1.Introdução
A interpretação contra o predisponente, contra proferetem, consiste na ideia de que a cláusula contratual mal redigida, ambígua ou abusiva deve ser interpretada em desfavor da parte que redigiu.
Em outras palavras, esse regramento da interpretação contra o predisponente expressa-se através da premissa de que o contrato será interpretado em desfavor de quem redigiu os pontos que geram divergência ou desequilíbrio contratual entre as partes (Albuquerque, 2019; Petrucci, 2018). Trata-se de um privilégio interpretativo em desfavor do predisponente nos contratos, consistindo num cânone hermenêutico contratual fundamental. (Albuquerque, 2019; Petrucci, 2018).
Neste passo, o referido fundamento hermenêutico coloca o risco da ambiguidade, da falta de clareza e de aviso, na parte redatora, que poderia ter evitado a controvérsia, salvaguardando a outra parte de armadilhas ocultas contratuais que não são de sua autoria (Flynn, 1980, p. 381, tradução nossa).
Sua aplicação decorre do princípio da Boa-Fé Objetiva presentes nos arts. 113 e 422 do Código Civil, que assume três grandes funções: a função de restritiva ou de controle; a criadora de deveres anexos a prestação principal; e a interpretativa (Nascimento, 2017, p. 11). A função interpretativa dos contratos garante que os contratos e suas cláusulas sejam interpretados em harmonia com os objetivos comuns buscados pelas partes durante a celebração do contrato, conforme disposto no art. 113 (Nascimento, 2017, p. 11).
Por sua vez, a função restritiva, cria limites do exercício dos direitos das partes, assegurando que tal exercício não se manifeste de forma abusiva ou contraditória a boa-fé, aos bons costumes ou ao seu fim econômico, conforme o art. 187 do Código Civil (Nascimento, 2017, p. 11). Por fim, a função criadora de deveres nas fases pré-negocial, negocial e pós-negocial objetiva incentiva a cooperação entre as partes contratantes em todos os momentos da relação jurídica, impondo deveres como o de lealdade, proteção, cuidado, esclarecimento e informação (Nascimento, 2017, p. 11).
Com o advento do CDC em 11/9/90, tivemos a edição de normas de ordem pública estabelecendo parâmetros interpretativos e reguladores das relações de consumo. Fruto desta preocupação legal, temos um rol de artigos referentes a cláusulas abusivas como as elencadas no art. 51; o princípio interpretatio contra proferentem extraído do art. 47; e o direito à informação clara do contrato disposta no art. 46, dentre outros (Capelotti, 2009, p. 4).
Importante destacar que o referido art. 51, inciso IV, estabelece a nulidade de pleno direito de obrigações iniquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou incompatíveis com a boa-fé ou a equidade, principalmente referente a contratos de adesão, que fundamenta também a aplicação da interpretação contra predisponente contratual.
Com Código Civil de 10/1/02, tivemos a introdução do art. 423 que determina que quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.
Orlando Gomes,1995, leciona que o que caracteriza o contrato de adesão é que aquele a quem é proposto o contrato não pode deixar de contratar, porque tem a necessidade de satisfazer um interesse, que por outro modo, não poderia ser atendido. Neste sentido, uma pessoa que precisa viajar, provavelmente se submeterá as condições estipuladas pela empresa transportadora, pois não lhe resta outra possibilidade. Estas circunstâncias influenciam na interpretação de suas clausulas.
Capelotti, 2009, ensina que existe estreita correlação entre contratos de massa e cláusulas abusivas, já que resultam de reduzido poder de discussão dos termos contratuais, pautados no domínio econômico de uma parte sobre a outra, definindo um campo propicio para vantagens indevidas, por isso a importância de regulação e fiscalização pelo Estado.
Nos casos que se referem ao contrato de adesão, temos a formação contratual de acordo com a vontade de apenas uma das partes do negócio jurídico, não havendo colaboração na construção do acordo pactuado.
