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A esdrúxula figura da recusa tácita da proposta de seguro criada por normativo da SUSEP

Breves considerações sobre a ilegalidade da circular SUSEP 642/21 no que se refere a previsão da possibilidade de recusa tácita da proposta de seguro.

7/4/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Entrou em vigor, em outubro p.p., a circular SUSEP 642/21, a qual, por meio de seu artigo 4º, § 3º1 estabeleceu, em síntese, que, salvo disposição em contrário, recebida a proposta de seguro, o silencio da seguradora, no prazo contratualmente estipulado, importa em recusa tácita à contratação.

Tal normativo revogou a circular 251/04, a qual dispunha, em sentido diametralmente oposto, que a ausência de manifestação da seguradora, no prazo de 15 dias, caracterizava aceitação tácita da proposta de seguro, art. 2º § 6ºii.

Não bastasse ser contraproducente, longe da boa técnica, e prejudicial à harmonia das relações securitárias, referida norma infralegal é, também, incompatível com o ordenamento legal vigente. E, ao não encontrar fundamento de validade na lei, não pode produzir efeitos jurídicos.

“Quem cala, consente”, diz o adágio popular.

Em que pese não ser acolhido em diversas situações do nosso ordenamento jurídico, esse adágio se encaixa perfeitamente, seja por força cogente da lei, seja pelos usos e costumes, no tema ora em discussão. Vejamos:

Com efeito, reza o art. 111 do Código Civil que:

“O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.”

São, portanto, duas as condicionantes legais para que o silencio, de forma cogente, importe em anuência, quais sejam:

a. as circunstâncias ou os usos o autorizarem;

b. não for necessária a declaração de vontade expressa. 

Analisemos, então, esse dispositivo, no que toca ao contrato de seguro.

As “circunstâncias e os usos” por certo autorizam que o silêncio da seguradora importe em aceitação tácita da proposta de seguro.

Tal comportamento: a. faz parte dos usos e costumes do mercado segurador há longa data; b. é aceito e ratificado tanto pela doutrina2 como pela jurisprudência3; c. a própria SUSEP, ao menos desde 2004, com a edição da, agora revogada, Circular nº 251/2004, também ratifica a existência dessa prática.

Na mesma linha, o projeto de lei de seguros 29/17, em tramitação no Senado Federal, prevê a anuência pelo silêncio, art. 524.

Ultrapassada essa questão, resta, por fim, analisar a parte final do sobredito art. 111, para sabermos se, no caso da aceitação da proposta de seguro, há ou não o requisito da “necessária declaração de vontade expressa”, o qual excluiria a possibilidade de o silêncio importar em anuência.

Por certo que não. O contrato de seguro é consensual, não prevendo forma expressa de aceitação, o que se extrai, dentre outros, dos artigos 1075 e 7586 do Código Civil.

Tal entendimento, de igual forma, encontra baliza maciça na doutrina7 e jurisprudência8.

Ernesto Tzirulnik, Ayrton Pimentel e Flávio de Queiroz Cavalcanti9 destacam que o art. 758 demonstra a consensualidade do contrato de seguro, ao referir a apólice e outros documentos como meio de prova da existência do contrato, mas não como documentos essenciais para a sua subsistência. Assim, não havendo forma prescrita em lei, a regra é a consensualidade. Ratificam, ainda, os professores, que a praxe do mercado é a aceitação tácita10.

A Professora Judith Martins-Costa, em recentíssima e brilhante palestra, proferida em 25/11/21, no CJF-STJ – II Congresso Internacional de Direito do Seguro  e IBDS – VIII Fórum José Sollero Filho11, bem esclarece, com a didática que lhe é peculiar, o caráter consensual do contrato de seguro.

Na referida palestra, a professora aborda, com maestria, a ilegalidade da circular, analisando, dentre outros aspectos, o mencionado art. 111 do Código Civil e conclui que “ignorando a lei, a jurisprudência, a doutrina e a própria tradição, além de esquecer a boa técnica, os limites da própria competência e a razoabilidade, a SUSEP pretende inovar na formação do contrato de seguro”.

Acrescente-se, ainda, que por força do CDC, a recusa da seguradora deve ser motivada12, com a consequência lógica de que não poderá ser tácita.

