa heterogeneidade social e cultural, é evidente que uma política de segurança generalista, criada e aplicada isoladamente pelos entes estaduais e federais, tem a sua eficácia reduzida, pois não se vê como considerar os problemas de violência de acordo com as especificidades de cada região. A prevenção da violência é muito mais eficaz se desenvolvida a partir de um trabalho local e comunitário.

Daí exsurgir a importância dos municípios na manutenção da ordem e segurança pública, até porque a União e, principalmente, os Estados já se encontram sobrecarregados. Por isso que apresentam insuficiência de recursos humanos e financeiros, o que resulta num serviço ineficiente.

Segundo o IBGE 6, as guardas civis estão presentes em 1.188 municípios do país e, de acordo com estimativa realizada pela Federação Nacional de Sindicatos de Guardas Municipais do Brasil 7, contam com um efetivo entre 150 a 200 mil agentes.

Portanto, trata-se de uma corporação bem estruturada e com um efetivo de agentes considerável, de modo que limitar sua atuação apenas à vigilância de bens públicos municipais passa a ser um desperdício.

Dessa forma, para desenvolver um combate mais eficiente aos problemas de violência vivenciados nos principais centros urbanos do país, o modelo tradicional de segurança pública, composto apenas por agentes do Estado e da União, deve ser revisto, a fim de que as guardas civis metropolitanas passem a ser reconhecidas como órgãos de segurança, legitimando, assim, a atuação de milhares de agentes que, diariamente, já desempenham um papel fundamental para a segurança da sociedade.

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1 Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/seguranca_urbana/guarda_civil/historia/index.php. Acessado em 31/03/2022.

2 Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/seguranca_urbana/acesso_a_informacao/index.php?p=178852. Acessado em 31/03/2022.

3 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=50573. Acessado em: 01/04/2022, às 11h15m.

4 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2117201. Acessado em 01/04/2022, às 11h23m.

5 Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/para-fugir-de-limbo-juridico-guardas-municipais-buscam-reconhecimento-como-orgao-de-seguranca/. Acessado em 01/04/2022, às 11h48m.

6 Disponível em: https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/2012-agencia-de-noticias/noticias/29570-proporcao-de-municipios-com-guarda-municipal-armada-sobe-para-22-4.html. Acessado em 01/04/2022, às 12h10.

7 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/56a-legislatura/pec-006-19-previdencia-social/expedientes-recebidos/fenaguardas. Acessado em 01/04/2022, às 12h19.

Ivan Sartori
Desembargador, formado em Direto pela Universidade Mackenzie. Ingressou na Magistratura Paulista em janeiro de 1981 com 23 anos. Foi eleito e reeleito para compor o Órgão Especial daquela Corte, instância máxima do Judiciário Paulista. Foi o relator do atual Regimento Interno do Tribunal. Tornou-se o mais jovem Presidente da história do maior tribunal do mundo (TJ/SP), biênio 2012/13.

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