No que se refere ao elemento da predisposição, não é necessário que as cláusulas tenham sido fixadas anteriormente por escrito, importando apenas que tenham sido elaboradas preconcebidas de antemão, tomando como referência o momento de início da fase de negociação contratual (Mota, 2016, p. 3).
2. Regramento da interpretação contra predisponente nas relações contratuais paritárias
A aplicação da interpretação desfavorável ao predisponente não se aplicava aos contratos paritários, visto que, em regra geral, temos uma igualdade de condições entre as partes contratuais.
O art. 421-A do Código Civil institui que contratos civis e empresariais se presumem paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, podendo as partes negociantes estabelecerem parâmetros objetivos para interpretação de cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão e de resolução.
A lei 13.874 de 20/9/19, a chamada Lei da Liberdade Econômica, instituiu a Declaração de Direitos da Liberdade Econômica, buscando estabelecer normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica.
Neste sentido, ela introduz no Código Civil o art. 113, parágrafo 1º, inciso IV, que estabelece que a interpretação do negócio jurídico deve ser atribuída no sentido que for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável, se aplicando a todos os contratos do ordenamento jurídico, incluindo os empresariais.
Ademais, cabe trazer a exposição de motivos da medida provisória 881/2019, que mais tarde foi convertida na lei 13.874/2019, ao incluir tal dispositivo no Código Civil. Vejamos:
16. Para a expansão da segurança jurídica das relações privadas, está presente a inserção explícita da regra do "contra proferentem", sobre a interpretação de todos os contratos, antes limitados, explicitamente, aos de adesão. Essa regra estipula que a dúvida sobre a interpretação de um contrato beneficia a parte que não redigiu a cláusula disputada, derivando-se, conforme doutrina comparativa no direito continental, civil law, do princípio de que ninguém será beneficiado pela própria torpeza, regramento já parte do ordenamento jurídico brasileiro, conforme pesquisa presente nas Notas Técnicas. Essa lógica dá amparo à ideia de que quem redige uma cláusula não deve auferir benefício de tê-la feito de maneira dúbia, buscando a eliminação de incentivos perversos, conforme assegura a moderna doutrina da análise econômica do direito. Essa previsão acaba também por valorizar o papel do advogado, na forma do art. 133 da Constituição, sobre os modernos e sofisticados processos de elaboração de contratos privados. Com essa medida, mais esforços serão destinados a evitar conflitos e, então, menos disputas serão instauradas, reduzindo significativamente os custos que tais conflitos impõem ao Judiciário e ao país em geral.
Conforme visto anteriormente, antes da entrada em vigor da lei 13.874/19, a interpretação contra o predisponente era prevista no Código Civil apenas para os casos referentes a dúvidas interpretativas em contratos de adesão.
O Código Comercial de 1850 estipulava uma série de regramentos hermenêuticos no âmbito dos contratos comerciais no seu art. 131 e incisos, como predominância da vontade das partes; boa-fé, harmonia das disposições contratuais e comportamento dos contratantes, dentre outros (Albuquerque, 2019, p. 1). Contudo, com o Código Civil de 2002 esse regramento foi revogado, sendo substituído por regramentos mais simples e em grande parte insuficientes (Albuquerque, 2019, p. 1).
Ademais, ao revogar parcialmente o Código Comercial de 1950, o Código Civil de 2002 assume para si a unificação do direito das obrigações, substituindo a teoria dos atos de comércio pela teoria da empresa, fazendo com que a doutrina passasse a distinguir contratos firmados entre empresários dos civis e de consumo (Tavares, 2017, p. 11). Albuquerque, 2019, leciona que a lei 13.874/2019 restabelece e revitaliza o antigo art. 131 do Código Comercial, incluindo os parágrafos 1º, 2º e incisos no art. 113 no Código Civil de 2002.