Nesse particular, veja-se que a circular atentou para esse fato, determinando que a seguradora deverá comunicar formalmente a decisão de não aceitação, devidamente justificada, art. 4º, § 4º.13

Porém, embora sujeite às seguradoras que não cumprirem esse ônus, inclusive, às “penalidades administrativas cabíveis”, contraditoriamente, estipulou que o seu descumprimento acarreta a recusa tácita, punindo, inadvertidamente, o proponente do seguro, art. 4º, § 3º.14

Ora, se é ônus da seguradora comunicar formalmente e de forma justificada a decisão de não aceitação, o seu descumprimento deveria acarretar a aceitação tácita. Não pode o proponente ser prejudicado por conduta irregular da seguradora. Tal estipulação, além de contraproducente e ilegal, aumentará a litigiosidade, o que, por certo, não deve ser provocada pelo próprio órgão regulador.

Fica, portanto, a pergunta à SUSEP: Se a própria circular atribui à seguradora o ônus de manifestar-se, formalmente e de forma justificada, acerca da recusa da proposta, por que a sua inobservância acarreta a recusa tácita, em manifesto prejuízo ao proponente que se verá, imotivadamente e sem qualquer comunicação prévia, desamparado da cobertura securitária?

São essas as minhas breves considerações sobre o tema, as quais, longe de pretenderem esgotar o assunto, objetivam a reflexão e o fomento do estudo e debate acerca da matéria.

_______________________________________

1§ 3º do art. 4º da Circular SUSEP nº 642/2021: “Caso as condições contratuais não estipulem a aceitação tácita ao término do prazo estabelecido no caput, a ausência de manifestação expressa sobre o resultado da análise sujeitará a sociedade seguradora às penalidades administrativas cabíveis, bem como caracterizará a recusa da proposta.”;

2 Ernesto Tzirulnik e Paulo Luiz de Toledo Piza, Notas sobre a natureza jurídica e efeitos da apólice de seguro no direito brasileiro atual. RT 687/7;

3 “É fato notório que o contrato de seguro é celebrado, na prática, entre a corretora e o segurado, de modo que a seguradora não manifesta expressamente sua aceitação quanto à proposta, apenas a recusa (...)” RESP nº 1.306.367/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma. Disponível em www.stj.jus.br;

4 Art. 52 do Projeto de Lei de Seguros: “Recebida a proposta, a seguradora terá o prazo máximo de quinze dias para cientificar sua recusa ao proponente, ao final do qual será considerada aceita.”;

5 Art. 107 do Código Civil Brasileiro: “A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.”; 

6 Art. 758 do Código Civil Brasileiro: “O contrato de seguro prova-se com a exibição da apólice ou do bilhete do seguro, e, na falta deles, por documento comprobatório do pagamento do respectivo prêmio.”;

7 Confira-se: Pontes de Miranda em Tratado de direito privado, 3ª edição, São Paulo, RT, 1984, vol. XLV, p. 298 e ss.; Orlando Gomes, em Contratos,18ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1998, pág 411;

8 “O contrato de seguro é consensual (...) O art. 758 do Código Civil não confere à emissão da apólice a condição de requisito de existência do contrato de seguro, tampouco eleva tal documento ao degrau de prova tarifada ou única capaz de atestar a celebração da avença.” RESP nº 1.306.367/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma. Disponível em www.stj.jus.br;

9 TZIRULNIK E., CAVALCANTI F. Q. B., PIMENTEL A. O Contrato de Seguro: de acordo com o Novo Código Civil Brasileiro, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, 2ª Edição, pág 42.

10 Ob cit, pág 43: “Passando-se à praxe (usos e costumes) negocial observaremos que frequentemente os contratos de seguro são concluídos e executados sem a existência da aceitação expressa pelas seguradoras, bastando que as mesmas não hajam recusado por escrito as propostas recebidas”;

11 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=E0thiNelQQo

12 “Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

(...)

IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais.”;

13 § 4º do art. 4º da Circular SUSEP nº 642/2021: “Em qualquer hipótese, a sociedade seguradora deverá comunicar formalmente ao proponente, ao seu representante legal ou corretor de seguros, a decisão de não aceitação da proposta, com a devida justificativa da recusa.”;

14 § 3º do art. 4º da Circular SUSEP nº 642/2021: “Caso as condições contratuais não estipulem a aceitação tácita ao término do prazo estabelecido no caput, a ausência de manifestação expressa sobre o resultado da análise sujeitará a sociedade seguradora às penalidades administrativas cabíveis, bem como caracterizará a recusa da proposta.”

Sandro Raymundo
Advogado Especialista em Seguros pela FGV/SP, graduado em Direito pela PUC/SP, Coordenador Acadêmico da Comissão de Direito Securitário da OAB/SP - Jabaquara, Presidente do Instituto Segurado Seguro

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