Trata-se de um ponto inovador, já que em algumas negociações pode ser muito difícil estabelecer quem inseriu determinado vocábulo ou estipulou a redação final (Venosa, Ruas, 2019). Em contratos complexos, as partes envolvidas realizam diversos ajustes, incluindo e excluindo diversos termos, tornando a identificação da autoria de certo termo uma tarefa árdua (Venosa, Ruas, 2019).
Venosa e Ruas, 2019, destacam que independentemente do negócio jurídico, identificando-se a parte que redigiu o termo obscuro ou ambíguo, este não pode ser beneficiado pela sua torpeza.
Outro aspecto relevante trazido pela lei 13.874/2019 é o art. 421-A, inciso I, que garante que as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução, fomentando ainda mais a relação de confiança entre as partes no negócio jurídico, fornecendo mecanismos de resolução de conflitos expressos no contrato.
De acordo com Corrêa, 2019, a introdução do regramento do contra proferentem tratou-se de grande inovação no direito contratual brasileiro, já que é um ponto que dificilmente seria regulamentado pelas partes contratualmente.
Desta forma, a interpretação contra o predisponente não ficará mais restrita aos contratos de adesão, se aplicando todo negócio jurídico, incluindo aqueles em que as partes se encontram em posição igualitária, já que no âmbito do direito do consumidor temos uma presunção relativa de vulnerabilidade do consumidor.
Critérios interpretativos como esse incentivam a boa-fé entre as partes, com uma relação jurídica pautada na confiança e lealdade, punindo aqueles que vão de encontro ao bom funcionamento do ordenamento jurídico, buscando locupletar-se da ambiguidade, obscuridade e imprecisão que deram causaram.
Com a alteração feita mediante a Lei da Liberdade Econômica, durante as negociações contratuais, será da mais relevante importância o registro das alterações, contendo quais partes ou trechos das cláusulas cada parte respectivamente redigiu. Se fará relevante para dirimir qualquer eventual litígio num futuro próximo.
Outro aspecto relevante a ser destacado é a possibilidade de as partes estabelecerem critérios hermenêuticos para preenchimento de lacunas e para integração dos negócios jurídicos, de forma a fornecer ferramentas e instrumentos para resolução de conflitos contratuais.
3. Considerações finais
A interpretação contra predisponente se mostra como um balizador, um orientador aos juristas na resolução de conflitos desde o século II a.C. Seus preceitos persistiram ao longo tempo, influenciando as relações jurídicas em todo âmbito internacional.
Critérios interpretativos como esse incentivam a boa-fé entre as partes, com uma relação jurídica pautada na confiança e lealdade, punindo aqueles que vão de encontro ao bom funcionamento do ordenamento jurídico, buscando locupletar-se da ambiguidade, obscuridade e imprecisão que deram causaram.
Com a alteração feita mediante a Lei da Liberdade Econômica, durante as negociações contratuais, será da mais relevante importância o registro das alterações, contendo quais partes ou trechos das cláusulas cada parte respectivamente redigiu. Se fará relevante para dirimir qualquer eventual litígio num futuro próximo.
Outro aspecto relevante a ser destacado é a possibilidade de as partes estabelecerem critérios hermenêuticos para preenchimento de lacunas e para integração dos negócios jurídicos, de forma a fornecer ferramentas e instrumentos para resolução de conflitos contratuais.
Na hipótese em que as partes buscam mitigar os riscos decorrentes da interpretação contra o predisponente, é possível com base no art. 421-A, as partes declararem que a elaboração e redação do contrato se deu de forma conjunta e compartilhada, criando um elemento contratual que pode afastar sua aplicação.
O princípio do interpretatio contra proferentem demonstra-se como um mecanismo hábil para resolução de conflitos resultantes de disputas contratuais, junto com outros parâmetros como o comportamento das partes posteriormente a celebração do acordo, os usos, costumes e práticas do mercado relativas a aquele negócio, bem como a boa-fé.
A partes contratuais terão de ter um cuidado redobrado no momento de redigir as cláusulas do acordo, almejando evitar possíveis vícios, incentivando a redação clara e precisa.
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